O Centenário de Itabira – outubro de 1933
Foto: Jordan Young - auto retrato
“Um dia, quando o Cauê for derretido para as necessidades do mundo até a consumação dos séculos, essas ruas trepidarão nas vertigens da era do aço. Mas peçamos a Deus que o rumor do progresso não apague as vozes antigas da ingênua e boa Nossa Senhora do Rosário de Itabira do Matto Dentro…” – Antônio Alvim
Em 30 de outubro de 1833, o povoado de Itabira do Mato Dentro é elevado à categoria de vila, ainda subordinada a Caeté – se instalando oficialmente em 7 de outubro do mesmo ano. Mas só em 9 de outubro de 1848 a vila ganha autonomia administrativa e política, quando vira município. É o que se comemora nesta quarta-feira (9/10/2024) – 176 anos de emancipação política.
Porém a sua história, como se sabe, é bem mais remota. Segundo o historiador Sebastião Rocha Pita, em seu livro História da América Portuguesa, a povoação de Itabira tem início no final do século XVII, quando os irmãos Salvador e Francisco Faria de Albernaz, bandeirantes paulistas, do alto do ponto culminante de Santana do Rio Preto (Cabeça de Boi), no hoje município de Itambé do Mato Dentro, avistaram o pico do Cauê e vaticinaram: “ali tem mais ouro”.
E para cá vieram garimpar ouro de aluvião no local onde muitos anos depois ficou conhecido como córrego da Penha. Portanto, a história de Itabira já conta com mais de 300 anos de povoamento – e colonização e genocídio dos povos originários.
100 anos depois de Itabira virar vila, o itabirano, ex-deputado, ex-prefeito e ex-editor do Jornal de Itabira, e um dos fundadores da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Antônio Camilo de Faria Alvim (1905-1978) publica a crônica O Centenário de Itabira, no jornal Minas Gerais, em 19 de outubro de 1933.
Isso no mesmo ano em que o seu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade também publica a crônica Vila de Utopia. O Centenário de Itabira foi republicado pelo jornal O Cometa Itabirano em outubro de 1998, ano do sesquicentenário de Itabira.
Como escreveu o escritor alemão Thomás Mann, no “propósito” do livro A Montanha Mágica, ao frisar que a história de Hans Castorp não seria conhecida num abrir e fechar de olhos, e que “não lhe bastarão sete dias de uma semana, nem tão-pouco sete meses, mas decerto não chegará – Deus me livre – a sete anos” para concluir a sua leitura, assim o leitor deste site certamente não conclui a leitura de O Centenário de Itabira numa só quarta-feira de 9 de outubro de 2024.
Espero que quem se aventurar nessa prazerosa leitura gaste o tempo que for necessário, mas não deixe de ler até o fim a crônica O Centenário de Itabira. Para não mais consumir o precioso tempo do leitor, paro por aqui para que flânere com Tônico Alvim por Itabira do Mato Dentro na companhia de alguns dos personagens históricos dessa vila de utopia. (Carlos Cruz)
O Centenário de Itabira
Por Antônio Alvim
Se povo feliz é aquele que não tem história, nós, itabiranos, podemos considerar-nos felizes. Nossa história, não direi que seja nenhuma, mas será pouca. Ela se poderia contar em quatro palavras, como na opinião de M. Jérôme Caignard, dizendo de um sábio de Pérsia que assim resumia para o seu rei a história dos homens: Sire, eles nasceram, viveram, morreram.
Chegamos muito tarde a um mundo muito velho: o próprio chamado mundo novo já era antigo de dois séculos quando a terra mineira nasceu para a civilização. O povoado de Minas foi um milagre de ouro. Cedo, as riquezas em pedras e metais preciosos, que supunham existir no planalto central, tornaram-se a preocupação dominante dos governadores-gerais e o sonho dourado do colono cobiçoso.
Chegava até a beira-mar, onde, numa estreita orla, concentravam-se as primitivas populações, a notícia de que, além, para dentro do continente, tesouros fabulosos dormiam à flor da terra, ao alcance do primeiro braço audacioso. Uma dificuldade enorme, porém, embaraçava a conquista do sertão. Entre ele e o litoral, a muralha da lenda. Uma flora maravilhosa e uma fauna imprevista cercavam as terras encantadas onde o El Dourado existia.
Para o espírito rústico e timorato dos colonos, a geografia do país era qualquer coisa de fantástico e terrível: serras de cristal, tão altas que nem os pássaros as podiam transpor, árvores de vidro e de sabão: rios caudalosos, que de repente desapareciam pela terra a dentro; e gigantes medonhos, um olho só no meio da testa, os pés para trás que vigiavam, solícitos, as fronteiras daquele país das mil e uma noites…
A pouco e pouco, no entanto, à proporção que aumentava a cobiça, diminuía o medo, e o interior ia sendo desbravado pelas bandeiras audaciosas. Até o território que é, hoje, o de Minas, chegaram, em épocas remotas, vindos do leste, Espinosa – o primeiro cristão que pisou no solo mineiro – Tourinho, Adorno e outros.
Mais tarde, vinda do sul, uma corrente conquistadora e povoadora é inaugurada pelo famoso Fernão Dias, cuja figura de herói enche de fulgor o nosso passado. Mas corriam os anos sobre os anos e as riquezas tardavam. Foi por mero acaso, muito tempo depois das primitivas bandeiras, já quase no raiar do século XVIII, que o ouro, afinal, apareceu. Um paulista de Taubaté, acampado à sombra do Itacolomi, ao se desalterar no Tripui, retira do leito do córrego aquelas pedrinhas mágicas, que, por serem de ouro, ouro preto, do melhor quilate, dariam um novo sentido à vida da colônia.
“Foi sempre por um passo distraído,
que começaram todos os destinos.”,
canta magnificamente Raul de Leoni; verdade assim para os indivíduos, como para os povos. Por um passo distraído, descobre-se o Brasil; por outro, a riqueza que lhe transfigurou os destinos.
A economia brasileira, baseada na cultura do fumo e da cana-de-açúcar, entra no grande ciclo áureo. Senhores de engenho do Norte e de S. Vicente, criadores do Nordeste, mercadores da Costa, largam todas suas terras e ocupações e correm para as minas. Para as minas corre gente de toda parte, inclusive do reino, em tal afluência, que o governo de Lisboa, receoso de que o velho Portugal ficasse às moscas, pensa em proibir a emigração para o Brasil.
Como sempre acontece, o ouro tornou-se obsessão para aquela gente e não tardou que se fizesse acompanhar do seu clássico cortejo de grandezas e misérias. Torna-se realidade a desoladora profecia do padre Vieira: na região das minas é grande o luxo e o fausto, mas ao lado disso a fome e o ódio campeiam.
Tal como o mitológico rei Midas, a quem os deuses impuseram, como fatal castigo à sua ambição, o impossível alimentos de frutos de ouro assim, muitos desgraçados, os olhos e as mãos cheias de poeira dourada, morrem de inanição à beira do caminho.
O gado vindo do sertão baiano, bem como o plantio de roças ao lado das catas, asseguram o alimento dos aventureiros. As lutas e revoltas sangrentas que a cobiça suscitara – paulistas contra emboabas, revolta de 1720 – ficam para trás e sua lembrança arrefece.
Minas pacificada, feita capitania autônoma, começou a viver os seus grandes dias e em breve se torna o que é ainda hoje: a espinha dorsal do Brasil. As cidades se multiplicam, opulentas. Onde há pouco era o deserto e a mata virgem, florescem Ribeirão do Carmo e Vila Rica, Sabará e Vila da Rainha, São João Del Rei e Vila do Príncipe.
Assim transcorre, cheio de esplendor, a primeira metade do século XVIII, ao qual sucede o período de decadência da mineração. Isso tinha que acontecer: esgotaram-se a um tempo os veios auríferos e a capacidade tributária dos mineiros, aos quais Portugal sufocava com uma série de impostos odiosos, quintos, dízimos, subsídios diversos e não sei que mais de sangrias revoltantes.
1789 – Tomemos essa data, ponto culminante da história universal na Revolução Francesa, da história mineira na Inconfidência – tomemos a célebre data como um marco de referência.
Ao cair em França a Bastilha, e ao desmoronar-se em Vila Rica o castelo no ar dos poetas inconfidentes, já existia Itabira?
Nesta terra de liberdade, já haveria então um itabirano, isto é, um liberal que dessas livres montanhas mandasse aos revolucionários de aquém e de além mar um pensamento de solidariedade? Não sei se chegaram até aqui os ecos da rebeldia, mas é fora de dúvida que Itabira já era um povoado e um centro de mineração, muito antes de 1789.
O conhecimento de Itabira – o pico e as lavras de sua fralda – deve remontar aos primórdios do século XVIII, seguindo-se pouco depois o seu povoamento. Acredita-se que foram os irmãos Albernaz, bandeirantes paulistas, que aqui chegaram passando por Itambé, por volta de 1720, os primeiros homens que lançaram em nossa terra os marcos da civilização.
Por essa mesma época, estabelece-se nos terrenos da atual fazenda do Gaspar, segundo uma tradição corrente, o casal Bastos-Senhorinha, ele português, ela paulista, filha do grande Amador Bueno.
Dessa primitiva semente brotaram crescidos e multiplicados ramos de itabiranos. Eram faiscadores de córregos os primeiros moradores de nossa terra, e o ouro não lhes faltava, justamente na ocasião em que começava a rarear para os lados de Vila Rica. Os cunhados Francisco da Costa Lage e João Francisco de Andrade, no último quartel do século, são os grandes senhores das lavras itabiranas.
Descobrindo ricos filões na serra, deram ao povoado nascente um impulso formidável. Francisco da Costa Lage, carpinteiro amador e proprietário riquíssimo, em 1775, refaz de suas próprias mãos e com as madeiras e o adobe de suas terras, a igreja do Rosário, existente desde o começo do povoado. O que seria essa Itabira primitiva não é difícil imaginar. Na base do pico, densas florestas circundam uma risonha clareira no vale, onde o córrego da Penha rumoreja. Aí se levanta e alveja, como por toda parte entre o nosso povo católico, uma capela, pastoreando um pequeno rebanho de casas.
Da nossa primeira igreja, que recebeu a invocação de Nossa Senhora do Rosário, originou-se o nome dado ao lugar: Nossa Senhora do Rosário de Itabira do Mato Dentro. Itabira é a mola imensa que domina o vasto horizonte. Mais tarde, passa-se a chamar Cauê (lugar alto?) pelos africanos que aqui eram muitos à serviço das minas.
Itabira, pedra brilhante, segundo o significado corrente da palavra de origem indígena, denomina-se o povoado, arraial, freguesia, vila e finalmente a cidade. A expressão Mato Dentro designa toda a região ao oriente da serra do Espinhaço, a “grande serra”, no dizer dos antigos.
Nos primeiros tempos, como ainda hoje, nossa terra ficava um pouco fora dos caminhos do mundo. De Vila Rica para o Tejuco, o grande empório de diamantes, partiam dois caminhos: o primeiro, “do mato dentro”, passava por Catas Altas, Santa Barbara, Cocais, Itambé, Conceição. Aí a região é sulcada de serras cobertas de matas.
O outro caminho, o “do campo”, seguia pelas campinas à margem do rio das Velhas. Os viajantes seguiam quanto possível o curso dos rios; muitos deles falam dos rios Santa Barbara, Tanque, Santo Antônio, e como em Itabira não há rio de importância, nossa única inferioridade, esse rincão ficava um pouco fora das antigas rotas.
O conhecimento mais perfeito de Itabira e suas riquezas dá-se com o Brasil reino. O bom D. João VI trouxe para o nosso país uma plêiade brilhante de sábios e naturalistas, ávidos de conhecer a natureza brasileira: Mawe, Eschwege, Saint-Hilaire, Spix, Martius e outros. Minas Gerais, a rica capitania, atrai a todos como um imã.
Von Eschwege e Saint Hilaire andaram por aqui, com pequeno intervalo, na segunda década do século passado. Ambos dão notícia da nossa prodigiosa, da nossa incrível riqueza em ouro e ferro, ambos descrevem o arraial e o qualificam de florescente; ambos entraram em contato com os potentados da época. Von Eschwege, com o capitão Tomé, de quem disse ser um dos mulatos mais importante que conheceu, e Saint Hilaire, com o capitão Pires e o major Lage, que surpreenderam ao ilustre viajante pelos seus conhecimentos e pela sua hospitalidade cativante.
Esse major Lage, Joaquim José da Costa Lage, patriarca da família itabirana, tornou-se notável como “caçador de ouro”, quando casualmente descobriu – mais um passo distraído – umas lavras riquíssimas que o fizeram um dos grandes de seu tempo.
Nascido em 1877, foi administrador, quando moço, das minas do seu tio João Francisco. Nos primeiros anos do século XIX, ele não era ainda, como foi mais tarde, comendador da Ordem de Cristo, nem sargento-mór dos índios, nem major da guarda-nacional: era um guapo mancebo, amante dos prazeres venatórios.
De uma feita, caçando nas bastas florestas que cobrem o sopé da serra da Conceição, fez uma melhor caçada que a de bichos: caçou ouro. Descobrindo ali uns veios abundantes, seguiu imediatamente para Pacas, afim de obter do guarda-mor Camargos, aí residente, a concessão daquela lavra.
Quando ele saia da casa do guarda-mor, levando o seu título no bolso, encontrou-se com os companheiros de caçada, os irmãos Fernandes, que lá chegavam com o mesmo fim. Dormientibus no succurrit jus… só obtiveram esses últimos o direito às sobras, e é de crer que só lhes sobrasse a água das lavagens, de tal jeito o major se enriqueceu.
Com o ouro abundante nos córregos, nas grupiaras, nas minas profundas, o arraial tomou um enorme surto. Rica em tesouro e em homens, Itabira passa a alimentar ideias autonomistas. Caeté, a cujo município pertencia, ficava longe e era um lugar antipatizado, como demonstra uma ladainha do tempo:
“Da justiça de Caeté,
Libera-nos, Dominé.”
A elevação à freguesia em 1827 não contentava. Os itabiranos, então e sempre ciosos de seus direitos, reclamavam a autonomia política e administrativa. É o que lhes foi concedido pela resolução de 30 de junho de 1833.
Esse decreto do presidente Manoel Inácio e Souza, é, como se vê, uma capitis diminutio, é uma humilhação para Caeté. O ocaso chegara para a antiga vila Nova da Rainha: o sol descambara para os lados do Cauê… A 7 de outubro de 1833, efeméride gloriosa, que ora comemoramos com legítimo orgulho, dá-se a solene instalação da vila.
O major Paulo José de Souza, elevado à presidência da Câmara, empossado auspiciosamente no cargo, pronunciando nesse momento o memorável discurso, hoje divulgado, cujo original, relíquia histórica, guarda-se carinhosamente no arquivo da Prefeitura.
É uma peça em que não se cabe o que mais admirar. Conciso, elegante, repassado de sinceridade e de patriotismo, cheio de ideias, onde se percebem tendências republicanas, esse documento deve ser para todos nós uma espécie de cartilha dos nossos deveres cívicos.
A Paulo José de Souza sucedem-se 23 presidentes, todos dignos da honrosa investidura, todos extremados em trabalhar para o bem comum da terra itabirana, formando uma brilhante galeria, que não se interrompe com o regimento das Prefeituras, instituído pela revolução de outubro. No atual administrador do município, o prefeito Linhares Guerra, saúdo o continuador das virtudes cívicas dos seus antecessores e digno deles pelo muito que tem feito e fará à testa do seu alto posto.
Escuso-me de rememorar os feitos de todos os antigos presidentes, por alimentar o receio de fazer injustiça no apreciar os homens e as causas de uma época que não conheci e cuja história ainda está por escrever. Todavia, não posso deixar no esquecimento alguns nomes que merecem viver na nossa gratidão.
O monsenhor Felicíssimo, vigário e presidente, é um dos grandes itabiranos, se bem que nascido em Ouro Preto, onde foi enjeitado e acolhido por uma boa mãe preta. Deputado, renunciou ao mandato, pronunciando esta frase que é preciso guardar: “Não posso me conformar com as exigências humilhantes das conveniências partidárias”.
Monsenhor Felicíssimo fez a Itabira um presente imenso: esse hospital Nossa Senhora das Dores, que aí está, objeto de nossos carinhos, casa de caridade que orgulha o município, é criação dele. A vida do quase centenário hospital parece um milagre do monsenhor. Às vezes tem ele estado na iminência de fechar as portas. Já em 1897, o padre Júlio Engrácia exclamava: o hospital está à beira do abismo! Não caiu no abismo até hoje. Dizem que está novamente em crise. Mas esperamos tranquilos – o hospital viverá.
O dr. Domingos Martins Guerra, que também foi presidente, deixou um nome honrado, que sempre se recorda com veneração. Médico, não lhe faltava a vocação de homem público. Foi um digno neto de bandeirantes. Fundador, com Antônio Camillo, das nossas fábricas de tecidos, isso há mais de 50 anos, revelou-se um homem de coragem e iniciativa. Ligou o seu nome ainda a uma escola agrícola, que infelizmente pouco durou.
Custódio Martins da Costa, o guarda-mor Custódio, governou o município por nove anos. Foi uma respeitável figura de cidadão, em cujo caráter se espelham as virtudes tradicionais do povo mineiro. Homem da sua terra, da sua gente, sensível, amante das ideias, seu nome é frequentemente citado como o de um grande itabirano.
José Antônio da Silveira Drummond, comendador, também foi presidente da Câmara, por duas vezes, governando ao todo durante 12 anos. Deixou uma luminosa tradição de inteligência. Político fino, advogado sagaz, chegou a ser deputado. Era geralmente estimado e deixou uma legítima fama de administrador.
Também foi presidente em 1890 um prestante cidadão que hoje ainda vive em Belo Horizonte: o farmacêutico Theofhilo da Costa Lage, que apesar de há muito retirado de nosso meio, não foi esquecido pela sua terra.
A lista dos governadores continua extensa e brilhante. Quase todos a morte levou, mas os seus nomes ficaram, uns pelas suas virtudes privadas, outros pelas suas qualidades cívicas: João Baptista Drummond, padre José Júlio de Oliveira, Joaquim Carlos da Cunha Andrade (Barão do Alfié), Theofhilo Monteiro Chassin Drummond. Todos foram políticos do tempo do Império e governaram com sabedoria e a honestidade que caracterizam aquela fase da história brasileira.
Chegamos agora à história contemporânea. É tempo de evocar uma Itabira que conheci intimamente, aquela terra do meu berço e da minha infância. Posso falar, por conhecimento direto de um José Baptista, de um Alexandre Drummond, mortos saudosos que conheci e admirei. Posso lembrar um remoto presidente, que governou no triênio 1869-1872, um homem de condição modesta que todos os meninos de minha idade conheciam: Antônio Alves de Araújo.
Ninguém sabia que ele fora presidente, para nós ele era o Tutú Caramujo, um velho vendedor de cartilhas e laranjas. Pobre Antônio Alves, você foi um aristocrata do comércio, porque vendia livros, como Evaristo da Veiga. E, como ele, você amava a liberdade. Tutú Caramujo, político decaído, a quem mais comprávamos laranjas do que livros, receba esta pequenina homenagem da minha comovida admiração.
De José Baptista guardo uma impressão indelével. Parece que o vejo na sua loja das Palmeiras, de chapéu na cabeça, canivete em punho, sempre fazendo um trabalho manual, risonho, afável; ou então na cadeira presidencial, mais grave conciliador, um excelente homem e um extraordinário político no melhor sentido da expressão.
Do dr. Alexandre Drummond, tão cedo desaparecido, não posso falar sem emoção. Frequentando-lhe a casa, meus olhos guardam um quadro familiar, que me impressionou pela simplicidade. O grande médico e administrador, de tesoura em punho, cortava os cabelos de um belo robusto ancião: o desembargador Carvalho Drummond. Este era um juiz à inglesa. Seu filho, uma nobre figura humana. Ambos vivem e viverão na memória dos itabiranos.
Passando a outra ordem de reminiscências, evoco com infinita saudade os jogos infantis por essas ruas, por esses adros desertos da velha Itabira. As pedras da rua, puro minério de ferro, reverberavam à luz do meio dia. O calçamento “onde as ferraduras batem como sinos”, como diz um verso do nosso Carlos Drummond, mostrava ser de metal: duro, sonoro, brilhante, quente aos raios de sol.
Pois mesmo assim a rua era o campo predileto dos brinquedos do meu tempo: papagaios de papel, peteca, malha e por ultimo o football. Lembro-me da introdução desse jogo, um sucesso absoluto. A ele nos entregamos, com a febre dos iniciados, jogando dia e noite no adro da matriz. Está claro que dentro em pouco não restava uma vidraça no velho templo, com grande e santa indignação do bondoso vigário padre Olympio.
Guardo a lembrança de um sem número de festas religiosas desse tempo. Talvez pelo fato de morar na roça e vir à cidade de preferência nos grandes dias do calendário católico, ficaram-se nos olhos as imagens de um culto extremamente festivo. Não se passava um domingo em que não saísse rua afora um terço ou uma procissão ruidosos dos dobrados da banda Euterpe e dos foguetes e dinamites triunfais.
Em janeiro, festa de Reis, com “cheganças” e “congados” pelas ruas, depois novena de São Sebastião, verdadeira temporada lírica para os seus devotos, que éramos todos nós. Maio era sublime. À tardinha, a voz dos grandes sinos convocava os fiéis para a coroação, encantamento quotidiano. Dentro da igreja, no ar perfumado de incenso e vibrantes de cânticos suaves, reinava um profundo misticismo.
Enquanto não chegava o amável instante em que mãos liriais coroavam de rosas a fronte da Virgem, a gente ficava no adro, conversando e vendo a noite cair sobre a serra: as estrelas começavam a palpitar num céu de opala, onde se destacava, sombrio, o eterno Cauê.
No resto do ano, vinha junto com as fogueiras de Santo Antônio, São João e São Pedro; depois, agosto com uma festa muito pitoresca, em que havia o rei do Divino. Certa vez, compareci a uma dessas festas com ares de príncipe, porque o meu avô Antônio Camillo era o rei, ou imperador, e segurava a sua bengala como um cetro. Meu avô muito amou e serviu a Itabira, mas não foi político e nunca exerceu nenhum posto de comando; a primeira vez que experimentou o poder, aos 80 anos, foi como imperador do Divino…
O profano era representado pelo Carnaval, que se anunciava com um mês de antecedência, por um Zé-Pereira infernal, precursor do jazz. No tríduo de Momo, grande era o comércio de máscaras e limões de cheiro. Nos chafarizes, hoje desaparecidos, havia uma intensa movimentação. O entrudo dominava.
Não raro, grupos de foliões levavam um pobre recalcitrante até o chafariz, onde uma ducha em regra o esperava. Bandas de mascarados batucavam pelas ruas ao som de pandeiros. Terminava tudo com o enterro de Momo, com as competentes homenagens fúnebres, sendo que no dia seguinte uma cruz de cinza na testa lavava todos os pecados.
Na quaresma a igreja retomava o predomínio das almas, impondo penitências e bacalhoadas, jejuns com ou sem abstinência de carnes. A Semana Santa era a festa máxima. Gente de dez léguas em redor enchia a cidade para ver a procissão de Ramos, do Encontro, Lava-pés, Via Sacra, procissão do Encontro, Missa do Pré-santificado e por último um domingo de Páscoa todo cheio de gloriosas cerimônias da Ressurreição com um pequeno intervalo de folia no sábado, em que um Judas de pano era fuzilado na praça pública por mil balas.
Que direi das touradas, circos de cavalinhos, dramas e dramalhões do Teatro Municipal? Como contar a impressão do deslumbramento da inauguração do cinema, fartamente iluminado à luz elétrica na cidade ainda escura? Era mais que primitivo esse cinema: a tela precisava se molhada na hora da projeção; as fitas eram de Max Linder ou Francisca Bertini, e de regra a gente dormia no meio delas. Saudosos tempos!
Andava eu pela escola, quando a cidade sofreu grandes transformações. Alexandre Drummond, administrador fecundo, deu-nos água e luz. Por essa ocasião o dinheiro corria fácil, com a venda das lavras aos espertos ingleses e americanos. Inaugurava-se a High Life Bar, surgiu o clube Carnavalesco “Casava Vermelha”; os netos do capitão Tomé e do Major Lage conheceram um esplendor como o dos tempos antigos.
Marcou-se no Orião o lugar da estação da estrada de ferro. Na avenida, onde era chic passear às tardes, o agente executivo mandou colocar bancos, plantar árvores. No Grêmio Artur Azevedo, os intelectuais faziam trocadilhos, decifrando charadas novíssimas. Itabira atravessava uma fase boa, tranquila, otimista. O fim de uma era.
Eis senão quando, os jornais trazem a notícia de uma guerra lá longe, na Europa. Ninguém liga importância, é apenas uma guerra a mais, dessa vez a Áustria contra a Sérvia. Depois, depois… acabaram-se os bons tempos. A grande guerra, já disse alguém, marca o fim do século XIX. Veio a crise, a inquietação dos espíritos, a revolução. Quanto a nós, ficamos esperando, talvez até as calendas gregas, a estrada de ferro, os altos-fornos da Itabira Iron.
Perdidos nestas serras, ainda assim sofremos as consequências da grande catástrofe. Todas as consequências econômicas, sociais, espirituais.
No entanto, as vibrações do mundo moderno, que chegam até nós, não impedem que Itabira seja ainda hoje, a muitos respeitos, uma cidade do século passado.
Foi Paul Mardand quem inventou o itinerário das evasões no tempo, tão reais como as do espaço. Quem quiser antever o século XXI, vá à exposição de Chicago. Um passeio ao interior de Portugal será um regresso à idade média.
O caminho de Itabira, assim é o caminho que conduz ao passado, e vai nisso um elogio à minha cidade. Feliz a terra, como a nossa, onde o passado sobrevive nos costumes e nos sentimentos dos homens. Numa hora de vertiginoso progresso, quando os próprios entes humanos como que se transformam em máquinas, o itabirano ainda tem uma alma e nela há lugar para o sonho. O rádio e o automóvel, formas de progresso que chegaram até nós, não modificaram o espírito da cidade, que continua o dos tempos idos, nem as virtudes do povo, “virtudes antigas”, o que não é uma expressão vazia de sentido.
Uma dessas virtudes é a hospitalidade franca e cordial. Como nos tempos coloniais, os hotéis quase são inúteis. O hóspede, ao chegar em casa do amigo, ou conhecido, está em sua própria casa. Isso, que tanta admiração causava aos antigos viajantes estrangeiros, vê-se praticar em Itabira todos os dias. Não data de muito, por exemplo, a franquia com que José Baptista, presidente da Câmara, acolhia em sua casa todos os funcionários federais, estaduais, ou municipais que aqui chegavam.
A família entre nós ainda pode, em verdade, ser chamada de pedra angular da sociedade. Se o divórcio fosse decretado, seria lei inútil nessa comarca, como inúteis são a lei de falências e a maior parte do Código Penal. Raríssimos são os crimes; desconhecidas as execuções por dívidas, porque o devedor insolvente não espera citação para entregar mesmo as joias mais caras.
Povo amante do saber, nossas escolas são laboriosas colmeias, onde as crianças giram em torno do livro como abelhas em torno do lar. E em cada mala do correio que se abre, saltam impressos avidamente procurados – livro, jornal e revista – que se espalham por todos os lares, levando aos mais distantes recantos um pouco de verdade e de beleza.
A política entre nós honra a nossa cultura e o nosso patriotismo. Não há notícia de tricas de campanário, compra de votos, eleições a bico de pena, nem coação a quem quer que seja. Todos cumprem religiosamente os deveres cívicos. Ainda agora assistimos a um belo ato de civismo, que deve ser registrado para exemplo das gerações que veem e virão.
Virgínia Augusta de Andrade Lage, minha querida bisavó e madrinha na sua serena e lúcida velhice, centenária como a cidade, compareceu às urnas de 3 de maio, e como eu lhe fizesse uma chapa escolhendo os nomes mais dignos da Constituinte e de tão honroso voto, perguntou-me: Esses são liberais ou conservadores?
Respondi que tais rótulos desapareceram com os partidos do Império, mas que a essência deles, imutável, perdura com outros nomes. Dindinha Virgínia então me observou: quero votar nos liberais, porque meu pai e meu marido sempre foram liberais.
O liberalismo é, com efeito, uma constante das nossas tendências políticas, desde o discurso inaugural de Paulo José de Souza, aludindo aos “espinhosos arbustos que abalam a tenra árvore da nossa liberdade”. As campanhas da Abolição e da República foram acompanhadas fervorosamente pelos nossos antepassados; estivemos em 1910 com Rui Barbosa no seu evangelho e no calvário; e a revolução triunfante, esperada por muitos de nós desde 22, provocou no povo itabirano um entusiasmo sem nome e sem limite.
Povo idealista, as aspirações da nossa coletividade se resumem hoje, como há cem anos, em estradas, escolas, liberdade… Não nos julguemos desditosos, meus caros conterrâneos, se materialmente poderíamos ter progredido mais. Não importa que, isolados na montanha, os governos tenham esquecido de nós.
Temos tanta cousa que nenhum governo nos poderia dar… por exemplo essa alma grande que Deus nos deu. A alma de Itabira compensa todas as inferioridades materiais que sofremos: um albergue de S. Vicente, casa de caridade itabirana, onde o pobre encontra teto e pão, vale mais do que todas as estações de estrada de ferro deste mundo! Verdadeiramente nós vivemos hoje, mesmo sem as pepitas das velhas lavras, a idade do ouro, porque é de ouro o coração de nossa gente.
Um dia, quando o Cauê for derretido para as necessidades do mundo até a consumação dos séculos, essas ruas trepidarão nas vertigens da era do aço. Mas peçamos a Deus que o rumor do progresso não apague as vozes antigas da ingênua e boa Nossa Senhora do Rosário de Itabira do Matto Dentro…
Carlos, em Itabira temos duas Praças do Centenário. Uma em frente ao Museu(Centenário de Villa, 1933) e a outra em frente a Matriz(Centenário de emancipação política,1948)
Nestas duas ocasiões foram erguidos obelisco comemorativos, o do Centenário de Villa ficava próximo a Casa de Drummond e, acredito, foi removido para ampliação da via, no Museu tem fotos da comemoração e a placa fica em exposição o outro obelisco é o pirulito do Zélopão.