O lindo corpo nas teias de aranhas do Carlos
Imagem: Diva Martins Lage, CNSD/1944 – Acervo: Helena Rosa
Drummond é lindo! (Caetano Veloso, compositor. JB, 1982)
Sob o título de Teia de Aranha, encontra-se publicado uma versão de 1922, uma miscelânia de assuntos e depois em 1923, em forma de aforismo e epigramas. (MCS)
1 – Teia de Aranha
Carlos Drummond
Nada como a distância. A distância espiritualiza.
Viaja… Abandona o teu amor. (Verdade seja que isto não te dará nenhum prazer…)
***
Salomé vale mais que a arte toda.
Salomé foi a única mulher que Shakespeare não inventou.
Salomé devia ser amante de Oscar Wilde.
***
Uma mulher bela só deve beijar o seu corpo…
***
À margem de Schopenhauer: Nem a dor é positiva…
De Oscar Wilde
Uma definição das mulheres: são esfinges sem segredo.
***
Vinte anos de romance fazem duma mulher uma ruina, mas vinte anos de casamento fazem dela uma espécie de edifício público.
***
O único pecado da mocidade é envelhecer! Também na vida como na arte. E a maior tragédia, para a mocidade, é envelhecer na arte primeiro que na vida. Desde que o artista se foi, não resta senão solidão de um homem, espantado ante os espelhos…
(Para Todos (Rio), 28/4/1923. Hemeroteca da BN-Rio)
2 – Duas anedotas vulgares
I
Nunca, dormia em casa: dormia fora, dentro da noite. Todas as manhãs, fugindo à boêmia das ruas, perguntava ao criado se viera alguma carta. A resposta era sempre negativa, ele sentia um desconsolo apunhalante.
Um dia, chegou a carta, um pedaço banal de papel nas mãos de um carteiro banal. Foi o seu dia feliz, o seu grande dia. Não saiu. Pela noite, foram-no encontrar pendente do teto, olhos arregalados, boca aberta, língua de fora – enforcado.
A gente deve sempre procurar um motivo…
II
“Coitado do homem feliz, coitado do homem feliz!” – diziam quando ele passava. E ele passava, triste e humilhado, ao longo das outras criaturas, que não eram felizes. Sua Felicidade era gorda, suarenta e vermelha, e terrivelmente ridícula.
Pisava-lhe os calos, amarrotava-lhe a roupa, fazia-o comprar só bilhetes brancos. Ele ia a um cinema – e pensam que a sua Felicidade cabia lá dentro? Queria tomar um bonde – e não havia lugar no bonde para a sua Felicidade. Todos lamentavam a sorte do homem feliz…
Procurou libertar-se de tamanho peso. Uma noite, à beira de um cais, fitou as ondas, pensou o último pensamento e mergulhou na água sussurrante. A Felicidade caiu-lhe em cima, puxando-o pelos cabelos, a salvá-lo da morte e a condená-lo à vida. Continuou a viver.
E o piedoso lamento crescia no ar, imenso e fúnebre, como um dobre de sinos, quando ele passava: “Coitado do homem feliz, coitado do homem feliz!”
O que ficou de um romance
Não me faças mal, meu amor, não toques mais ao piano essa melodia de felicidade e ternura, essa grande e perturbadora melodia que encheu o nosso passado perdido…
Eu quero que a nossa mágoa flutue indefinidamente sobre nossas cabeças, pairando, como um pássaro melancólico, acima deste mal destino…
Não me faças mal, meu amor: toca ao piano qualquer coisa de angustiosamente triste, sufocante… Devemos viver e amar a nossa dor, essa dor que será – quem sabe? – a nossa única e eterna alegria…
*******
Já viste a paisagem sobre a qual anda a cair a luz arroxeada do nosso crepúsculo?
Um autônomo indeciso espalhou cambiantes de ouro velho nas folhas das árvores; sombras viúvas vagueiam pelas alamedas cinzentas, sofrendo o abandono dos sentidos. O ar adoeceu de cansaço, e nevoeiros longínquos diluem cada vez mais a mancha longínqua das montanhas…
Tudo, em torno de nós, recebe a influência desse crepúsculo d’alma… Todas as coisas espelham a nossa tristeza. E a nossa tristeza anda a espelhar todas as coisas, tristemente…
*****
Acende a lâmpada e escuta, meu amor: Lá fora, a gente sofredora e inquieta persegue a felicidade, pelas ruas doidas… Cá dentro, espiritualizamos a nossa mágoa, fazendo-a mais casta, e gozando o contato de sua sombra amortecida.
Viemos por um caminho muito longo, muito longo, de onde os rumores e as criaturas se foram ausentando, pouco a pouco… E por aqui ficamos os dois, solitários, um diante do outro, um abraçado ao outro, um confundindo o seu desalento com o desalento do outro…
A lâmpada, agora, siluetisa na parede os nossos desalentos abraçados… Lá fora, – ouves? – há um ruido de gente a perseguir o amor, pelas ruas doidas…
Wilde
A volubilidade literária de Oscar Wilde é espantosa: vae da tragédia à anedota. No mesmo volume em que se lê “O crime de lord Arthur Saville”, pode ler-se “O milionário modelo”. Na sua vida, porém, Wilde teve mais maturidade: foi da anedota à tragédia.
***
É curioso notar como Wilde, que detestou a vulgaridade, soube aceitá-la sempre. Nas suas páginas passa uma rajada de paradoxos e negações, e, no entanto, os seus tipos – os seus tipos reais – vivem a vida de todos nós, amam, sofrem, precisam de dinheiro, matam e morrem.
Devemos reconhecer que nada existe aí de soberanamente original ou imprevisto… Afinal, Oscar Wilde zombou da vida, e nem por isso conseguiu modificá-la.
***
“O fantasma de Canterville” é uma criação bem superior as de Poe e Hoffman. Chega a ser um espectro absolutamente humorístico, e não levanta os cabelos do leitor incauto. Reconcilia-nos com a classe dos fantasmas, que é numerosa e antipática. Nesse conto, a ironia de Oscar Wilde é de uma piedade adorável.
O pobre duende que arrasta tão incomodas correntes e sofreu tão pitorescos desastres, nada oferece de trágico e apresenta muito de humano. Sendo um fantasma para uso de americanos ricos, ele confunde a sua vida com a dos circunstantes, e. assim, podemos tirar das suas aventuras mal sucedidas, motivo para um sorriso e uma exclamação de pena. Misturando o sobrenatural com o natural, Oscar Wilde foi delicioso, e procurou, ainda uma vez, zombar da vida…
***
Wilde teve necessidade do cabotinismo para afirmar-se. Antes da sua obra, compreendeu que era preciso criar a sua legenda. Eu pergunto mesmo: De que valeriam os seus poemas em prosa, se ele não levasse pelas ruas de Londres, uma flor entre os dedos? A primeira natureza de Wilde sempre foi artificial. A segunda é que o matou.
***
Eu tenho um pequeno museu, divertido e complicado, onde vou guardando coisas deliciosas e incríveis, recordações, futilidades… Dormem lá, por exemplo cartas amorosas de rompimento, duas presas de viado, violetas murchas, cinco anéis de cabelos louros, quatro de cabelos pretos, um chocalho de cascavel, um leque, muitos retratos, penas de pavão, um autógrafo de José Bonifácio, selos do Egito…
E não é tudo. Há também uma unha de chinês, fina e amarela como uma chama de fósforo, duas porcelanas duvidosamente chinesas, um boneco de molas, um porta-seios, moedas do Império…
Mas, estou a fazer-lhe um relatório!
Para as pessoas que vivem pouco intensamente, isto é, para os que se colocaram à margem, não há nada como um desses minúsculos museus, que alegram e consolam… Quanta coisa não guardam eles! E o que lembram, o que exumam!
Vem-nos à memória vozes distantes de mulheres, atrapalhações sentimentais, viagens, aventuras… Uma liga de mulher dá sempre saudades… saudades de uma perna e de uma mulher inteira, com as duas pernas. E a gente lembra aqueles seios velados para todo o mundo, e em que nós saciamos a nossa volúpia…
E, aqueles cabelos em que uma bendita tesoura cortou uns fios de ouro ou de treva… Uma cobra na estrada, um leque perdido no camarote, flores que uns dedos finos souberam colher… E, até as moedas, até o autógrafo revivem alguma coisa, alguma figura…
Não há nada como um pequeno museu da vida, nem mesmo a vida!
Bilhete ao teu corpo
Que lindo é o teu corpo! É uma estátua vivendo… é uma alegria em forma de beleza… é um instante de perfeição… Dir-se-ia que não és propriamente mulher… ou, antes, que és mulher, mas muito, e diversa das outras… O teu corpo é a tua única alma, e que alma fascinadora! Há ritmos quietos na tua carne. Há harmonias caladas no teu corpo. Escuto-as, e sinto a sinfonia de tua nudez…
Dentro do teu corpo, como o sangue há de circular contente! E como são felizes os teus sentidos! E que feliz é tu, pela glória do teu corpo! Só de imaginá-lo, num leito juncado de rosas…
– Não escreva isto, moço! Olhe a liga da Moralidade!
[Illustração Brasileira Rio), 25/12/1922. Hemeroteca BN-Rio]