No Rio Grande do Sul, indígenas temem deixar suas casas pela inundação e perder território

Foto: Fernanda Conofre/
Agência Pública

Atingidas pelas chuvas, comunidades Guarani voltam às aldeias alagadas por medo de expulsão de terras retomadas

Por Fernanda Canofre

Edição: Marina Amaral

Agência Brasil – A cerca de 60 quilômetros de Porto Alegre, em Capivari do Sul, à beira da rodovia RS-040 e perto de uma ponte, o rio Capivari invadiu três casas da comunidade Guarani Araçaty, que vive no local há quase 40 anos.

Vídeos feitos por eles mostram a água alta o suficiente para molhar camas e roupas, estragar utensílios e eletrodomésticos. As famílias tiveram que se abrigar na escolinha do território, esperando a água baixar. Acontece que ali é uma área de retomada, sem demarcação. Sair do território pode significar não retornar.

‘‘Isso que a gente pensou, que se fôssemos para lá [abrigo] e voltar e fizessem alguma coisa. Por isso a gente não foi’’, diz o cacique Rafael Cáceres, 34 anos, que vive no local há cerca de 20. ‘‘Esperamos algum outro [território] e demarcação também. Na estrada, só tem 10 metros da largura da rodovia, é muito perigoso. É pequeno. Nem dá para plantar, só horta a gente tem na escolinha.’’

Com a recorrência das chuvas em maio, as casas da comunidade alagaram mais de uma vez. Desde 2012, eles esperam o andamento de um grupo de trabalho instituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para estudos de identificação e delimitação de terras, e andamento do processo de demarcação. Uma história que se repete com outras comunidades indígenas pelo estado.

Indígenas em centro de acolhida no Rio Grande do Sul após enchentes
Desde 2012, indígenas esperam o resultados de grupo de trabalho da Funai para estudos de identificação e delimitação de terras (Foto:  Fernanda Canofre/Agência Pública)

No Lami, zona sul de Porto Alegre, a comunidade Pindo Poty, que espera desde 2012 o andamento de estudo para iniciar o processo de demarcação, também foi atingida por alagamentos que obrigaram os Mbya Guarani a ir para um abrigo. Eles dizem que cerca de 15 famílias vivem no território. Há cerca de três anos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciou tentativas de invasão e loteamento da área onde está a retomada.

Os indígenas contam que as cheias não são novidade por ali, mas não no nível de agora. Desta vez, depois de um tempo em uma igreja, também na zona sul da capital, eles preferiram voltar para o território assim que a água recuou um pouco. Joenia Wapichana, presidente da Funai, chegou a visitá-los, no início de maio, ainda no abrigo.

‘‘Molhou tudo, a água já estava dentro da casa, levou cadeira, panelas. Alguns perderam galinhas, cachorrinhos. Nas outras vezes, não foi tanto assim’’, conta Andrea Martins, 42, que mora na Tekoá (aldeia Guarani).

‘‘A gente precisa da demarcação, porque, se for demarcada, podemos entrar mais para o fundo [do terreno], onde a água não chega’’, diz o cacique Roberto Ramires.

Um informe do dia 22 de maio, da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, aponta que 16.691 indígenas foram afetados pelas enchentes no Rio Grande do Sul, de forma direta ou indireta, um total de mais de 5 mil famílias.

Já a Funai, que divulgou uma lista com a situação de comunidades no início de maio, cita casos de aldeias com desalojados, ilhados (comunidades que perderam acesso por estradas ou pontes caídas) e atingidos. Questionada pela Agência Pública sobre atualizações, a Funai não deu retorno.

A Defesa Civil estadual não confirma se há indígenas entre as 172 mortes registradas ou 42 desaparecidos confirmados até o dia 3 de junho, por não ter recorte de perfil na lista.

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), nos polos-base do estado foram reportados ‘‘impactos na comunicação, no fornecimento de energia elétrica nas residências e na unidade de saúde, danos em Sistemas de Abastecimento de Água (SAA) e estruturas dos serviços de saúde, necessidade de evacuação e dificuldade de acesso às aldeias’’.

Seis dos sete polos no Rio Grande do Sul têm ‘‘aldeias parcialmente e totalmente isoladas, somando 45 aldeias, com 11.743 indígenas e 3.581 famílias, distribuídos em 30 municípios’’, de acordo com a pasta. Não conseguimos obter resposta sobre quantas aldeias estão em áreas não demarcadas. O ministério diz que começou a distribuição de cestas básicas no dia 14 de maio e faz levantamento de municípios que incluíram comunidades indígenas em seus planos emergenciais.

‘‘Nesse momento, a preocupação que a gente tem é por alimento. Tem aldeias que não foram atingidas pela chuva, mas ficam distante das cidades, e a chuva estraga o caminho até lá e não conseguem fazer as compras, levar artesanato, e muitas famílias dependem dessa renda’’, explica Hélio Gimenez Fernandes, da Comissão Yvyrupa Guarani.

A comissão, que representa povos indígenas de seis estados, lançou uma carta junto a outros movimentos e apoiadores da articulação indigenista sobre a situação no Rio Grande do Sul, ainda em maio. Entre as demandas, além de pedidos por resposta emergencial e coordenação para emergência climática, eles pedem que as terras que pertencem ao estado do Rio Grande do Sul e hoje estão habitadas por indígenas sejam convertidas em reserva, uma vez que o pagamento da dívida do estado com a União foi suspenso.

“A gente tem 67 aldeias, acampamentos, tem só cinco áreas Guarani demarcadas no Rio Grande do Sul. Não somente hoje, agora, mas as pessoas que estão em acampamento, que a gente faz retomada, tem áreas que o Estado emprestou e está chegando em prazo de vencimento, e pode requerer de volta. A maioria das áreas que os Guaranis estão ocupando são do Estado’’, diz Hélio.

No programa Roda Viva, em 20 de maio, o governador Eduardo Leite (PSDB) respondeu à uma questão sobre planos do governo para garantir assistência às comunidades indígenas dizendo que elas ‘‘são olhadas com o mesmo carinho, mesma atenção que a gente tem que dar para cada cidadão, seja na zona urbana, zona rural, sejam populações específicas’’.

Em nota enviada à Pública, o governo estadual disse estar ciente da carta publicada pela articulação indigenista e que mapeia ‘‘localidades e comunidades indígenas necessitadas e o direcionamento das doações’’.

Sobre a questão das terras, a nota ressalta que a titulação cabe à União, mas afirma que tem apoiado comunidades através da Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (Sehab) e ‘‘junto à Justiça Federal na intermediação para que a madeira caída em áreas de Floresta Nacional (Flona) seja destinada à produção de moradias indígenas’.’

A viagem de Kretã Kaingang

Kretã Kaingang percorreu pontos diferentes do estado para verificar a situação de comunidades indígenas atingidas nas enchentes. Ele reconhece que há temor entre quem vive em área não demarcada de sair do território em retomada, mas cita casos emergenciais que deixaram comunidades sem escolha, como o caso da aldeia Pekuruty, que tem sete famílias e vive há cerca de 15 anos às margens da BR-290, em Eldorado do Sul. O município, vizinho à capital gaúcha, teve mais de 90% do território inundado nas enchentes.

‘‘A gente sabe que o Estado pode usar isso, de não deixar mais o retorno dessas comunidades para esses territórios’’, afirma Kretã, que é coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pela Articulação na Região Sul (ArpinSul).

‘‘Porto Alegre é uma capital que era totalmente indígena, tanto Kaingang quanto Guarani. Hoje, das comunidades que estão na Grande Porto Alegre, 70% delas ainda estão em processo de regularização, a questão da demarcação das terras, e são as que foram mais afetadas e que tiveram mais problemas nesta catástrofe’’, diz ele.

Os Mbya Guarani da Pekuruty tiveram de deixar o local no começo de maio, depois que o rompimento de uma galeria pluvial deixou casas alagadas na comunidade. Enquanto os indígenas estavam em abrigos no município, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) derrubou as construções da aldeia.

Segundo o Dnit, a ação foi emergencial para restabelecer a ligação entre Porto Alegre e outras regiões do estado e o acesso à assistência humanitária. A autarquia afirma que as construções serão refeitas em área segura, a ser aprovada pela comunidade e pela Funai, conforme já estava previsto no Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI) das obras de duplicação da BR-290. A autarquia reforça ainda que a remoção das moradias não teve relação com as obras.

O Ministério Público Federal (MPF) no Rio Grande do Sul diz que instaurou procedimento pedindo informações sobre a ação. ‘‘O objetivo do MPF é não somente exigir do Dnit a imediata recomposição da aldeia em local a ser definido pelos indígenas, como também a responsabilização do órgão pelos danos materiais e morais causados à comunidade, que teve escola, moradias e bens móveis destruídos’’, afirma a procuradoria em resposta enviada à Pública.

Em todo o estado, há áreas onde as famílias são obrigadas a viver em áreas degradadas e de risco, porque não têm acesso à área que deve ser demarcada, explica Roberto Liebgott, da coordenação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na região Sul. ‘‘Se houvesse local demarcado, não precisariam ser removidos e instalariam as comunidades em locais de menos risco. Não podemos afirmar que solucionaria uma situação catastrófica como essa, mas daria mais segurança’’, avalia.

A comunidade da Pekuruty deixou o abrigo em Eldorado no dia 19 de maio e, com apoio da Comissão Yvyrupá e fundos levantados por doações, reconstruiu quatro casas para a aldeia, com mutirão, em local próximo ao anterior. Em meio à espera, eles se instalaram em uma aldeia vizinha, com barracas emergenciais cedidas pelo Exército.

‘‘O Estado tem essa dívida de demarcar essas terras. O governo estadual precisa, de alguma maneira, fazer parte disso, para que regularize, assim como os municípios também. Então, tem que ser uma questão em conjunto hoje, para que os povos indígenas possam garantir o direito à sua terra. Dá impressão que nós, indígenas, somos estrangeiros no nosso país, e o invasor é o verdadeiro brasileiro’’, diz Kretã.

“O mato foi um socorro, não deixou que o rio viesse”

Na região norte do Rio Grande do Sul, comunidades em terras indígenas já demarcadas também foram afetadas pelas enchentes nos rios. A maioria delas Kaingangs.

Na TI Serrinha, com área de 12 mil hectares e território em quatro municípios gaúchos, a água atingiu famílias em alguns setores da reserva, como o do vice-cacique Vanderlei Soares, 36, onde há cerca de dez famílias.

Ele conta que moradores tiveram casas alagadas e chegaram a perder móveis, mas permaneceram no local. Assim como muitas das pessoas atingidas no Rio Grande do Sul, ali, ele também diz nunca ter visto a água chegar aos pontos onde chegou. ‘‘Tem um pessoal no meu setor que sofreu duas vezes. Eles sofreram a primeira, limparam tudo, voltaram para casa, e deu a chuva de novo dias depois, perderam tudo de novo’’, conta.

Um dos moradores mais atingidos foi Miguel Sales, 61 anos, que vive com mais cinco pessoas da família na casa que foi inundada pelas águas. ‘‘A gente não tem condições de fazer outra casa, então estamos lidando, com um ou outro ajudando com coberta, colchão. Mas ficou precário. Na minha casa, ficou cama, colchão, mesa, fogão a gás, tudo se foi’’, conta ele.

Na TI Rio da Várzea, com cerca de 16 mil hectares de área e abrangendo cinco municípios, o transbordamento do rio deixou algumas pessoas da comunidade ilhadas por alguns dias e outras com casas atingidas pela água.

O cacique Antônio Moreira Venrog, 59, ressalta que, ao contrário do que ocorre em outras terras indígenas demarcadas na região, na área homologada desde 2003 não há arrendamento de terras para lavouras. Ele lembra uma enchente histórica que foi testemunhada pelos seus pais, mas conta que nunca havia vivido nada como a de agora no território.

‘‘A gente está aqui porque nossos avós deixaram para nós. A natureza, a gente tem que respeitar. Porque, se não fosse essa floresta, o meio ambiente, poderia ter ido tudo embora com essa enchente, mas, graças a Deus, o próprio mato segurou o rio’’, diz ele.

‘‘O mato foi um socorro porque atacou tudo o que tinha, não deixou que viesse o rio e tomasse conta. A gente fica agradecido porque estamos cuidando essa floresta, para que depois nossos filhos e netos não fiquem passando dificuldade como nós estamos passando. Não sabemos daqui 15, 20 anos se não pode voltar a mesma enchente.’’

Na primeira visita que fez ao estado em meio às enchentes, no começo de maio, a presidente da Funai, Joenia Wapichana, disse à reportagem que a necessidade de planejamento sobre efeitos climáticos, com discussão de planos de mitigação e adaptação, ajuda a perceber como comunidades indígenas estão entre as mais afetadas pela crise climática.

Questionada sobre a importância de se discutir a demarcação em meio ao contexto atual, ela afirmou que demarcação é direito dos povos indígenas e obrigação prevista na Constituição. ‘‘É preciso regularizar as terras indígenas, para que os povos continuem a exercer os seus manejos sustentáveis, suas práticas, que ajudam a floresta a se manter de pé, que protegem os mananciais de água, que fazem com que a cultura seja repassada de geração em geração’’, afirmou.

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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