Escrever para não esquecer: Ignácio de Loyola Brandão e Ana Maria Machado refletem sobre trauma, ficção e sobrevivência na ditadura militar
Fotos: Carlos Cruz
Mesa de encerramento do Flitabira destaca a literatura como ferramenta de enfrentamento ao autoritarismo e aos apagamentos da memória histórica
Na noite de sábado (2), o teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (FCCDA) recebeu a mesa de encerramento do 5.º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), reunindo dois dos maiores nomes da literatura brasileira: Ana Maria Machado e Ignácio de Loyola Lopes Brandão.
A conversa foi mediada pela escritora e jornalista Bianca Santana. Ambos membros da Academia Brasileira de Letras e vencedores do Prêmio Machado de Assis, os autores compartilharam experiências sobre jornalismo, censura, criação literária e o papel da cultura na resistência democrática à ditadura militar (1964-85).
Bianca Santana, autora de A vida de Sueli Carneiro e curadora de diversos festivais literários, inclusive do Flitabira, abriu a conversa destacando a trajetória dos convidados e o desafio de mediar uma mesa com tamanha densidade. “Eu estou nervosa, vou olhar para vocês, vocês vão me ajudar e vai dar tudo certo”, disse, arrancando risos do público.
Jornalismo como escola de escuta e disciplina

A primeira pergunta da mediadora foi direta. “Como o jornalismo ajuda e ou atrapalha o escritor?”
Ana Maria Machado, que começou sua carreira na imprensa nos anos 1960, respondeu evocando uma frase atribuída a Hemingway: “O jornalismo nunca fez mal a um escritor, desde que largado a tempo.”
Para ela, a prática jornalística ensina observação, disciplina e atenção aos detalhes. “Jornalismo é detalhe. Ensina a escrever com precisão e a trabalhar todo dia.”
Loyola Brandão, que iniciou sua carreira no jornal Última Hora, reforçou o papel do jornalismo como escola de curiosidade e escuta. “O jornalista é um curioso. Aprende a perguntar, a observar, a olhar o tempo inteiro.”
Ele compartilhou episódios marcantes da redação, como o convívio com Nelson Rodrigues e a experiência com a censura durante a ditadura militar. “Tudo que era proibido, eu jogava na gaveta. Um dia, percebi que aquilo era um livro.”
Assim nasceu Zero, romance distópico publicado inicialmente na Itália e censurado no Brasil.
A literatura como enigma e resistência
A mesa também refletiu sobre o papel da literatura diante do autoritarismo. Bianca Santana relembrou o recente ato interreligioso realizado em 25 de outubro, na Catedral da Sé, que marcou os 50 anos do assassinato de Vladimir Herzog.
Na cerimônia, a presidente do Superior Tribunal Militar, Elizabeth Rocha, pediu perdão pelos crimes cometidos durante a ditadura. “O Estado brasileiro nunca havia pedido perdão”, disse Bianca, dirigindo-se aos autores que enfrentaram diretamente a censura prévia e a repressão do regime militar, de triste memória.
Ana Maria Machado, que foi presa e exilada, refletiu sobre como seus romances elaboram os traumas da ditadura. “A literatura não é palavra de ordem, ela é enigma”, afirmou.
Obras como Tropical Sol da Liberdade, O Mar que Nunca Transborda e Canteiro de Saturno abordam o exílio, a violência do Estado e os movimentos pela anistia, sempre com protagonistas femininas. “A ditadura recaiu sobre as famílias, sobre as mulheres. Era a ditadura da mátria, sofrida pela mátria”, salientou.
O poder da imaginação contra o silêncio
Loyola Brandão compartilhou o processo de criação de Zero, romance que se tornou símbolo de resistência. “O Brasil era um país despedaçado. Prisões, torturas, explosões, mortes. Eu não estava entendendo nada disso.”
A partir de recortes censurados e experiências pessoais, construiu o personagem José, um matador de ratos, e a personagem Roda, inspirada por uma mulher que viu em um restaurante giratório. “Juntei José e Roda, juntei todas as confusões, e ali nasceu Zero.”
O livro foi recusado por editoras brasileiras, mas publicado na Itália pela Feltrinelli, com apoio da professora Luciana Stegagno Picchio.
“Quando saiu na Itália, um adido militar da Embaixada de Roma mandou um recado para o Brasil dizendo que eu estava denegrindo a imagem do país. E que eu ia sofrer as consequências.”
Loyola relatou ameaças, vigilância e episódios de medo, como a missa ecumênica em homenagem a Vladimir Herzog, cercada por policiais. “Até hoje eu tenho medo quando lembro daquele momento.”
Em Cuba, em 1978, ele participou de uma reunião com exilados ao lado de Chico Buarque e Antônio Callado. “Eles só queriam saber qual é a ideia da anistia? Nós vamos voltar?”
Ao ser abordado por Clara Charf, companheira de Carlos Marighella, foi questionado sobre sua ligação com movimentos armados, por narrar tantos detalhes da resistência ao regime militar. “Nenhum. Mas a imaginação ajuda a funcionar. É o primeiro poder de Zero.”
Memória, ficção e o tempo das famílias
Ana Maria Machado falou sobre Vestígios, seu livro de contos relançado em 2024. “Sempre achei que não sabia escrever contos, mas durante a pandemia percebi que havia um fio comum entre histórias que escrevi ao longo da vida: relações familiares e memória.”
O título provisório era Retrato de Família, e os 11 contos abordam diferentes tempos e afetos.
A escritora e jornalista também contou que Tropical Sol da Liberdade nasceu da urgência de escrever sobre a relação mãe-filha enquanto sua mãe enfrentava uma doença terminal. “Queria que ela pudesse ler esse livro ainda.”
A obra, como outras de sua autoria, mistura elementos íntimos com reflexões sobre o impacto da ditadura nas mulheres e nas famílias brasileiras.
A mesa encerrou o festival com uma reflexão sobre o papel da cultura como porta-voz da sociedade. “Toda a cultura resistiu muito”, disse Ana Maria. “A literatura, o teatro, a música, as artes visuais, todos reagiram.”
Encerramento

A agenda de domingo (2) contou com mesas dedicadas à literatura infantojuvenil, oficinas de escrita e ilustração, apresentações musicais, sessões de autógrafos e uma celebração coletiva da palavra como ferramenta de transformação.
O festival reafirmou seu papel como espaço de escuta, formação e resistência, especialmente em tempos marcados pelo avanço de forças obscurantistas e negacionistas — como o massacre no Rio de Janeiro, citado em quase todas mesas.
Mais do que um evento literário, o Flitabira movimentou a cidade com temas que pautam o futuro da humanidade: justiça social, memória, identidade, meio ambiente e diversidade.
Ao reunir vozes como Conceição Evaristo, Milton Hatoum e Jeferson Tenório, o festival reafirma sua relevância no calendário cultural brasileiro e sua aposta na literatura como farol em tempos de escuridão.
Para assistir a transmissão da programação do 5º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), clique aqui.










A Flitabira tem muito para melhorar. Que tal dar oportunidade para todos escritores que expõe os livros falar?