No começo era o nada; depois apareceu Machado de Assis; depois apareceu Cornélio Penna

Édipo e a esfinge,1864, de Gustave Moreau

Infância em Itabira e Campinas – O enterro de Maria Santa – Um romance histórico escrito na meninice – Compreensão de Itabira – FRONTEIRA, um marco da nossa literatura moderna.

Reportagem de Renard Perez

Uma grande estreia literária

É Cornélio Penna o representante máximo de nosso romance introspectivo e talvez tenha sido FRONTEIRA a mais expressiva estreia da literatura brasileira de todos os tempos. Com aquele livro estranho, profundamente subjetivo, um escritor surgia plenamente realizado, trazendo-nos um mundo novo.

Aparecendo numa época em que estava no apogeu o regionalismo nordestino com suas tendências sociais, o livro causou perplexidade. Era algo singular, que vinha enriquecer com um material diferente o nosso romance moderno, trazendo-lhe novas dimensões.

Seus livros, posteriores vieram significar a importância de sua obra e mesmo hoje, tão em voga o romance introspectivo, a posição de Cornélio Penna continua solitária e ímpar.

Não é Cornélio Penna um escritor que se preocupa com a paisagem física. Embora seus romances se passem no Brasil, transcendem o ambiente. O escritor fixa antes a alma das coisas, e por isso suas personagens dificilmente poderiam ser descritas.

Elas vagam numa atmosfera extraterrena, tendo conseguido Cornélio Penna a fixação dessa zona vaga e fugidia do subconsciente humano.

Indo além dos gestos, além das palavras, o autor procura fixa-las na sua própria complexidade; penetra no fundo humano, procurando a sua essência. Uma análise aguda nos permite entrever aqueles recessos íntimos, com toda a sua estranha riqueza, por trás dos olhares que se cruzam criando embaraços ou compreensões profundas.

Com sua singular personalidade, também estranho é o homem Cornélio Penna, cujos os hábitos e temperamento são bem uma afirmação da autenticidade de sua obra, sendo ele próprio uma curiosa personagem de suas histórias.

Infância

Cornélio Penna nasceu no dia 20 de fevereiro de 1896, em Petrópolis. Eram seus pais o dr. Manuel Camillo de Oliveira Penna, médico, de família mineira, e dona Francisca de Paula Marcondes Machado, paulista, que o dr. Manuel conhecera na França, onde ele fora fazer uma especialização.

Casaram-se em 1888, em Paris, tendo ambos regressado ao Brasil em 1889, indo para Itabira, Minas. O casal teve cinco filhos (dois já falecidos), sendo o escritor o último deles.

De Itabira mudou-se a família para Petrópolis, onde nasceu o escritor. Tornando a Itabira, aí faleceu dr. Manuel, em 1898.

Dessa cidade, entre outras lembranças, o escritor recorda-se da morte de Maria Santa (que seria a personagem de seu romance de estreia), figura singularíssima do lugar a cujo enterro assistiu, da janela de sua casa.

Católica fervorosa, envolta numa aura de santidade, Maria Santa abalava Itabira e redondeza com seus milagres e vaticínios, arrastando o povo até sua casa, em romarias permanentes.

Na sexta-feira da paixão ficava insensível. Fato curioso foi o acidente sofrido pelo futuro escritor na ocasião: um prego se lhe entrou no joelho justamente no momento em que passava o enterro de Maria Santa…

Moraram em várias casas da cidade, e o romancista lembra-se de algumas delas, velhos sobrados com seus quintais em declive (devido à situação da cidade), onde seus irmãos brincavam e onde, certa vez, enterraram um pinto, uma solenidade a que Cornélio, como caçula, apenas assistiu, sem poder dela participar.

Em Campinas

Tinha Cornélio Penna sete anos quando a família se mudou para Campinas, e foi naquela cidade paulista que aprendeu a ler, com sua irmã Babi (Bárbara), matriculando-se depois na pequena escola de dona Alda do Amaral.

A passagem por Campinas, mais longa, é cheia de acontecimentos pitorescos. Um deles, a sua entrada na escola de dona Alda. Para julgar-lhe do grau de adiantamento e verificar qual o ano do curso que devia frequentar, a professora mandou-o ler, tendo-se saído o garoto de maneira excelente na prova. Em segunda, foi exigido um ditado; mas o menino embatucou:

– Não senhora… Eu só sei ler…

A mestra surpreendeu-se. Como seria possível aquilo, lendo o garoto tão bem? Mas Cornélio confessou não saber desenhar as letras… A irmã se esquecera de ensinar ao aluno aquele insignificante detalhe…

Um menino triste

Cornélio era uma criança taciturno, metida consigo mesma. Não tinha colegas e suas distrações se constituíam em leituras ou brincadeiras solitárias, onde dava largas à imaginação. Ao lado de um mastro, fincado no quintal, imaginava-se pilotando um barco, fantasiando viagens…

Naquela solidão de que se cercava por seu próprio temperamento, chegou a acreditar que não era querido, e que o abandonavam. Sentiu-se infeliz e decidiu acabar com a vida, jogando-se sobre os trilhos da Mogiana.

Saiu de casa, levando o se cachorro Zupi, e só não se suicidou porque o cão se pôs a latir, agitando-se desesperado. A reação enterneceu o escritor, e o fez desistir da ideia…

Na escola Modelo

Fez todo o curso primário de forma agitada, em algumas pequenas escolas da cidade. Já a esse tempo gostava muito de ler e escrevia composições, tendo, certa vez, ganho um prêmio num concurso de O Tico-Tico. De outra feita apresentou, na Escola Modelo, de Anália Couto, uma composição que a mestra achou excelente, recusando-se a aceitá-la como sendo de sua autoria.

Também nessa escola a professora exigiu certa vez que os alunos decorassem uma poesia para ser recitada em aula, dando liberdade de escolherem as composições. No dia marcado, Cornélio fez, com os colegas, a sua declamação. No fim, a professora elogiou os alunos, mas fez uma ressalva: lamentavelmente, dois deles tinham recitado versos impróprios: uma garota chamada Terezinha, e o nosso Cornélio Penna…

Entre essas lembranças da meninice, o escritor guarda uma especialmente dolorosa – o acidente sofrido aos dez anos, numa de suas brincadeiras, e o que lhe valeu a perda de uma vista. Preparava uma arma medieval, com cadeiras, correntes e uma arbaleta, quando esta disparou, atingindo-lhe o olho direito.

Leituras

Alexandre Dumas (1824-1895)

O escritor lia tudo o que lhe chegava às mãos, desde o Tico-Tico a Pérez Escrich e Alexandre Dumas, tendo se entusiasmado com “As duas Dianas”, romance que comprara com as próprias economias e que causou suspeição ao vendedor, quanto à proveniência daquele dinheiro.

Não resistia nem mesmo aos folhetins jogados sob a porta, embora só lesse o primeiro fascículo. Escreveu também um romance – Margarida de Hohenstauffen –, de fundo histórico, e que começava assim: Em um dos mais altos píncaros, de uma altíssima montanha… Mas os irmãos descobriram o livro, leram-no, caçoando de Cornélio, que resolveu destruir os originais…

Ginásio e faculdade

Ginásio Culto à Ciência, Campinas, SP

Em 1908, matriculou-se no famoso ginásio Culto à Ciência, do qual foi professor Coelho Neto. Estudou aí durante cinco anos, tendo como professor de literatura Basílio de Magalhães.

Foi no ginásio que tomou conhecimento de Camilo, a quem adorava, e cuja coleção completa conseguiu adquirir, comprando livro a livro, com grande dificuldade. Foi também a essa época que tomou contato com Machado de Assis.

Em 1914, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, nela permanecendo até 1919. Data desse período a sua paixão pelos russos – Dostoievski, Tolstói, Tourgueneff.

A pintura

Correio da Manhã, 10/4/1941

Depois que abandonou o seu malogrado romance, Cornélio Penna passou a desenhar e pintar, e quando terminou o curso resolveu dedicar-se definitivamente às artes. Em 1919, vindo para o Rio, passou a trabalhar como redator de O Jornal, aí também colaborando como desenhista e escrevendo contos e crônicas.  Trabalhava também como funcionário do Ministério da Justiça.

Em 1924, fez uma exposição de desenhos, na Associação dos Empregados do Comércio, sob auspícios do embaixador da Alemanha. Terminou a carreira de pintor porque, concluído um quadro, achou-o demasiadamente literário (isso em 1927). Aliás, a vista perdida constituía também um entrave à carreira abraçada.

Compreensão de Itabira

A ideia de FRONTEIRA vinha de muito tempo, e nasceu da necessidade que sentia o autor de escrever um livro sobre Itabira, que considera a cidade mais importante do Brasil – o seu símbolo. Falou a alguns amigos, entre eles Aníbal Machado e Raul Bopp, de tal necessidade. Como aqueles escritores não se interessaram, resolveu então escrevê-lo ele próprio.

O livro foi escrito devagar, com pausas, tendo passado quase três anos para termina-lo. Aproveitou lembranças de Itabira, entre elas Maria Santa, que no romance aparece como a personagem principal. Publicou o livro em 1936, por sua própria conta, pela Ariel, de que era diretor o seu amigo Gastão Cruls.

Dois romances de Nico Horta, de 1939

Explicando o livro, frisa o escritor que FRONTEIRA é “uma compreensão de Itabira”, não se tendo preocupado em descrevê-la ou fazer-lhe o documentário. A paisagem, os tipos não lhe interessam.

A reação da crítica diante do romance foi excelente, nomes como Tristão de Athayde, Otávio de Faria e Mário de Andrade falaram com entusiasmo sobre o estranho livro, que vinha fazer uma curra completamente imprevista na linha tradicional do romance brasileiro.

Em 1939, publicou DOIS ROMANCES DE NICO HORTA, espécie de continuação de Fronteira, e, em 1948 – REPOUSO, onde retorna à Itabira. Em 1954, deu-nos o seu último romance A MENINA MORTA, que teve ótima acolhida, e lhe valeu o Prêmio Carmem Dolores Barbosa.

Morte e Casamento

Maria Odila e Cornélio Penna

Em 1937, resolveu abandonar o Ministério da Justiça, onde trabalhava há doze anos. Recebeu intimações, que nunca respondeu, sendo finalmente demitido por abandono de emprego.

Foi então para São Paulo, onde permaneceu até a morte da mãe, em 1943, aos 78 anos de idade. Nesse mesmo ano casou-se com Maria Odila de Queiroz Matoso que, como sua mãe, vem sendo sua companheira inseparável pela vida afora. Não tem filhos.

Uma viagem à Europa

Em 1950, no Ano Santo, o escritor foi à Europa, tendo percorrido rapidamente a Itália, França, Suíça, Portugal e Espanha.

Não foi, propositadamente à Inglaterra, preferindo deter-se mais tempo em Portugal, onde visitou Lisboa, Coimbra, Alcobaça. Infelizmente não pode demorar-se mais tempo, como desejava.

Em Lisboa, fez questão de conhecer o Chiado, tendo perguntado a um comerciante das imediações porque a rua tinha aquele nome pitoresco. E ficou surpreendidíssimo ao saber que era o nome de um poeta português… Desse passeio, não trouxe livro nenhum, não tendo feito ao menos “carnet de viagem”. Aliás, acho-os detestáveis.

A procura da solidão

Cornélio Penna é um homem amante da solidão, preferindo a tudo manter-se no seu retiro, entregue a seu próprio mundo. Em 1943 morava em São Paulo, mas eram tantos os literatos que invadiam a sua casa, prejudicando-lhe o sossego, que resolveu fechá-la e vir embora para o Rio.

Mas mesmo aqui o escritor sentiu-se perseguido na sua paz. Já, casado, foi morar à rua Martins Ferreira, 50, em Botafogo. Acontece que ao lado, no número 52, foi permitida a existência de uma sinagoga, cujos cânticos religiosos, nas noites de festa, o martirizavam. Mudou-se então para um casarão à rua Soares Cabral, em Laranjeiras.

Durante muito tempo acreditou haver finalmente conseguido o seu tão desejado sossego, quando se viu novamente perseguido – desta vez pelo tráfego. Quase desesperado, foi refugiar-se à rua Rubem Dário, onde se encontra atualmente. Mas o seu sonho é fugir definitivamente para uma fazenda no estado do Rio, onde não o persigam nem literatos, nem cânticos religiosos, nem ruídos de buzinas…

As preferencias literárias do escritor

Machado de Assis (1839-1908)

Cornélio Penna não tem preferência por nenhum de seus livros, nem gosta de falar sobre eles. Depois que os escreve, abandona-os completamente, sendo indiferente também à crítica à sua obra.

Gosta muito de literatura policial. Entre os grandes escritores tem especial predileção por Jullien Green, Maurice Baring, Emily Brontë, Mauriac, José Régio, Thomas Mann, Faulkner. Tem antipatia por Gide e não gosta de Theodore Dreiser, considerando “Uma grande família americana” uma simples notícia policial.

Quanto aos nacionais, Cornélio Penna diz que, se acaso fosse escrever a literatura do Brasil, começaria assim: “No começo era o nada; depois apareceu Machado de Assis; depois… o nada outra vez.” Concorda que tem aparecido ultimamente bons livros, e gosta de vários deles, mas reconhece que lê pouco, não tendo uma ideia formada acerca deste ou daquele escritor. Não pensa na Academia.

[Correio da Manhã (RJ), 15/10/1955. BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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