Na maior operação da história do Brasil, 593 trabalhadores são resgatados em condições análogas à escravidão
Fotos: Divulgação/ Operação Resgate IV
Operação Resgate IV ocorreu entre 19 de julho e 28 de agosto, em 15 estados e no Distrito Federal
Durante julho e agosto de 2024, a Operação Resgate IV retirou 593 trabalhadores de condições de trabalho escravo contemporâneo. Este número é 11,65% maior do que o de resgatados da operação realizada em 2023 (532). Ao todo, mais de 23 equipes de fiscalização participaram de 130 inspeções em 15 estados e no Distrito Federal.
Essa ação conjunta de combate ao trabalho escravo e tráfico de pessoas no Brasil é resultado do esforço de seis instituições: Defensoria Pública da União (DPU), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Os estados com mais pessoas resgatadas foram Minas Gerais (291), São Paulo (143), Pernambuco (91) e Distrito Federal (29). Houve resgates em 10 estados. Quase 72% do total de resgatados trabalhavam na agropecuária, outros 17% na indústria e cerca de 11% no comércio e serviços.
Entre as atividades econômicas com maior número de vítimas na área rural estão o cultivo da cebola (141), da horticultura (82), de café (76) e de alho (59) e cultivo de batata e cebola (84).
Na área urbana, destacaram-se os resgates ocorridos na fabricação de álcool (38), administração de obras (24) e atividade de psicologia e psicanálise (18). Houve inspeção em dez ambientes domésticos e duas trabalhadoras foram resgatadas.
As equipes flagraram 18 crianças e adolescentes submetidos a trabalho infantil, das quais 16 também estavam sob condições semelhantes à escravidão. As fiscalizações ocorreram no Amapá, Distrito Federal, Mato Grosso e Minas Gerais.
Balanço
O coordenador Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo e Tráfico de Pessoas, André Roston, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), fez um balanço das ações de fiscalização realizadas ao longo de agosto de 2024.
Segundo ele, os trabalhadores resgatadps já receberam, aproximadamente, R$ 1,91 milhão em verbas rescisórias, sendo que o total estimado é de R$ 3,46 milhões. O valor total será maior, pois muitos pagamentos ainda estão em processo de negociação com os empregadores ou serão judicializados.
O defensor público-geral federal, Leonardo Magalhães, da Defensoria Pública da União (DPU), ressalta a grande participação dos defensores públicos federais na Operação Resgate IV. Ele destaca a atuação da DPU no estado de São Paulo no resgate de 82 vítimas em Itapeva (SP), sendo 48 mulheres e 34 homens.
Desde 2014, a DPU tem se envolvido ativamente nessas operações. De acordo com ele, é comum encontrar lugares insalubres: sem água potável, comida de qualidade e alojamentos adequados. A DPU assegura o pagamento de verbas trabalhistas, negocia danos morais individuais, auxilia na regularização de documentos e busca benefícios assistenciais e previdenciários.
O subprocurador-geral do Trabalho Fábio Leal, do Ministério Público do Trabalho (MPT), aponta que a Operação Resgate IV constitui importante marco no esforço interinstitucional de erradicação do trabalho em condições análogas à escravidão. O Ministério Público do Trabalho, com sua participação, assegurou os direitos coletivos e individuais das trabalhadoras e trabalhadores resgatados.
O subprocurador-geral da República Francisco de Assis Vieira Sanseverino, do Ministério Público Federal (MPF), diz que “o objetivo do MPF nas ações é colher no local as provas a serem utilizadas no processo penal, para agilizar a investigação e tornar a apuração criminal mais efetiva”.
O diretor-geral substituto da Polícia Rodoviária Federal, Alberto Raposo, destacou a importância de operações conjuntas: “Graças à integração entre as instituições públicas é possível alcançar resultados positivos mais expressivos”.
Em 2022, a PRF deu suporte em ações que ajudaram a resgatar 700 pessoas da condição de trabalho análogo à escravidão. Em 2023 esse número chegou a 1.300 resgatados.
Raposo deixa registrado que o órgão está à disposição para todas as outras operações que vierem, com a esperança de que um dia não seja mais necessário, quando esse cenário deprimente de exploração esteja extinto definitivamente.
O chefe de Divisão de Repressão ao Trabalho Forçado, Henrique Oliveira Santos, da Polícia Federal, revela que a instituição conduz 482 inquéritos policiais em todo o Brasil para investigar esse crime. Minas Gerais lidera com 86 inquéritos, seguido por São Paulo com 66, e Pará com 47.
Trinta e três dessas investigações foram iniciadas durante a Operação Resgate IV, apenas neste mês de agosto. Em todo o ano foram realizados 12 procedimentos de prisões em flagrantes com um total de 16 pessoas presas.
Casos
Alguns casos chamaram a atenção neste ano. Foi o caso da ação fiscal realizada pela equipe de fiscalização do Mato Grosso do Sul que, para alcançar os locais onde estavam os trabalhadores, utilizou transporte terrestre (caminhonete), aéreo (helicóptero) e fluvial (lanchas).
A equipe resgatou 13 paraguaios em dois estabelecimentos distintos, que realizavam as atividades de carvoejamento e confecção de cercas. Foram encontradas situações degradantes de trabalho, além de servidão por dívida.
Em Pernambuco, 18 trabalhadores foram resgatados de uma clínica para dependentes químicos. Eram pacientes internados que realizavam as atividades laborais compulsoriamente como parte da internação (atividades administrativas, de portaria, de vigilância e de alimentação). A clínica contava com 63 internos e não tinha empregados registrados. Essa fiscalização está em andamento.
Em Minas Gerais, foram identificados 59 trabalhadores vítimas do crime de redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo, sendo sete mulheres, das quais quatro menores de idade.
Os trabalhadores, em sua maioria migrantes do Maranhão residentes na região, exerciam a função de colhedores de alho em duas propriedades rurais. Eles estavam submetidos a condições degradantes de trabalho e vida.
Resgate de idosos
Em Mato Grosso houve o resgate de uma trabalhadora idosa, com 94 anos de idade. É a pessoa mais idosa a ser resgatada no Brasil. Ela trabalhou por 64 anos sem salário, sem estudar e sem constituir família.
No início da ação fiscal, ela cuidava da patroa, uma senhora com 90 anos adoecida com Alzheimer. Foi garantido à trabalhadora o usufruto da casa onde morava, com todas as despesas pagas pela família da empregadora, incluindo a contratação de cuidador de idoso para ela, além do recebimento de um salário mínimo por mês.
Em São Paulo, ocorreu o resgate de uma empregada doméstica, com 52 anos de idade, que foi retirada de um orfanato quando tinha 11 anos, com tutela provisória concedida à família, nunca transformada em definitiva. Trabalhava, portanto, compulsoriamente desde a infância na casa dos exploradores.
Relatou que a sua jornada era de segunda a sábado das 7h às 21h e que, aos domingos, ‘passava um pano na casa’. Ela nunca tirou férias e trabalhava durante os feriados. Recebia R$ 500,00 por mês, que chamava de agrado. Desde que foi para a casa do empregador, ela não mais estudou e nem constituiu família.
No início da inspeção fiscal, a trabalhadora doméstica foi encontrada cuidando do casal empregador, hoje com 95 e 91 anos, respectivamente. Nesse caso, a família se comprometeu a comprar uma casa para a trabalhadora, além de pagar uma indenização de R$ 50 mil, a título de dano moral individual.
Ainda não estão consolidados os dados totais das ações fiscais, tendo em vista que há equipes ainda em campo ou concluindo os resultados das fiscalizações. O que é possível observar, contudo, é o incremento de denúncias e a identificação de casos de trabalho escravo doméstico.
No Rio de Janeiro, em julho, no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste da cidade, a vítima tinha 59 anos. Ela trabalhava naquela casa de família desde os 13 anos. Havia cuidado do patrão e, agora, cuidava dos filhos dele.
A trabalhadora saiu de Pernambuco e foi para o Rio de Janeiro há 8 anos. Não recebia salário e não tinha folgas, permanecendo à disposição da família de forma ininterrupta. A mulher não tinha conta bancária, não tinha relações pessoais ou sociais, convivia apenas com pessoas relacionadas aos patrões.
A partir do primeiro resgate de trabalhadora doméstica ocorrido no Brasil, em 2017, o número de denúncias vem crescendo. As situações que envolvem a fiscalização, o resgate e o encaminhamento das vítimas de trabalho escravo doméstico são complexas e delicadas, pois, em sua quase totalidade, as pessoas exploradas se encontram naquele contexto há muitos anos.
Estrangeiros
Em agosto, em Anta Gorda (RS), a Operação Resgate IV flagrou quatro trabalhadores argentinos em condições degradantes na extração, corte e carregamento de lenha de eucalipto. Os migrantes estavam sem documentos.
A contratação ocorreu sem que houvesse, pelo empregador, a exigência de visto para o trabalho, nem a confecção da carteira de trabalho e previdência social e anotação do contrato de trabalho.
O primeiro resgatado, de 47 anos, foi encontrado vivendo em um galpão de madeira improvisado e precário. As outras três vítimas estavam numa casa localizada em uma propriedade próxima ao local de trabalho, onde não havia água encanada, vaso sanitário ou chuveiro. Os quatro receberam as verbas rescisórias e já retornaram para a Argentina.
Atuação da DPU
Com a participação de treze defensores públicos federais durante a Operação Resgate IV, em todo o Brasil, a Defensoria Pública da União (DPU) desempenhou um papel essencial na proteção de trabalhadores resgatados de situações de escravidão contemporânea.
“A DPU atua na assistência aos trabalhadores resgatados em situações de escravidão e vulnerabilidade social e econômica, ajuizando ações individuais, firmando Termos de Ajustamento de conduta (TACs) e ofertando reclamações trabalhistas”, explica Izabela Luz, defensora pública federal e coordenadora do Grupo de Trabalho de Combate à Escravidão Contemporânea (GTCEC/DPU).
Além da assistência jurídica, a DPU orienta os trabalhadores sobre seus direitos trabalhistas e previdenciários, promovendo conscientização e reduzindo as chances de reincidência em situações análogas à escravidão. Reconhecida pela Portaria nº 3.484/2021 do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a DPU faz parte do Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo e colabora com outras entidades na fiscalização do trabalho escravo.
Atualmente, 71 defensores federais atuam nas operações de resgate por meio do Grupo Especializado de Assistência a Trabalhadores/as Resgatados/as de Situação de Escravidão (Getrae).
Parte deles integra o GTCEC/DPU, que é responsável por normatizar ações relacionadas ao trabalho escravo, monitorar casos em trâmite, consolidar dados e discutir soluções. O grupo também recebe denúncias por meio do e-mail trabalhoescravo@dpu.def.br.
A DPU participa ativamente das operações de fiscalização em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego (MPE), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF), além de oferecer suporte no pós-resgate, auxiliando na emissão de documentos e no contato com serviços sociais essenciais, reafirmando sua importância na luta contra a escravidão contemporânea.
Operação Resgate IV
É a maior ação conjunta já realizada no país com a finalidade de combater o trabalho análogo ao de escravo e o tráfico de pessoas integrado pelo MTE, MPT, MPF, DPU, PF e PRF.
O mês da operação é marcado pelo Dia Internacional para a Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição, instituído em 23 de agosto pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), bem como pela data de falecimento do abolicionista Luís Gama (24 de agosto de 1882), patrono da abolição da escravidão no Brasil.