O anjo torto e o poeta radical
Joel Silveira*
Paulo Mendes Campos lembra em um dos seus livros (Os bares morreram numa quarta-feira):
Conhecemos o poeta Carlos Drummond de Andrade numa tarde memorável, na avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte. CDA não se lembra mais dos alinhadíssimos sapatos de camurça que usava, mas nós, os mineirinhos da época, salvamos do olvido a elegância sóbria do escritor. Este, por sua vez, espantou-se da intimidade com que tratamos duas ou três moças encontradas no caminho. Era um tremendo barato, um progresso de Minas.
Numa entrevista que me deu para a revista Status – e isso foi pouco antes de ele morrer – me contou Paulinho:
– Eu costumava encontrar Drummond no oitavo andar do Ministério da Educação, onde funcionava a diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Drummond trabalhava numa sala exígua ao lado de um homem caladão, que me parecia um bom e fiel servente. Uma tarde, Di Cavalcanti apresenta-me na rua o homem caladão. Terei corado de vergonha? Era Lúcio Costa.
– Quando CDA aposentou-se do serviço público – prossegue Paulinho –, escrevi uma crônica mostrando o funcionário exemplar que ele foi, não apenas pontual e eficiente, mas criador, tendo participado de modo decisivo de várias medidas essenciais aos negócios da cultura e da educação. Para minha surpresa, mandou-me uma carta comovida; jamais imaginara que seus serviços públicos fossem lembrados.
Confesso agora que a lembrança não foi minha, mas de Justino Martins, diretor de Manchete. Certa vez participamos juntos de um júri de poesia. Contou para Manuel Bandeira, para Fausto Cunha e para mim que estava contente: tendo mudado de apartamento, pela primeira vez possuía um escritório fechado; os outros tinham sido improvisados em cantos de sala. Bandeira compreendeu logo: “Às vezes até a solicitude amorosa cansa”.
Outra historinha de Paulo Mendes Campos sobre Drummond:
– Caíra o Estado Novo. O poeta foi nomeado, entre outros, para transformar o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) em Departamento Nacional de Informações. Entro em seu gabinete pela manhã e encontro o poeta desalinhado, procurando os óculos; enrolam-se com um funcionário malcriado que o ofendera. E estava bem feliz com o resultado do round.
Confissão de Drummond a Fernando Sabino:
– Não sou capaz de fazer poema a frio, como se resolve um problema de matemática. Há um condicionamento, uma espécie de preparação, determinando pelo tema. Não sou poeta no sentido clássico ou erudito da palavra – o que obedece a um programa, observa as regras e procura renovar –, nunca tive essa pretensão. Procurei apenas tirar, de uma emoção que sinto naturalmente, ou por provocação externa.
E ao mesmo Fernando ele confessou, noutra ocasião:
– Fui sempre tratado com muita benevolência: não propriamente um ser sociável e, no entanto, sinto que certo número de amigos me cerca de carinho e muita gente tem paciência comigo. Meu gênio não é dos mais floridos, e por isso mesmo vejo uma grande boa vontade na maneira com que me tratam, com que recebem as coisas que escrevo. A princípio me tratavam até com certa crueldade, mas nunca liguei para isso, porque tinha sempre a compreensão dos amigos. No fundo, escrevi para mim e para os meus amigos. Foi tudo o que fiz na vida.
De fato, Drummond foi um cultivador incondicional da amizade. Seus amigos, com raríssimas exceções, sempre foram os mesmos, aqueles que ele fez quando no começo da vida em Minas e depois no Rio. Em 1930, quando os amigos, em Belo Horizonte, comemoraram com um almoço o aparecimento do seu primeiro livro, Alguma poesia, o poeta teve oportunidade, num pequeno discurso de agradecimento (um dos poucos que pronunciou em toda a sua vida), de fazer o elogio da amizade – e o auditório para quem falava era composto na maioria de amigos seus: lá estavam Milton Campos, Gustavo Capanema, Pedro Aleixo, José Maria Alkmim, Abgar Renault, Pedro Nava, Cyro dos Anjos, Guilhermino César, Dário de Almeida Magalhães, Gabriel Passos, Francisco Negrão de Lima.
Disse ele, então finalizando o seu discurso:
– O anjo me espia na sombra e, em vez de assassinar-vos com palavras que não traduzem a medida do sentimento forte e delicado deste momento, prefiro subscrever àquele antigo e delicioso brinde mineiro de sobremesa, que um dos convivas puxava, enternecido, e que todos os demais secundavam em coro: “Como é grata a companhia/ lisonjeira a sociedade/ entre amigos verdadeiros/ viva a constante amizade”.
Vertical, rígido, sem alarme, cheio de graça e ironia, um tanto cético e um pouco moleque, discreto e disciplinado – assim foi Carlos Drummond de Andrade.
Certa feita, ele, Drummond, desabafou:
– O fato de a gente ser muito conhecido, muito manjado, aparecer frequentemente em jornal, faz com que os jovens nos procurem pedindo opiniões e querendo mensagens, confissões, diretrizes etc. Confesso que não me sinto em condições de dar conselhos a ninguém. Nem a mim mesmo.
E com o jornalista Sérgio Cabral, que lhe havia solicitado uma entrevista “bem franca” para O Pasquim, ele tirou o corpo fora publicado no pé da sua coluna no Jornal do Brasil este bilhetinho:
Prezado Sérgio Cabral, há mais de cinquenta anos que não tenho feito outra coisa na vida senão dar entrevistas: em verso, em crônica, em carta, em papo. O que penso, o que sinto, o que imagino, o que me dói, me alegra, me aborrece, tudo está dito e contado por este auto contador incorrigível. E você quer que repita o repeteco, bicho?
Naquele 31 de outubro de 1982, quando completou oitenta anos, foram muitos os que bateram à porta do poeta, fazendo o mesmo pedido de Sérgio Cabral, mas poucos (e no momento não me lembro de nenhum) os que seriam recebidos e atendidos pelo poeta em seu apartamento na rua Conselheiro Lafaiete, o Posto 6, em Copacabana. E ainda mais raros os que conseguiram ir além da portaria do edifício, onde um porteiro prevenido e vigilante estava sempre a postos para evitar que algum impertinente chegasse ao apartamento 701, onde o poeta morou durante mais de 30 anos.
Em resumo, todas as homenagens, e não foram poucas, prestadas a Carlos Drummond de Andrade, quando do seu octogésimo aniversário, não contaram com a presença (a física) do grande poeta. A um amigo ele mesmo já havia confidenciado que logo se aproximasse a “data fatal”, ele saberia escafeder-se discretamente, tomando furtivamente o rumo de local ignorado ou de difícil acesso. E aqui me dou conta que em matéria de esconderijo Drummond não poderia encontrar um melhor do que ele mesmo, refugiando-se naquele seu íntimo que era somente seu.
Mas é preciso que se diga que o perfil do homem caladão, fechado em si mesmo, declarado inimigo de badalações e quase inacessível na sua torre (de rocha e não de marfim), vem sendo, depois de sua morte, profundamente resultado e, por conseguinte, modificado. Meses antes de sua morte, já dizia Tônia Carrero, que nunca deixou de ser atendida, e atendia com alegria, quando telefonava para Drummond:
– Para mim, ele nunca foi o mineiro seco e enrustido de que tanto falam, mas o amigo que adorava uma prosa longa e mostrava indisfarçável prazer em saber últimas fofocas da literatura, dos meios artísticos e da política. Comigo ele sempre foi assim, conversador, afável e, por vezes, engraçadíssimo.
E Fernando Sabino, que juntamente com o cineasta David Neves fez com ele um documentário cinematográfico, já contou em crônicas as verdadeiras diabruras e peraltices praticadas pelo poeta quando das filmagens – que deixavam, exatamente por Drummond insistir em não seguir à risca o script previamente traçado, nele enxertando improvisos e cacos que deixavam os dois, Fernando e Neves, completamente atarantados.
– O poeta – conta Fernando Sabino – em plena avenida Rio Branco, a câmara quase colocada em seu nariz, Neumann andando de costas e eu abrindo caminho com a maior cara-de-pau para ele não tropeçar. O poeta entrega a sua crônica no Jornal do Brasil – tem de repetir a cena porque a luz pifou. Depois, em frente ao Ministério da Educação, “vê se consegue um ângulo bem dramático, Neumann”. Ele se estende literalmente no asfalto, correndo o risco de um carro passar por cima dele, o que seria bem dramático. Mas o poeta vai fazer agora uma sugestão: quer se esconder atrás de uma coluna. Pois assim seja – a coisa já estava ficando mesmo meio surrealista; esconde-se atrás de uma coluna e aparece atrás da outra. De súbito são vários Carlos Drummond de Andrade que surgem de um lado e desaparecem do outro. Ubíquo, numeroso e esquivo, “onde está ele agora?”. Eis que surge de um salto diante da câmara tomando de um inesperado frouxo de riso. Não era essa imagem que fazíamos dele – dirão os exegetas de sua obra.
Já Otto Lara Resende me dizia:
– A impressão que tenho é que sempre conheci Carlos Drummond de Andrade. Não me lembro quando ouvi ou li pela primeira vez o seu nome. Pessoalmente, não tive professores que, nos anos 30, vissem no poeta motivo de controvérsia ou mofa, tal como era mais ou menos comum naquele tempo e tal como o prova o livro sobre o “poema da pedra”, com prefácio de Arnaldo Saraiva. Escapei desse toque de burrice, ou de tacanha incompreensão. [Já eu, joel, não escapei. Também gozei o poema quando de sua publicação.] Adolescente, foi com admiração que tomei conhecimento do poeta.
Para Otto, Carlos Drummond de Andrade sempre foi uma espécie de enriquecedora e permanente companhia:
– Sua maneira de ser e de dizer foi decisiva para o grupo de antigos rapazes mineiros. Andamos sobre suas pegadas. Num certo sentido, nosso ambiente cultural estaria mutilado, seria outro, não estivéssemos profundamente impregnados de Carlos Drummond de Andrade. Além da obra, dos seus versos e da sua prosa que circulam em nosso sangue, há também, no meu campo visual, o perfil do homem Carlos Drummond de Andrade. O amigo de uma solicitude inexcedível. Se há a imagem de um ser inescalável, distante, fechado, essa imagem é mentirosa, quando se refere ao Carlos Drummond que se conheceu de certo. De fato, ele nunca foi um homem distante inacessível. Forte personalidade, grande poeta, Carlos era também um grande caráter. Sua timidez é exemplar. E não apenas literalmente. Em tudo. Sua vida sempre foi um exemplo de dignidade e de trabalho. Fica chato, Joel, escrever essas coisas óbvias e que, de repente, assumem um ar solene. O Carlos é o contrário desse tom oratório. O que ele nos ensina é extremamente o posto, a busca de uma expressão despojada e sincera.
E finaliza Otto:
– O jeito Drummondiano já está me puxando a ponta do casaco e me advertindo contra o descabido voo condoreiro. De forma que é bom ficar por aqui.
Durante mais de trinta anos fui vizinho do poeta, ele lá na Conselheiro Lafaiete, e eu cá, na Francisco Sá – em termos de metragem, menos de um quilometro nos separando. Mas pouco nos encontrávamos, embora quase diariamente, no final da tarde, eu visse da minha janela, no sexto andar, o poeta passar na calçada defronte, nesse traje informal que a zona Sul do Rio permite e até exige. Numa das vezes, ao surpreendê-lo mais uma vez, camisa esporte de meia gança, o passo cadenciado, chamei meu neto Rodrigo (então com cinco anos, hoje já beirando os trinta) e falei, apontando para o homem magro e vertical que passava do outro lado.
– Sabe quem é aquele senhor, meu neto?
– Aquele magro, de óculos?
– Aquele mesmo. Claro que você não sabe, ainda não sabe: o nome dele é Carlos Drummond de Andrade e é o maior poeta vivo do Brasil.
Rodrigo mostrou certa incredulidade:
– O maior, vô?
– O maior.
– Pois nem parece. Tão magrinho…
No dia 31 de outubro último**, se vivo, Carlos Drummond de Andrade teria completado 98 anos. E se vivesse mais dois, estaria fazendo cem, centenário que o Brasil inteiro iria festejar com alegria e reverência, mas que para ele, o gauche, não teria sido mais que um enorme aborrecimento. Naquele dia, talvez, ele sequer fosse visto pela velha amendoeira que continua crescendo num contínuo renovar de galhos e folhas diante do edifício onde por mais de trinta anos o grande poeta, “tão magrinho…”, morou, aqui no final de Copacabana.
*Outubro de 2000. Drummond nasceu em Itabira, em 1902. (N.E.)
*Joel Magno Ribeiro da Silveira (1918/2007), jornalista e escritor brasileiro
[A milésima segunda noite da avenida paulista e outras reportagens, Joel Silveira. Cia das Letras, 2003 – Acervo: Cristina Silveira]