O dia que Pixinguinha marcou minha cabeça
Pixinguinha em sua última residência, o Conjunto dos Músicos, em Inhaúma
Fotos: Acervo Instituto Moreira Salles
Marcelo Procopio*
Pixinguinha tinha o hábito (epa, opa) de toda quarta-feira pela manhã ir à igreja de Nossa Senhora da Paz em Ipanema, na rua Visconde de Pirajá, em frente a praça Nossa Senhora da Paz.
nesse tempo, desde 1971, por uns 18 anos, eu ia ao Rio e ficava na casa de minha irmã Virgínia na rua Visconde de Pirajá, a dois quarteirões da igreja de Nossa Senhora da Paz.
um amigo de lá me contou e tomei coragem e uma quarta fui na igreja Nossa Senhora da Paz.
vi Pixinguinha, só ele, lá perto do altar, sentado na segunda fileira de bancos.
na igreja quase ninguém. fiquei no canto esquerdo, meio escondido e observando Pixinguinha.
uma meia hora depois ele se levantou e veio caminhando vagarosamente pelo corredor central da igreja Nossa Senhora da Paz em direção a saída pra rua.
fui indo, entre bancos, na sua direção, até que fiquei bem na frente de Pixinguinha.
eu parado, olhando, admirado, pra ele, e ele parou ao ficarmos bem pertos um do outro.
olhei nos seus olhos ele olhou pra mim. fui incapaz de dizer uma única palavra. só admirava aquele cara alto, lindo e músico.
passaram-se uns poucos instantes. acho que entendeu minha admiração e propósito: olhar, vê-lo aquela única vez, o suficiente.
e Pixinguinha levantou a mão, brincou com meus cabelos compridos, segurou e acarinhou minha cabeça, sorriu e voltou a caminhada no sentido da rua.
eu, eu tinha ganhado não meu dia, nem minha vida, tinha ganhado uma marca especialíssima das mãos de Pixinguinha na minha cabeça.
sai andando feliz e devagar. fui pra praia, onde tinha o píer que entrava como uma ponte sobre o mar. o píer era obra pra levar o esgoto pra longe de Ipanema. longe, mas nem tanto.
o píer virou ponto. lugar de encontros. estavam lá o pessoal da Tropicália, da Bossa Nova, do teatro, do Cinema Novo, os malucos, as malucas (as meninas ganharam vida própria), a moçada. Enfim, o baile todo.
fiquei olhando em silêncio aquele horizonte infindo. até que uns amigos novos chegaram.
contei a minha aventura na Nossa Senhora da Paz e do meu silêncio.
eles zoaram da minha cara e do jeito mineiro de ser. depois nos reintegramos a vida pela liberdade e acendemos um baseado.
– era fevereiro de 1972
um bônus
Até hoje, quando a Banda de Ipanema passa em frente à Igreja de Nossa Senhora da Paz durante os carnavais, os músicos-foliões tocam “Carinhoso” em homenagem ao mestre que segue vivo em sua fundamental obra para a cultura não só brasileira, mas de todo o mundo. (Diário do Rio)
bônus 2
Pixinguinha morreu em 1973, dentro da Igreja de Nossa Senhora da Paz, no dia em que se tornaria padrinho do filho de um amigo. uma hora antes do batizado.
sonho meu, desde que o amigo me contou seu hábito: eu o vi, ele me viu.
*Marcelo Procopio é jornalista.
Que linda historia. Você demorou mas reapareceu na mais elevada chegada. Saudações, oh!, filho de Ciro.
Oi Procopio, que delícia de matéria, leve e alegre.
Ter visto Pixinguinha é mesmo um privilégio.
Beijos de saudades