O livro do bebê
Agnes Herczeg (1968-), da Hungria
Maria Julieta de Andrade Drummond
Remexendo numa arca normanda, onde havia retratos, radiografias, bulas, textos de conferencias, originais incompletos, cadernos escolares, caderninhos com pensamentos infantis, receitas manuscritas de cozinha, estampas de Primeira Comunhão, contas e recibos, poemas soltos, versos traduzidos, rascunhos de cartas, bilhetes ilegíveis, gravuras enroladas, recortes de jornais e revistas e um sem-fim de papeis que configuram o tempo de uma pessoa, dei com um velho Livro do Bebê, do começo dos anos 30, em perfeito estado de conservação.
Comecei a folheá-lo, distraída, mas acabei lendo-o de ponta a ponta, tocada pela ternura e minuciosidade com que um jovem casal mineiro de então conseguiu fixar nele, com caprichada caligrafia, os primeiros acontecimentos da vida de sua primeira filha.

Pareceu-me, ao terminar a leitura, que o interesse dessas anotações transcendia o âmbito estritamente familiar a que se destinavam e poderia até servir como testamento de uma época simples.
Em que as crianças nasciam em casa e os pais tinham sossego e lazer para dedicar-se diariamente a misteres delicados. Transcrevo, ao acaso, algumas paginas, redigidas indistintamente pelo pai ou pela mãe de certa menina antiga:

OS PRIMEIROS PRESENTES – antes de nascer, Bebê já recebera os seguintes presentes: uma camisolinha de opala cor-de-rosa, bordada de branco, e um chocalho de celuloide, oferecidos por sua Tia Violeta, e um cobertor de lã, também cor-de-rosa, pela vovó D. Lalá.
No dia em que nasceu, Bebê teve seu patrimônio enriquecido com o presente de 100$, para comprar uma cama.
Dado pela sua madrinha; e mais tarde ganhou ainda: 30$ para comprar um chocalho, dados também pela madrinha; um medalhão de prata oxidada, montado sem galalite e representando o Menino Jesus, para a cabeceira da cama, por sua avó d. Lalá; uma touquinha branca, de jérsei, por sua Tia Violeta; uma outra, também de jérsei e um par de sapatinhos de lã cor-de-rosa, por sua Tia Margarida; uma medalhinha de N. Sra. da Conceição, por D. Elódia; Uma figa de coral encastoada em ouro e um paletozinho de flanela branca, bordada a seda, por Lilico; um conjunto de paletó, sapato e gorro de tricô de lã cor-de-rosa, por Maria Fernandina; e uma estampa de N. Sra. do Carmo, por sua madrinha D. Agustina.

O PRIMEIRO BANHO – foi dado em Bebê por D. Hilária Trancoso, parteira, auxiliada por Tia Etelvina, logo após o seu nascimento.
Assistiram ao banho, além dos pais, o DR. Epaminondas Freire, médico a quem coube a tarefa de trazer a filhinha ao mudo e que se saiu admiralvente da empreitada; as avós, Tia Violeta e a empregada Maria do Amor.
A expressão “logo depois do seu nascimento” deve ser entendida: “uma hora depois”. Porque Mamãe não passou bem, Bebê ficou uma hora sem banho.

A PRIMEIRA FOTOGRAFIA – de Bebê foi tirada por seu Tio Nico Freitas, na tarde de 20 de março, terça-feira. É um instantâneo de Kodak e a máquina foi emprestada por um amigo do pai do Bebê, Waldomiro de Assis. Fizeram-se demorados preparativos para esse ato.
A avó materna, D. Lalá, que aparece na fotografia, tendo ao colo sua netinha, usou um vestido novo. Mas na hora de tirar o retrato, Bebê não quis fazer pose e fechou os olhos, desatando a chorar.
Sua mãe foi lá fora trazer uma colherzinha de açúcar, para adoçar o bico de Bebê e fazer com que ela sossegasse. Enquanto isso bateu-se a chapa, e a mão que nela figura, à direita, é a da mãe de Bebê, empunhando a colherzinha pacificadora. O retrato foi tirado no quarto de vestir.
AS PRIMEIRAS MAMADEIRAS – Bebê progredia com o Larosan, receitado pelo Dr. Epaminondas e administrado duas vezes ao dia, mas, desejosa de ver a filhinha querida ainda mais gordinha, Mamãe escreveu para o grande especialista Dr. Germano Witrock que, estabelecido com uma enorme clínica no Rio de Janeiro, [Rua do Ouro, 7] dava consulta aos domingos em O Jornal.
Para aí dirigiu a carta, vindo em seguida a resposta: dar, logo após as mamadas, 30 gramas de leite, 30 de cozimento espesso de aveia e uma pitada de açúcar. Posto imediatamente em prática o novo regime, começou o franco progresso de Bebê. A partir de então, qualquer anormalidade e Mamãe recorria imediatamente às duas pessoas de sua inteira confiança: o Dr. Epaminondas e o DR. Witrock.
O PRIMEIRO DENTINHO – Bebê andava nervosa, atacada por uma forte diarreia. Coçava com impaciência as gengivas, o que denunciava breve aparecimento dos dentinhos.
Com efeito, na manhã de 3 de novembro Vovó Agustina conseguiu, a custo, abrir a sua boquinha e, na maior alegria, anunciou a todos a chegada do primeiro incisivo esquerdo de Bebê, no maxilar inferior.
Não querendo desobedecer à credulidade antiga, prometeu um presente branco à afilhadinha, que no dia seguinte recebeu a dádiva anunciada: um lindo corte de voile suíço, branco como aquele primeiro dentinho.

A PRIMEIRA PROMESSA – a Bebê foi feita pelo avô Paulo, muito afeiçoado à netinha, em 30 de setembro, na frente de Papai e Mamãe: “Minha filhinha, se no dia em te casares Vovô ainda estiver vivo (há de estar, Santa Terezinha é muito grande!) dar-te-á um dote de 20 contos de réis”.
A PRIMEIRA BONECA – de Bebê, deu-lhe a mamãe. Era de feltro, vestida de vermelho e tinha cabelos amarelos. Como fosse comprada na casa A Guanabara, herdou este nome para seu batismo.
Bebê ficou radiante: abraçava-a, beijava-a, não deixando ninguém encostar-lhe o dedo. Recebeu-a em casa de Vovó Lalá, no dia 7 de dezembro.
E assim, o primeiro Carnaval, em que Bebê, fantasiada com saiote de dançarina, que a mãe levara uma semana confeccionando em cetim vermelho, não pode sair de casa, devido à gripe que apanhara.

Os primeiros passos, na sala de visitas; antes, a primeira palavra, que foi: Te-té-ia; a primeira sopa; o primeiro par de sapatinhos de pelica, número 17; o primeiro Natal; o primeiro aniversário, cheio de balões; o primeiro cacho de cabelo cortado – o primeiro tudo de Bebê, visto, revisto e conservado até hoje, através dessas páginas escritas a quase quatro mãos, com paciente amor.
[Livro: O Valor da Vida, Maria Julieta Drummond de Andrade. RJ: Nova Fronteira, 1982 – Pesquisa: Cristina Silveira]