Minas

“Da paisagem e do tempo”, 1957, óleo sobre tela, de Maria Leontina (1917-1984). Coleção Gilberto Chateaubriand MAM Rio.

Por Cornélio de Oliveira Penna

Compreendo bem a suavidade, a doçura que representa para todos o rememorar as cenas inocentes de sua infância, a revisão um pouco apagada, mas por isso mesmo mais cheia de ternura, dos velhos rostos que se debruçaram sobre eles, das paisagens que, por longo tempo, se abriram diante de seus olhos ainda novos, sempre as mesmas, formando o quadro inapagável de seu país natal.

Muitas vezes aquelas paredes foram tocadas pelas mãos infantis dos pais, dos avós e ainda não foram destonadas pelo tempo, e lá estão, bem longe, no norte ou no sul, no centro ou mesmo aqui bem perto, nas velhas fazendas do Estado do Rio, à espera da volta dos filhos pródigos, emocionados, trêmulos da ânsia de revê-las, de sentir sobre si o seu abrigo, o seu refúgio de paz e de silêncio…

Voltar! Poder fazer viver de novo todos os pequenos episódios, mesmo os infelizes, de nossos primeiros dias na terra, envolvidos agora pela nossa experiência em seu véu de magia, na involuntária mentira de nosso enternecimento, transformados em sequencia de felicidade insuspeitada, de alegria muito pura, cristalina, que agora nos parece evidente, apesar das lágrimas e das cóleras que os cobriam.

E a viagem, deliciosa e angustiante, aquele que depois de muitos anos vai ver o lugar onde nasceu e onde transcorreram tranquilos os seus dias de meninice, protegidos pelos braços paternos, pelo carinho sem par do amor de mãe…

Cornélio Penna (Acervo: revista Fon-Fon)

Mesmo que todos já tenham desaparecido, mesmo com os olhos aguados e o coração sufocando de saudade das figuras que se agitavam naquele meio e que se foram, é inigualável o prazer entremeado de dor que acompanha e abençoa os que entreabrem a porta por onde fugiam, contemplam o degrau de escada onde se sentavam para sonhar com as diabruras a serem realizadas ou com as fantásticas aventuras que sabiam impossíveis, mas cuja realidade ultrapassava todos os acontecimentos diários.

Esta é a cadeira onde vovô se sentava, ali ficava sempre a vara de pescar, a casinha das bonecas, o chicote que servia para espantar os cavalos selvagens de nossa imaginação, e o armário dos doces ainda existe, na copa onde ainda está a xicara deixada sobre a pia, tal como foi feito no último dia de nossa entrada naquela casa.

Desenho de Cornélio Penna: “Um escritor fala de sua província.-Minas-CP-Jornal-de-Letras-nov-de-1975-

Mas, outros menos felizes, em seus momentos de amargura, procuram debalde fazer surgir a temporada luminosa de sua infância, porque as recordações dolorosas, a revelação do mal, correm em grandes ondas ao seu encontro e tudo fazem submergir.

Para aqueles que não tiveram pouso certo, cuja existência foi apenas longa e cansada peregrinação de cidade em cidade, a passar de um estado para outro, tangidos pela tristeza e pela inquietação dos que a cercam e que sofrem dores acima de sua compreensão, que só muito mais tarde se enobrecem e se enrijecem diante da dureza da vida sem piedade, esses não são filhos pródigos e para eles não será morto o novilho mais gordo, quando procurarem a casa, a fazenda, a cidade natal.

Esses lugares surgirão como paisagens estrangeiras, onde não há um só ponto que reviva em seu coração, onde todos os detalhes se conservam mudos, inanimados e frios aos seus olhos e aos seus dedos.

Todos foram pousos provisórios, encruzilhadas, albergues, nos quais, por alguns anos precários, permaneceram sempre em vésperas de partida, e neles ficaram, apenas, aos pedaços, as recordações, os sentimentos e as alegrias, que nunca poderão ser trazidas em ordem, à memória, presas pelo fio de ouro da tranquilidade e da paz.

Desenho de Cornélio Penna. capa do periódico O Mundo

Quis eu um dia ver a igreja onde meus pais se casaram, no exílio voluntário de Paris, onde ele fora completar na Sorbone a sua especialização, no desejo secreto de se dedicar a Itabira e ela ali vivia, em companhia da família, na esperança de salvar a vida materna, e nada encontrei do velho templo destruído, devorada pela rua onde se levantava, transformando em outro, noutro local, sem nenhuma recordação do antigo.

Nos arquivos, não existia mais o registro da cerimônia celebrada com discreta pompa… tentei então evocar toda a minha vida e não pude, pois tinha ela sido marcada desde o seu início por três mortes que apagaram a alegria no rosto daquela que eu devia acompanhar até o fim de seu longo martírio, na dor de sobreviver tantos anos à sua felicidade destruída tão cedo.

A angústia escondida, o vazio imenso deixado por alguém, foram os primeiros contatos com a vida, tiraram todo o sangue, toda a vitalidade das impressões infantis, e a realidade perdeu o seu valor afirmativo, passando a ser apenas cenário móvel, que se agitava e corria, sem grande significação.

Petrópolis, Itabira do Mato Dentro, Campinas, Pindamonhangaba, São Paulo e Rio de Janeiro, são nomes que soam em vão aos meus ouvidos, e se procuro com dorida preocupação refazer minha terra natal, consigo apenas reconstruir uma cena, sempre repetida.

Sentado junto ao mastro de navio imaginário, representado pelo pau onde foi dependurado, outro com a vela improvisada, tendo nas mãos qualquer coisa para servir de remo, certo menino sonha, imóvel, por muitas horas, sonhos indefinidos, em nuvens dispersadas, em viagem sem fim, partido do país onde nasceu, e cujo espetáculo não se fixou em seu coração, para terras que não conhece, e que sempre desaparecem do horizonte, dissolvendo-se em fumo.

Cornélio Penna aos 8 anos (Acervo: Arquivos Implacáveis, coluna de João Condé

Como se chamava a terra onde foi preso esse mastro? Não sei, e talvez tenha vários nomes, talvez muito mais longe umas das outras, ainda existam marcas imperceptíveis no solo, deixadas por ele, separadas por ele, separadas por muitas léguas através de linhas limitrofes e vãs dos Estados federados. Talvez também ainda exista esse selo humilde em minha alma, a marca dos emigrados e dos fugitivos…

[Jornal de Letras, novembro de 1975. Hemeroteca da Biblioteca Nacional-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

 

 

 

 

Posts Similares

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *