O padre do Diabo
Padre Lage infernizou a ditadura militar com a sua vida dedicada aos pobres e aos sem-terra (Fotos: O Pasquim)
O Pasquim, 28.5.1987 – O padre do Diabo foi a alcunha dada pela ditadura a esse padre de fala mansa e jeito pacato, com uma impressionante semelhança com Carlos Drummond de Andrade. Caçado e cassado, foi preso logo depois do golpe de 1964, torturado e condenado a quase 30 anos de prisão.
Seu crime: ter dedicado a vida aos pobres e aos sem-terra. Asilou-se no consulado do México e passou 20 anos no exílio. De volta, lépido e fagueiro no vigor dos seus 70 anos, continua na militância política, brigando pelas suas ideias fora e dentro de seu partido, o PDT.
(Nota da Vila de Utopia: Francisco Lage Pessoa foi pároco da igreja da Floresta, em Belo Horizonte. Nasceu na vizinha cidade de Ferros em 18 de março de 1917 e faleceu em 7 de abril de 1989, de infarto do miocárdio. O padre Lage, como ficou conhecido, se destacava como vigário dos pobres que se opunha à ditadura.)
Jaguar – Tenho a impressão de que estou realizando um velho sonho: é como se tivesse à minha frente uma pessoa que nunca quis dar entrevista pro Pasquim, e aliás não dá pra ninguém, que é o Carlos Drummond de Andrade. Que é um sósia do Padre Lage. Vocês têm algum parentesco?
Padre Lage – Nós somos primos. Em Itabira se diz que a cidade foi fundada por três grandes famílias: a família Drummond, a família Andrade e a família Lage. E eles dizem assim: Drummond na letra, Andrade na treta e Lage na chibata. Porque os Lage eram donos de escravos mais cruéis da redondeza.
Eu sou descendente dessa gente, e sou descendente dos Drummond, dos Andrade, dos tais monstros lagidos e andridos de que fala Carlos Drummond de Andrade naquele poema muito bonito, Os bens e o sangue. São os mesmos monstros que perseguem a gente.
E no meio desses monstros, entretanto, há uma coisa muito interessante: nós encontramos uma gente formidável. Uma mulher chamada Francisca Bicudo de Alvarenga, que deve ser minha quintavó. Um dia chama os filhos à cabeceira dela e fala: não posso, de forma alguma, levar o pecado de ter escravos.
Jaguar – Preocupada com o currículo…
Padre Lage – “Nós vamos dar alforria para cada um dos escravos”. Mas agora vem a grande novidade da dona Francisca Bicudo de Alvarenga: “nós não podemos dar liberdade se não lhes dermos terra”. Então, distribuíram a melhor área da fazenda dela.
Jaguar – Isso é que é: alforria com reforma agrária!
Padre Lage – Muito bonito isso, porque a liberdade se defende pela terra. Esse pessoal está lá até hoje. Pretinhos – não se misturam por causa da terra, quem tem propriedade não se mistura – são conhecidos como “os negros do Mendonça”. O curioso é que todos são Pedro, Bicudo, Lage, Martins da Costa, Drummond, todos assinam os sobrenomes das nossas famílias.
“Não gosto de termo opção pelos pobres. Eu não fiz nenhuma ‘opção’ por eles, ao contrário, eles é que me ensinaram muita coisa, inclusive ser padre.”
Eu acho isso muito interessante, porque mostra que, contrariamente ao clichê que nós aprendemos na história, a escravidão era considerada um crime, era considerada um pecado. Essa mulher, para chegar diante de Deus com a cabeça erguida, tinha primeiro que limpar o currículo dela aqui na Terra.
Jaguar – O senhor nasceu na cidade de Ferros. É perto de Itabira?
Padre Lage – Pertinho. Dez léguas, na nossa antiga maneira de dizer. Cerca de sessenta quilômetros ao norte de Itabira.
Jaguar – A sua família já tinha outras pessoas com vocação religiosa?
Padre Lage – Não. Lá em Itabira se diz que não dá padre…
Jaguar – Mas também, quando deu… (risos)
Padre Lage – Deu e não deu… Eu tenho um irmão padre. Talvez uma ou outra pessoa religiosa, mas padre mesmo acho que não.
Jaguar – Houve alguma oposição da família?
Padre Lage – Uma certa indiferença. Eu escrevi um livro chamado O Padre do Diabo. A pressão que eu sofria era essa: lá não dá padre. E eu, um pouco por teimosia, fui e virei.
Jaguar – O senhor não estudou no famoso Caraça?
Padre Lage – Eu não; ele sim. Ele estudou quando menino no Caraça. Depois, estudou na Escola de Farmácia de Ouro Preto, e depois se fez político, um político muito interessante.
Tão interessante que criou um jornalzinho chamado O Forense, onde insistia muito nesses dados que para ele eram fundamentais: que a República traiu o povo brasileiro, porque, para os republicanos verdadeiros, a república tinha que fazer, em primeiro lugar, a distribuição de terras. Não haveria república se não houvesse distribuição de terras, a reforma agrária.
Jaguar – E continua a mesma coisa…
Padre Lage -Continua pior. A cada dia pior. Ele escrevia muito sobre isso, e quando eu fui preso em Brasília, em abril de 1964, os PMs me tomaram tudo, inclusive o dinheirinho que eu tinha no bolso, e levaram sobretudo o material “subversivo”.
Esse material “subversivo” eram livros, cartas, a coleção do Forense que eu tinha, porque passaram vista nela e viram que era muito subversiva. Eu disse: “mas isso é do meu avô! Mas é mais subversivo ainda!”
Quer dizer, o assunto era enormemente subversivo, já naquele tempo. Se hoje é subversivo, naquele tempo, como não seria? Eu digo, lá no meu livro, que nós somos vítimas dos nossos antepassados. Nós herdamos as mazelas e também as grandezas, e temos que levar na mente esse negócio.
Jaguar – Mas o senhor foi então estudar em Mariana, não é?
Padre Lage – Estudei em Mariana, com todas as dificuldades. Eu pagava só a metade do seminário… Então fui para Petrópolis, onde estudei oito anos. Me fiz padre, me ordenei na Catedral de Mariana, enfrentando o conservadorismo, porque eu não era conservador… Depois me expulsaram de lá por motivos ideológicos, fui parar no Seminário de Santiago, em Salvador. De lá também fui expulso e perseguido.
Jaguar – E daí?
Padre Lage – Aí vim parar no Rio, onde eu estava meio excomungado da congregação. Eu era capelão da Santa Casa. Em cima da casa onde morávamos estava a Fábrica de Caixões, que trabalhava – não sei se ainda hoje – dia enoite. Eu ficava pensando: “Pobre morre mesmo. Pobre veio a este mundo pra morrer”.
A primeira coisa que eu fazia no meu dia era encomendar os corpos dos pobres. Havia uma sala repleta de cadáveres que tinham morrido na véspera, e eu encomendava os corpos por minha iniciativa. Pensava: “Pobre nasce pra morrer”.
E já naquele tempo eu tinha um desespero social muito grande. Em 48, fui para Belo Horizonte, e lá me liguei à Favela dos Marmiteiros. Ficava quase que tempo integral na favela, porque o problema era muito angustioso. Eles estavam ameaçados de despejo coletivo por uma sociedade mineira de terrenos, que era braço imobiliário do banco de Crédito Real de Minas Gerais.
E a polícia de vez em quando ia lá, de noite, batia em muita gente, prendia alguns etc. Então eu entrei num grupo chamado de comunista. Nós fazíamos as reuniões de noite, na favela, à luz de lamparina – isso não quer dizer muita coisa, porque na favela não tinha luz elétrica –, um de nós, ficava de fora da casinha, sempre revezando, encarregado de avisar se a polícia chegasse, pra gente apagar a lamparina e cair no mundo.
Jaguar – Quer dizer, o senhor fez opção pelos pobres num tempo em que não se fazia isso. O senhor foi um pioneiro nesse sentido.
Padre Lage – Eu não gosto desse termo “opção pelos pobres”. Eu acho que nós todos somos absolutamente responsáveis pelos desníveis da sociedade. Então temos que lutar juntos, sobretudo com eles.
Eu acho que não fiz nenhuma opção pelos pobres, eles é que me ensinaram muita coisa. Me ensinaram a ser padre. Para mim, o padre é aquele que está no meio do povo para levar a mensagem de Cristo, que é de libertação, muito antes dessa história de Teologia da Libertação. A libertação de tudo aquilo que escraviza, na ordem pessoal e coletiva.
Voltei, e Dom Cabral me fez vigário de Caeté, onde fiquei por todo o ano de 1955. Praticamente deixei a congregação. Daí me levaram para Floresta, onde fiquei de 56 a 62. Floresta foi uma espécie de centro de irrigação de tudo quanto era luta contra as estruturas iníquas no Estado de Minas.
Alguém me disse um dia desses que eu era o inventor da greve. É claro que não, mas em Belo Horizonte eu passo a ser realmente, na história da cidade e do estado, o precursor das grandes greves; todas as grandes greves me tinham como incentivador.
Mas a greve mais interessante, e a que mais me ensinou também foi a dos garis. Estavam há quatro meses sem receber. Isso foi em 59, quase no Natal; o dinheiro não saia, a greve aumentando, a opinião pública cada vez mais atenta ao problema, a cidade suja… Resolvemos fazer uma coisa dramática pro dinheiro sair e resolver a greve antes do Natal.
E vamos celebrar o Natal – a nossa favela, a dos Marmiteiros – e fizemos um comício, convidando todas as mães pra levarem as crianças da favela, de bonde mesmo, que não tínhamos jeito de levar, e fomos pra cidade. E lá, elas tinham que acampar em torno da Prefeitura de Belo Horizonte. E a ordem foi essa: que os meninos cagassem. Na prefeitura toda. Passaram a noite toda cagando.
Jaguar – Fizeram claramente o que os nossos governantes fazem às escondidas…
Padre Lage – Justamente. Dessa maneira celebramos o Natal de 1959. E os meninos, em troca desse grande serviço que prestaram, ganharam leite, alimentação, e as mães também, que conseguimos com várias entidades de assistência social. E no dia seguinte o dinheiro saiu.
Daí eu fui tomando consciência de que precisava entrar mesmo na política, e como padre, mesmo que a Igreja não topasse a parada. O direito canônico estabelecia, naquele tempo, que o padre só podia ser político com licença do bispo, em posto de representação, e em posto de administração, com licença do Papa. Eu fui virtual candidato a prefeito de Belo Horizonte, e depois a deputado federal pelo PTB. Obtive 14 mil e tantos votos.
Jaguar – Deu pra se eleger?
Padre Lage – Nada! Deu pra ser segundo suplente. Eu era maldito, eu era o padre comunista, uma espécie de “padre do diabo”; essa expressão foram os policiais que usaram comigo quando eu estava preso.
Fui embora pra Brasília. Aí, o presidente Goulart, no primeiro momento em que estive com ele, falou assim: você quer ir pra Câmara? Nós arranjamos um jeito. Eu respondi que não, que já tinha uma coisa na cabeça.
Tinha uma lei chamada Estatuto do Trabalhador Rural, que estendia os benefícios dos trabalhadores urbanos para os rurais. E entre esses benefícios estava o direito de criar sindicatos. Mas isso só estava na lei. O que era preciso era fazer essa lei valer: criar o sindicalismo rural.
O sindicalismo era um feudozinho da Igreja do Nordeste, na pessoa do atual cardeal do Rio de Janeiro, que era arcebispo de Natal, e uma espécie de coisinha da igreja do Nordeste. Então propus isso ao presidente, ele gostou muito da ideia.
E foi ele mesmo que deu a ideia de um convênio entre o ministério do Trabalho e a Supra (Superintendência da Reforma Agrária). E aí nos fundamos o Consir (Comissão Nacional de Sindicalização Rural). Com isso se implicou o sindicalismo rural no país. Nós fundamos cerca de dois mil sindicatos.
Edson Santos – Eu tenho vivido há bem pouco tempo com o padre Lage. Já o conhecia de história e esse pouco tempo que a gente tem passado junto as atribulações que a gente tem passado, lutando internamente no PDT, tentando organizar um novo partido em Minas, popular, aberto, progressista, a gente não tem parado para conversar pessoalmente. Há muito tempo eu tinha vontade de perguntar ao padre Lage de onde é que veio essa tendência progressista nele. E ele, contando essa história, eu passo a acreditar que é dessa contradição entre os Lages aristocratas e a Francisca Bicudo de Alvarenga libertária. Que é que você acha, padre?
Padre Lage – Acho que existe sim, é uma espécie de compulsão do sangue. Nesse poema do Drummond, Os bens e O sangue, os bens nós perdemos. Tem aquele ditado mineiro que diz: pai fazendeiro, filho cavaleiro, neto sapateiro; nós somos os netos sapateiros. O sangue fica, os bens nós perdemos. E o sangue nos faz.
Jaguar – E, além disso tudo, o senhor também devia ler muito…
Padre Lage – Sem dúvida. Meu material subversivo me machucou muito, de Brasília a Belo Horizonte. Me puseram sentado em cima de um pneu, algemado, e com o meu material subversivo atrás, me machucando. Dentro do camburão de noite, de Brasília a Belo Horizonte.
Marx, Lênin, toda essa gente me machucando aqui nas costas. Quer dizer, material subversivo também tem essa função… Quando veio o golpe de Estado, numa Sexta-feira Santa, um negócio tétrico, eu fiquei em casa, lá em Brasília, não tinha mais nada para fazer. Felizmente, eu estava em Brasília; podia estar em Minas, seria pior… Fiquei dez dias esperando sem poder sair, comendo comida enlatada…
Jaguar – Mas por que isso?
Padre Lage – Se eu saísse, seria preso, a polícia estava prendendo todos os conhecidos. Mas, um belo dia, não aguentei mais. O Paulo de Tarso, meu amigo, que era ministro da Educação, estava na lista de cassados. Então pensei em visita-lo, era meu vizinho.
Saí, pra tomar um táxi e de repente um militar gritou: “Pare Lá!” Eu era muito conhecido. Passou um grupo de jovens, pensei que eram estudantes, os cumprimentei. “O senhor tá preso!” Falei: “Bom, eu já estava mesmo esperando por isso.” “Tá armado?” Tenho um canivete” (risos).
Dei meu canivete a ele. Desde esse dia perdi a graça de usar canivete, porque em Minas, desde menino, a gente usava canivete. Era muito importante. Fui preso e levado pra ver um tal coronel Serra, que eu nunca vi mais gordo. Me prendera, para isso: porque o coronel Serra estava me chamando.
Me levaram primeiro para o ministério do Interior, onde era a Polícia Federal, depois para o quartel da Polícia do Exército. Isso foi no 1⁰. de abril. Aí eu vi um rapazinho lendo material subversivo, era o oficial de dia. E estava lendo com muita atenção o discurso do Fidel Castro.
E a noite passando, ninguém me dava atenção… Então eu perguntei ao tenentezinho: “É interessante essa leitura, né? Para puxar papo com ele. Aí ele respondeu: “Pois é uma pena que esse sujeito seja comunista, porque ele diz a verdade de cabo a rabo.”
Depois chegou a PM de Minas, que aliás tomou a Universidade de Brasília, e ocupou militarmente a capital. Porque os tais revolucionários, os golpistas, não tinham confiança nas forças do exército, sediadas em Brasília. Eles me levaram ao comando da PM de Minas em Brasília.
Você sabe que tudo isso está relacionado com o estado subversivo de Minas Gerais. Se tivesse resistência, eles iriam refugiar-se em Minas e torná-la um país independente, ajudado pelos EUA, para fazer a “resistência democrática”.
O coronel Pádua me recebeu falando “Eu sou católico. Sou da religião de Dom Sigaud, não sou da sua não”. Dom Sigaud era arcebispo de Diamantina, latifundiário. Aí me ridicularizou: “Nós estamos aqui matando o tempo. Você sabe jogar xadrez?” Respondi que não.
“Então vamos conversar”, o que queria dizer interrogar. “Você conhece fulano-de-tal? “Conheço, sim. Líder comunista de Brasília”. “Onde é que o senhor se encontrou com ele?” “Na avenida W-2”. “E como é que o senhor encontrou com ele lá?” “É muito fácil, coronel. Um vinha de lá, o outro vinha de cá, nós, pimba, nos encontramos,” (risos).
Aí ele perdia a paciência, dava um murro na mesa, dizia que nós estávamos falando coisa séria. “Mas o senhor falou que nós estávamos matando tempo!” E foi nesse estilo que eu tive vários diálogos com os repressores durante a minha prisão.
Foi depois desse diálogo que me levaram no meio da noite de Brasília pra Belo Horizonte. E o material subversivo: Marx, Lênin, João XXIII, a Bíblia e Carlos Drummond de Andrade. Ele tem um livro chamado Fazendeiro do Ar, que o meu algoz, um piauiense chamado capitão Areia, pegou e disse: “É isso o que eles querem: botar os fazendeiros no ar”.
E era subversivo. Mas esse mesmo sujeito, dias depois, foi visitar o arcebispo, dom José Nilton, levando dois livros, para provar que eu era subversivo: A prostituição no Brasil, do frei francês Barruel de La Genest e a coleção de uma revista francesa, Maison Dieu. É uma expressão medieval que designava os templos, ou seja, as casas de Deus. Deve ter pensado que o título queria dizer Mãe Sem Deus, ou coisa parecida… (risos)
Jaguar – Mas o senhor tinha outros livros subversivos…
Padre Lage – Ah, tinha. Marx, Lênin, e coisas muito interessantes que perdi, como quase toda a coleção de Economia e humanismo do padre Lebret, que estudava o marxismo.
Jaguar – Mas, voltando: o senhor estava com Marx e outros companheiros no camburão…
Padre Lage – Chegamos ao DOPS de Minas. E veja uma coisa muito curiosa: A primeira coisa que disseram foi isso: “Agora só falta o careca e o Zé Aparecido!” O careca é o Magalhães Pinto, o José Aparecido todos sabem quem é… Quer dizer que a polícia mineira queria abotoar o Magalhães Pinto, veja que coisa engraçada.
Jaguar – Mas o Magalhães não foi um dos grandes articuladores da Revolução?
Padre Lage – Mas ele não convenceu os militares de que ele era líder, embora tenha sido um grande manobrista. Inclusive, na literatura que analisa esse período, a partir da grande obra do Dreyfuss, hoje nós temos uma mineira, a Heloisa Starling, professora da UFMG, que analisa o problema mineiro.
E ela mostra que, realmente, o Magalhães está completamente afastado da grande sedição. Ele veio depois. E não tinha a confiança deles. Se dependesse deles, do grande aparelho de repressão que fez o golpe de Estado, Magalhães seria preso. E o Zé junto com ele.
Jaguar – E como é que foi a vida no DOPS? Permitiram ler, por exemplo?
Padre Lage – No princípio, não. No primeiro momento, fiquei numa sala do tamanho dessa (mostra a sala do Pasquim), piso de cimento frio, setenta e tantos homens lá dentro, sem colchão nem nada, disputando um pedacinho de espaço.
Ficamos mais de um mês incomunicáveis. Nessa época, a tortura psicológica era enorme, viviam nos amedrontando. Mostraram um número do Estado de Minas em que Dom Sigaud dizia que eu devia ser fuzilado.
Dom Sigaud liderou a marcha, em Minas, com Deus, pela Família e pela Liberdade, e o tema dele era de que se devia fuzilar vinte dos principais líderes da revolução socialista, subversiva.
Realmente havia um projeto de fuzilar vinte, para ser exemplar. Eu era um dos vinte, você imagina. Fiquei preso um ano e alguns dias, até o habeas corpus, que veio no dia 3 de maio de 65.
Jaguar – E depois?
Padre Lage – Fui pra rua. Na saída, tinha uns amigos me esperando, uns jornalistas. O representante do arcebispo de Juiz de Fora – grande amigo meu, apesar de conservador – Geraldo Maria de Moraes, hoje arcebispo de Aparecida do Norte, mandou me convidar para um drinque no arcebispado, porque o interesse dele era justamente dar a todos a impressão de estar me protegendo, para que eu não fosse preso de novo.
Normalmente, eu devia ser preso de novo, segundo os critérios daquele tempo, por outro processo qualquer. De todos os políticos, a única que me visitou foi Ivete Vargas, depois do habeas corpus, em Belo Horizonte.
Fui julgado e condenado em 29 de outubro de 65, a 28 anos de prisão. Nesse dia, entrei na embaixada do México, logo que soube da minha condenação, porque o governo mexicano só me receberia se condenado. O embaixador me recebeu pessoalmente, e fui parar no México. Fiquei por lá vinte anos.
Jaguar – O que é que o senhor fez por lá?
Padre Lage – Muita coisa… Inclusive fui ameaçado de expulsão umas três ou quatro vezes. Fui professor na Universidade do México. Ensinava português. Aliás, não foi isso que me ameaçou de expulsão, foram as greves, que lá também tinha muita greve.
Jaguar – O senhor voltou para o Brasil com a anistia?
Padre Lage – Não, eu vim um ano e tanto depois, porque eu achava que não tinha cabimento aquela política pé-ante-pé: porque a minha postura é a de contestar o latifúndio, e até hoje isso é muito perigoso.
Então eu vim, vi que não tinha lugar, e voltei. Só vim depois de dez anos de trabalho na Universidade. Voltei para Belo Horizonte, e procurei um jeito de interessar-me pela política, andei tentando o PMDB – eu tinha aquela ideia muita bonita do PMDB, o PMDB lutou contra a ditadura.
Então eu achava que tinha um jeito qualquer de entrar naquilo. Vi logo que não podia. E procurei entrar no partido do Brizola, mas tive pela frente problemas gravíssimos, o partido em Minas é dirigido por um homem prepotente, malcriado, o José Maria Rabelo.
Jaguar – Ele já esteve dirigindo o Pasquim comigo, mas o Pasquim era muito pequeno para nós dois. Ele teve que sair (risos).
Padre Lage – Nós estamos lutando dentro do partido, como classicamente se diz, para tomar o poder interno, para poder depois tomar o poder externo. Que é para ver se transformamos o PDT de Minas num partido democrático.
Jaguar – O senhor acha que essa reforma agrária vai acabar saindo, do jeito que as coisas estão?
Padre Lage – De jeito nenhum! Não tenho esperança nenhuma nessa reforma agrária. Acho que a única vantagem dela é que o governo está obrigando a se falar nela.
A importância do tema é tão grande que o governo foi obrigado a fazer um falso ministério da Reforma Agrária e convidar um rapaz respeitável para ministro e aparentemente cuidar do assunto. Mas eles não querem nada e não vão fazer nada.
A reforma agrária não se faz dessa maneira, de cima para baixo. A nossa experiência diz que ela tem que ser conquistada pelos trabalhadores organizados, e eles é que vão determinar o estilo da reforma agrária, os lugares de preferência e criar a grande política agrária desse país, que está para ser criada.
Jaguar – E o Leonardo Boff?
Padre Lage – É um grande amigo. Em relação ao novo livro dele, não vai haver condenação. Eu acho que a Igreja progressista brasileira resolveu autodefender-se, defendo o Leonardo Boff. Se a igreja brasileira souber defender a Teologia da Libertação, só tem defesa.
Esta teologia é um grande acontecimento para o mundo subdesenvolvido, e para o Brasil em especial, assim como está sendo na Nicarágua. Sem a Teologia da Libertação, os conservadores tomarão o poder e adeus igreja brasileira!
Jaguar – E como é que nós vamos de Constituinte?
Padre Lage – Eu achava que a Constituinte seria mais interessante. Está um negócio muito chato (risos).
Jaguar – Como foi que o senhor largou a batina?
Padre Lage – Em outubro de 1968 houve a matança de Tlatelolco, no México. O exército cometeu um genocídio matando quase mil pessoas. Denunciei o fato à imprensa internacional e o governo mexicano, de conluio com a igreja me deu o ultimato: ou eu ficava na igreja e era expulso do país, ou deixava a igreja e seria tolerado. Como eu não tinha para onde ir, larguei a batina.
Jaguar – Mas o senhor, se quiser, pode voltar ao seio da Santa Madre.
Padre Lage – mas tem o problema do celibato. É que me casei com uma mexicana, Maria Elena Camacho, e agora tenho um filho de 12 anos, Sérgio.
Jaguar – Fale sobre a sua candidatura a senador nas últimas eleições.
Padre Lage – Gastei 10 mil cruzados e tive 700 mil votos.
Jaguar – Pô, como tem comunista em Minas!
“A reforma agrária é tão importante que o governo fez um falso ministério para cuidar do assunto. Mas eles não querem e nem vão fazer nada”.
[O Pasquim, 28.5.1987. Hemeroteca BN-Rio/Pesquisa: MCS]
Excelente reportagem!
A boa e consciente “Desobediência Civil”. Parabéns pela matéria.