O Itabirano Cornélio Penna
Desenho de Cornélio Penna
Por João Camillo de Oliveira Torres
“Todas as pessoas que nos cercam são mistérios impenetráveis.”
Quero crer que nenhum elogio fúnebre seria mais agradável ao romancista que acaba de encerrar a sua carreira do que atribuir-lhe a condição de itabirano. Nascido embora em Petrópolis que, sendo uma cidade imperial, não pertence a nenhuma província especifica, sendo de todas, Cornélio Penna, descendente, por linha paterna do velho povo do Girau sentia-se unicamente mineiro e de Itabira, não obstante ser, pelo lado materno, paulista de quatrocentos anos. Ou quase.
A sua introspecção, a sua fidelidade aos valores permanentes, o seu amor ao passado, o seu desinteresse pelo bulício mundano.
“esse orgulho, esta cabeça baixa
É o hábito de sofrer que tanto me diverte
é doce herança itabirana…”
São palavras que Carlos Drummond de Andrade disse em verso e ele repetiu em prosa. É aliás, fácil, mostrar a semelhança entre a arte de um e de outro.
A diferença maior é que Cornélio Penna, itabirano, nascido e criado no exílio, era mais consciente dos valores próprios do passado mineiro, daí a sua intransigência monárquica e a sua fé católica, igualmente vivida com intensidade.
E nada melhor ilustra a sua indiferença pelos vãos propósitos dos homens, como o fato de certa vez ter arranjado um emprego público para, através da rotina da repartição, conservar um certo contato com os homens vivos e, depois, por tédio, ter desistido do emprego, para dedicar-se à sua arte meditada e trabalhada e às suas admiráveis coleções de antiguidades e objetos de arte.
Não era um escritor fecundo destes capazes de manter uma editora somente com a sua produção. Em cerca de vinte anos de atividade literária, apenas quatro romances. Isto não impediu que todos marcassem época na ficção brasileira e que ele se tornasse um acontecimento literário dos de maior importância na vida brasileira.
Dono de uma técnica sua, numa espécie de ironia sutil e trágica ao mesmo tempo, transformava nomes, caracteres e situações reais, até conseguir desta síntese de elementos estranhos entre si, uma transliteração da realidade, uma fusão de planos, de modo a trazer a expressão do mundo de formas, situadas além da realidade num verdadeiro meta-realismo, no qual a realidade presente surge como irreal e a fantasia como efetivamente atual.
Tudo, aliás, oriundo do mistério central da arte corneliana: a impenetrabilidade do ser das pessoas e fatos que nos rodeiam. A vida é um conjunto de situações essencialmente obscuras, pois, não conseguiremos jamais descobrir a verdadeira significação das pessoas e principalmente jamais conseguiremos expressar a nossa própria essência.
Todos os mitos contidos nos romances de Cornélio Penna, principalmente os do ciclo itabirano Fronteira, Dois Romances de Nico Horta e Repouso, revelam este meta-realismo de sua técnica e de sua concepção de vida. Aliás, uma frase do segundo romance desta série mostra-nos o autor fazendo a teoria de seu meta-realismo “É muito perigoso compreender as coisas, em lugar de vê-las”.
As coisas e principalmente as pessoas. Ora, as coisas em sua consistência efetiva não são vistas, são pressentidas, pois afinal queremos conhecê-las. Daí o perigo de viver, assinalado por outro romance, tão diferente literalmente falando e tão semelhante em concepção da existência, qual seja Guimarães Rosa.
O perigo da vida consiste, esta a verdade, na procura da realidade intima das coisas; conhecer e não ver as coisas. As coisas possuem uma aparência, que é a realidade de todos os dias, nos quais um homem é um homem e um gato é um gato. Se, porém, descobrirmos o mistério das pessoas como em Grande Sertões-Veredas, defrontamo-nos com uma Presença, que não é evidentemente deste mundo.
Ora, este meta-realismo ou transrealismo, é a essência da obra de Cornélio Penna, visível como disse, em quase todos os mitos centrais de seus romances. Nasce isto da contradição entre o que poderíamos chamar “existência real”, a de todos os dias, e existência autentica na qual efetivamente vivemos e que não é dado a ninguém perceber exatamente. Quem era a “viajante” de Fronteira? E que significa exatamente o romance de amor entre a personagem central e a “santa”?
E seria, mesmo, um romance de amor? Em Dois Romances de Nico Horta, temos uma quase solução. Cornélio Penna, de certo modo, deu a chave do mistério: o perigo está em conhecer e não em viver. Nico Horta representa a vontade de conhecer, o espirito analítico, é o irmão gêmeo, enfezado e malvisto, enquanto que o outro irmão, que ignora a angustia e despreza o pensamento pela ação, é esplendido e glorioso.
Quer dizer: se aceitamos as coisas como surgem diante de nós, se as vivemos, toda problemática desaparece e descobrimos a própria felicidade. Mas, então viver deixa de ser perigoso? Absolutamente, pois, se abandonamos a angustia e contentamo-nos com a vida lisa e inautêntica, a vida sem a preocupação de decifrar o mistério, caímos na pura animalidade.
Se fosse possível ao homem aceitar a vida lisamente sem a procura do mistério das coisas, teria cometido um suicídio metafisico. Seria feliz, por certo; mas a sua grandeza teria algo da solene grandiosidade com que o touro olha o rebanho. Feliz como um boi; ruminante como ele.
Aliás, a angustia é inerente à existência autentica e cresce com a importância da situação do homem. Pascal, em página clássica, fala-nos da angustia dos reis quando considerava a sua situação exatamente. Alguém já teve a coragem de aprofundar o que se passa na alma do Papa?
Em Repouso, livro em que nada está em repouso, e a mesma inquietação sacode todas as páginas do romance, temos outra forma do mesmo desesperado mito – o antepassado imobilizado no leito, vivo apenas pelos olhos. O homem, em face do homem, é apenas isto: – um ser incapaz de expressar-se como um paralitico.
Sabemos que algo existe na mente daquele homem que não pode falar nem traduzir seus pensamentos por sinais de qualquer espécie. Não sabemos o que se passa dentro. O mesmo se deve dizer de qualquer outro e de qualquer situação.
Ora, acontece que o único tipo de conhecimento que nos interessa é este – o de procurar a realidade além das aparências o que diz-nos Cornélio Penna, é impossível. Todas as pessoas que nos cercam são mistérios impenetráveis.
Esta a razão de seu meta-realismo: tomar as realidades como sombras e procurar além. E que descobrimos do outro lado das sombras que nos cercam? O mistério. Algo que não conheceremos jamais. Como em A Menina Morta – o que importa saber está além de portas irremediavelmente trancadas. Ou acontece à noite.
[Correio Paulistano (SP), 30/8/1958. BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]