Meu destino é pecar

Álvarus, por J. Carlos

Meu destino é pecar, título de um dos romances de Nelson Rodrigues (1912-1980), o carioca do Recife.

Nesta postagem, a Vila de Utopia oferece momentos de risos pra aliviar o tranca-ruas, com uma crônica deliciosa do Nelson em defesa de outro esplendido carioca – caricaturista, jornalista, historiador de arte, escritor e professor – Álvarus Cotrim (1904-1985).

Fique em casa e leia a Vila de Utopia! (Cristina Silveira)

Uma agressão covarde

Por Nelson Rodrigues
Álvarus (Acervo: BN. Jornal A Crítica. Pesquisa: Cristina Silveira/ViladeUtopia)

O nosso confrade Álvarus foi, ontem, vítima de uma brutalidade sem classificação. A polícia prendeu-o sob a alegação estupida de que ele estava inconvenientemente vestido. Mas, tudo, afinal, se reduz, a uma antipatia gratuita que lhe dispensava um delegado qualquer.

Porque o argumento dos trajes inconvenientes, quer dizer, imorais e, neste caso menores, é falso, sem uma procedência que o recomende à aceitação dos homens sensatos. Álvarus, na ocasião em que foi preso, estava completamente vestido.

Não se lhe via uma nesga de carne. A única coisa que ficava à mostra era a cara. Ora, a cara nunca foi vedada no Brasil. O tal delegado leu, sem dúvida, qualquer romance turco, ficou impressionado com o costume dos véus e quer adaptá-los à civilização brasileira.

Mas, nem assim, o policial justifica-se. Mesmo na Turquia o uso de véus acabou-se; e quando existia só era adotado por mulheres, Álvarus não é mulher. Portanto, ninguém tinha o direito de proibir que esse andasse coibindo a cara quantas vezes quisesse.

Álvarus

Quanto ao restante do corpo, tudo estava hermeticamente fechado. Além das roupas de baixo, a roupa de fora e, além desta, um vasto, pesado capote siberiano.

O leitor há de estranhar que Álvarus usasse um capote siberiano dentro do calor de ontem. Mas, explica-se. Esse já tinha sido informado do ódio vesgo com que o pisava o delegado.

Soube, também, dos pretextos que o mesmo delegado ia empregar para brutaliza-lo. E quis se garantir. Arrastou o calor canicular com o seu tremendo capote.

Ninguém, em vista disso, podia acusá-lo de estar com roupas insuficientes. Mas, o delegado, vendo frustrados os seus planos, perdeu a compostura, gritou, berrou, esperneou e só se aquietou quando lhe acudiu um pretexto tolo, ingênuo, irrisório para desandar de violências em violências. Chegou mesmo a agredir o nosso prezado confrade.

Nelson Rodrigues

Assim que recebemos a notícia da lamentável ocorrência, tratamos de apresentar a Álvarus a nossa solidariedade. E foi ainda na delegacia que lhe falamos e deploramos o incidente.

O detestável delegado quando nos viu, interrogou solicito e pegajoso:

– Os senhores são jornalistas?

– Perfeitamente.

– Então, queiram ter a bondade de dar um pulo aqui.

Aproximamo-nos.

O delegado explicou-se.

Nelson Rodrigues, o fluminense, por Baptistão

– Os senhores não imaginam! Foi para mim uma contrariedade imensa prender esse moço. Mas, que querem? Ele estava comprometendo a moral pública. Chegaram à delegacia inúmeras reclamações. Uma senhora virtuosa, da nossa mais alta sociedade, veio reclamar contra o mesmo.

“É uma indecência”, disse-me. “As minhas filhas não podem chegar à janela…” Perguntei: “E ele aparece na rua em trajes menores?” Ela: “Completamente despido. Não coloca o mínimo véu, nem a clássica folha de parreira”. Chegado a esse ponto, ela despediu-se, prometendo-lhe eu. severas providências.

No dia seguinte me informaram que a senhora em questão falseara com a verdade. Porque o moço andava completamente vestido. Mandei chamar a queixosa. Disse-lhe o que havia. Ela, então, explicou o mistério:

“Mas, eu me refiro à cara, uma cara obscena. Ele não a cobre nem com calças curtas, nem com cuecas, ao menos”.

Fui me avistar com o sr. Álvarus. E fiquei indignado. Andar com uma cara daquelas à mostra era uma afronta ao público. Já não digo que ele usasse calças na cara; mas, cuecas, pelo menos…

[Hemeroteca da BN-Rio, jornal Crítica, 23.4.1930]

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