Memória de gente: Luís Camillo, a flor do deserto

Fotos: Acervo BN/Rio

Por Paulo Mendes Campos

Eu era menino. A casa de Luís Camillo de Oliveira Neto ficava ao lado da nossa. De manhã eu o via saindo, gesticulando, falando em voz alta a aula que iria proferir daí a pouco numa faculdade.

À tarde, eu o via chegar carregado dos livros que escondia na garagem, a fim de removê-los para o corpo da casa à noite. A falta de espaço preocupava sua esposa; não lhe sendo possível extinguir o vício da leitura, ele introduzia os volumes em casa sorrateiramente, na calada, como um ladrão às avessas.

Já homem feito, aqui no Rio, Rua da Matriz, fui apresentado a essas preciosidades que ele juntou com paciência e amor, um fabuloso patrimônio bibliográfico da história do Brasil.

Homem honesto e combativo, assinou o Manifesto dos Mineiros, foi perseguido, perdeu o emprego. Com a restauração democrática, aconteceu-lhe esta coisa que, antes de ninguém, divertia a ele mesmo: foi nomeado diretor de um banco.

Foi o banqueiro que mais entendeu no mundo o fabricante de “papagaios”: sofria mesmo de ternura por qualquer pessoa que lhe pedia um empréstimo ou uma doce reforma. Desassombrado inimigo das praxes formais e impiedosas, passava por cima dos regulamentos, ria-se com prazer dos temerosos colegas que o acusavam de imprudência.

Na foto, da esquerda para a direita: Odylo Costa Filho, Carlos Lacerda, Alceu Marino Rego, Virgílio de Melo Franco, Aguinaldo de Freitas, João Camilo de Oliveira Torres, Neiva Moreira, José Magalhães Pinto, Luís Camillo de Oliveira Netto, Edgar de Godói da Mata Machado, no Rio, 1946

Mais duma vez eu o vi recolher uma promissória vencida e escondê-la do protesto em sua gaveta. Do ponto de vista da classe, foi o pior banqueiro que jamais existiu; do ponto de vista nosso, foi o melhor, o banqueiro ideal, o banqueiro perfeito, a flor do deserto.

Eu chegava no seu gabinete na Avenida Rio Branco: os contínuos, trabalhados pelo hábito, continuavam solenes, mas Luís Camillo me mandava entrar com o grito jovial do mineiro que acolhe em casa um amigo.

Se atendia a alguém, eu esperava um pouco, divertindo-me: o cliente do banco falava em murmúrios, confiando os segredos do algodão, da indústria, do comércio; ele respondia alto, com aquela sua franqueza clara e simpática. Se a explicação do postulante ficava prolixa, ele abaixava os olhos, como um confessor entediado.

Um dia me contou porque fazia isso: tinha sempre na gaveta um livro de poemas aberto; enquanto o outro discorria sobre negócios, o banqueiro Luís Camillo lia Rainer Maria Rilke. Dizia o cliente: “Com o empréstimo, posso fazer uma composição, liquidar todos os débitos e dedicar-me ao aumento de produção da fábrica de arame farpado, que não dá para os pedidos.”

Em confidência, o poeta Rilke lhe dizia: “À vontade de Deus, antiga torre, giro há milhares de anos; mas ainda não sei se sou uma tormenta, um falcão ou um grande canto.”

Como os clientes falassem demais, teve outra ideia para aproveitar o tempo: estudar latim. Enfiou uma gramatica na gaveta. Resmungava o negociante: “Eu só quero o vencimento em quatro meses ou então uma redução da taxa.”

O banqueiro-estudante abaixava os olhos: “Veritas, veritas, veritatem, veritatis, veritati, veritate.”

Uma vez, quando cheguei, ele estava em reunião de diretoria. Levantou-se, disse aos colegas que tinha um assunto grave e inadiável para tratar comigo, pegou-me pelo braço e me disse em voz abafada:

“Vamos cair fora, que eu não aguento mais essa gente.” Lá fora tomamos um táxi:

– Toca para qualquer lugar.

– Como?

– Para qualquer lugar onde não tenha banco.

Então virou-se para mim:

– Você leu o ultimo romance do nosso Cornélio?

(Fonte: BN, Rio – Pesquisa: Cristina Silveira)

 

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