“Não é hora de silêncio”: Milton Hatoum denuncia genocídio na Palestina em mesa sobre literatura e memória
Fotos: Carlos Cruz
Autores discutem engajamento, ambiguidade e o papel da literatura diante da violência, do negacionismo e da memória coletiva
Na noite de sexta-feira (31), o 5º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira) prosseguiu com a sua programação com uma mesa de grande densidade política e poética.
Reunidos no teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (FCCDA), os escritores Milton Hatoum, Ana Maria Machado e Miriam Leitão, com mediação de Geni Nunes, debateram o papel da literatura diante dos traumas sociais, da memória e da complexidade humana.
Genocídio tem nome

Milton Hatoum, em depoimento firme e contundente sobre o massacre de civis palestinos, foi incisivo. “Só quem desconhece a história da opressão que os palestinos sofrem há 80 anos não chama o que está acontecendo por lá de genocídio”, afirmou.
Ele fez questão de distinguir o povo judeu do Estado de Israel, citando historiadores judeus que reconhecem o caráter genocida das ações em Gaza.
Hatoum relembrou a destruição de cidades palestinas como Jaffa, uma das mais antigas e prósperas da região antes de 1948. E denunciou a expulsão de cerca de 750 mil palestinos durante a Nakba — o êxodo forçado que marcou a criação do Estado de Israel.
Ele destacou que Tel Aviv, fundada em 1909 como subúrbio judaico de Jaffa, expandiu-se após a guerra sobre áreas palestinas esvaziadas e destruídas, incorporando territórios marcados por escombros e apagamentos.
O escritor fez questão de distinguir o povo judeu do Estado de Israel, citando historiadores judeus que reconhecem o caráter genocida das ações em Gaza.
“Só quem desconhece a história da opressão que os palestinos sofrem há 80 anos não chama o que está acontecendo de genocídio”, afirmou.
Para Hatoum, o momento exige posicionamento claro. “Esse não é o momento da humildade. Não é o momento do silêncio. E não é o momento do negacionismo”, disse, traçando paralelos com o negacionismo político vivido no Brasil.
Literatura como escuta e resistência

A mediadora Geni Nunes trouxe à mesa o Dia do Saci, celebrado em 31 de outubro, como símbolo de resistência cultural afro-brasileira. Ela destacou o apagamento de mitos originários e a importância de recuperar narrativas que foram silenciadas pelo imperialismo.
Geni também evocou o conceito de “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo, como fusão entre memória e ficção. “A literatura é uma forma de devolver humanidade aos que foram desumanizados”, afirmou.
A memória como matéria-prima da criação

A escritora Ana Maria Machado compartilhou uma experiência marcante com seu livro De Olho nas Penas, traduzido para a Suécia e lido também por crianças em Angola, durante a guerra civil.
“As perguntas que ouvi das crianças angolanas foram praticamente as mesmas que ouvi das suecas e das brasileiras. Isso me ensinou como a literatura revela nossas semelhanças e nossas diferenças.”
Ela destacou que a memória, a imaginação e a observação formam uma trança que alimenta a criação literária. “A linguagem é uma memória coletiva. E escrever é um gesto de sobrevivência.”
Negacionismo como apagamento da realidade

A jornalista e escritora Miriam Leitão abordou com contundência o impacto do negacionismo durante o governo anterior, especialmente no contexto da pandemia de Covid-19.
“Foi um atentado à vida. O negacionismo nos feriu diretamente — da vacina, da ciência, da realidade”, afirmou. Para ela, o apagamento deliberado de fatos e evidências não foi apenas uma postura política, mas uma violência simbólica e concreta contra a população.
Como forma de resistência e elaboração do trauma coletivo, Miriam contou que escreveu dois livros de não-ficção e dois infantis durante esse período. A escrita, segundo ela, tornou-se um espaço de elaboração, denúncia e cuidado. “A literatura me ajuda a respirar quando o mundo sufoca”, disse.
Ela também compartilhou como sua trajetória como jornalista alimenta sua criação literária. “Os fatos fertilizam minha imaginação”, disse.
Miriam contou que, mesmo diante da dureza da realidade, encontra na escuta cotidiana, especialmente das crianças, uma fonte de inspiração e encantamento. Foi assim que nasceu um de seus livros infantis, inspirado por uma frase dita por sua neta em uma noite difícil.
A jornalista estava sem conseguir dormir, tomada pela angústia dos acontecimentos recentes, quando a menina se aproximou e disse com doçura: “Vovó, você precisa dormir. Porque quando a gente dorme, a cabeça inventa coisas boas.”
A frase, simples e luminosa, virou semente de um livro. “A realidade está sempre bordando minha fantasia”, completou Miriam, emocionada.
Para ela, a literatura é também um gesto de cuidado com os outros e consigo mesma.
Para Miriam, a fronteira entre o jornalismo e a literatura é porosa. E é justamente nesse entrelaçamento que nasce uma escrita comprometida com a verdade e com a sensibilidade.

Ambiguidade como essência da literatura
Milton Hatoum refletiu sobre a ambiguidade como território da arte. “A literatura não tem a pretensão de explicar. Ela fala sobre o inexplicável.” Ele citou Joseph Conrad como exemplo de escritor que transformou uma vida de ação em uma obra marcada pela ambiguidade moral.
“A única verdade possível na literatura é a verdade das relações humanas”, afirmou.
Ele também destacou que o engajamento literário não se dá por palavras de ordem, mas por perguntas que sustentam o paradoxo e a complexidade.
Engajamento além das fronteiras
A mesa discutiu como a desumanização se repete em diferentes contextos, da Palestina às favelas brasileiras.
Geni Nunes lembrou que o tempo é uma dobra, onde traumas distantes se aproximam.
Ana Maria Machado reforçou que a literatura se completa com a leitura do outro. Disse que cada sociedade traz sentidos diferentes para a mesma obra.

Domingo de despedida no Flitabira 2025
O 5.º Flitabira se despede neste domingo (2) com uma programação que celebra a literatura como espaço de memória, resistência e imaginação.
O encerramento do festival será marcado por mesas com os quatro escritores homenageados desta edição: Ignácio de Loyola Brandão, autor de obras fundamentais como Não Verás País Nenhum, contista, romancista, jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras.
Conceição Evaristo, referência da escrevivência e da literatura negra brasileira e Ana Maria Machado, uma das maiores autoras da literatura infantil e juvenil, também integrante da ABL, são outras escritoras homenageadas, juntamente com Milton Hatoum, romancista premiado cuja obra atravessa temas como memória, identidade e política.
Além das mesas literárias, o domingo contará com atividades infantis, mediação de leitura, apresentações musicais e intervenções artísticas na avenida Daniel de Grisólia, encerrando o festival com a mesma intensidade poética que marcou toda a programação.
Serviço
5.º Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira
Data: De 29 de outubro a 2 de novembro, quarta-feira a domingo
Local: Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e avenida lateral.
Entrada gratuita
Toda a programação é transmitida online pelo Youtube @flitabira
Acesse a programação completa em www.flitabira.com.br









