Mandatos coletivos podem oxigenar o tradicional sistema representativo na política brasileira
Fotomontagem com imagens de Wikimedia Commons e Reprodução
Arte: Rebeca Fonseca
Pesquisa do Instituto de Psicologia (IP) da USP analisa como candidaturas coletivas podem democratizar a política e proporcionar efeitos positivos na construção psicológica dos participantes
Um estudo desenvolvido pelo psicólogo José Fernando de Andrade Costa, no Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia (IP) da USP, analisou como a ascensão das candidaturas coletivas no Brasil representa uma tentativa de diversificar os espaços de poder do fazer político.
O mecanismo é visto como uma forma de eleger candidatos que, de outra forma, não conseguiriam chegar, sobretudo ao Legislativo, de forma individual. A pesquisa intitulada Só a Luta Muda a Vida: Um estudo sobre lutas sociais e mandatos coletivos na atual crise da democracia brasileira foi concluída em junho de 2022 e teve a orientação do professor Luis Guilherme Galeão da Silva, do IP.
As candidaturas coletivas ainda não estão previstas na legislação eleitoral brasileira, mas não são proibidas. Os formatos são os mais diversos, desde um pequeno grupo até mais de uma centena de participantes para o exercício de um mandato compartilhado. “A média de integrantes dos primeiros mandatos coletivos eleitos no Brasil, pós-2016, é de cinco membros”, descreve o pesquisador.
Inicialmente, eles se reúnem trazendo pautas sub-representadas – como gênero, meio ambiente, raça – tendo algum nível de proximidade com as pautas que defendem. Como apenas uma pessoa pode ser a titular e é esse representante que será registrado e terá sua elegibilidade julgada pela Justiça Eleitoral, também não há nenhuma garantia legal de que os integrantes dos mandatos coletivos sejam ouvidos pelo representante eleito.
Muitos desses grupos assinam termos de compromisso para evitar dissidências. No Brasil, as candidaturas coletivas começaram a aparecer em 1994, com um formato diferente de hoje, atualmente conhecido como mandatos coletivos, com a presença de coparlamentares eleitos desde 2016.
Para realizar sua pesquisa, Costa buscou analisar a configuração das lutas contemporâneas utilizando materiais bibliográficos e entrevistas com integrantes de quatro mandatos coletivos eleitos ao cargo legislativo: em âmbito municipal.
São eles: o Mandato Coletivo de Alto Paraíso; o Mandato Compartilhado de Gabriel Azevedo, em Belo Horizonte, e o Mandato Popular de Jhonatas Monteiro, em Feira de Santana.
Já em âmbito estadual, a Mandata Ativista, de São Paulo. O pesquisador procurou compreender como esse novo arranjo do fazer político revela uma reconfiguração da luta social no contexto atual da democracia brasileira.
José Fernando Andrade Costa atualmente pesquisa participação comunitária, políticas públicas e territorialidades no Estado da Bahia, no qual é coordenador do Programa de Extensão Ciclos de Ação Comunitária e professor na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Delimitação do estudo
O estudo de Costa é delimitado por momentos da história política brasileira. Parte dos movimentos de luta estabelecidos desde as jornadas de junho de 2013, quando o cenário se tornou complexo em meio à crise da legitimidade do sistema político e o avanço da polarização no Brasil. E chega ao ápice da corrosão das instituições democráticas.
Na pesquisa, Costa restringiu suas análises aos movimentos de luta desempenhados pela esquerda. Segundo ele, o movimento de ataque desempenhado pela crise democrática, sobretudo pelos grupos de extrema direita, representa um tipo de luta social injusta, pois prioriza a reprodução de seus próprios privilégios. As candidaturas coletivas dos setores progressistas, por sua vez, indicam uma força capaz de buscar o bem comum e revitalizar a democracia.
Junto a isso, o autor identifica um movimento denominado contra-ataque, de ocupação da política institucional por novos corpos, historicamente sub-representados. O processo se dá com a ascensão dos grupos de resistência diante de forças antidemocráticas, especialmente em 2018, quando candidaturas coletivas ganharam maior expressividade.
“Pela primeira vez temos corpos negros, de mulheres, trans, indígenas, trabalhadores periféricos, todos esses atores sociais ocupando a institucionalidade política no mesmo período”, destaca o pesquisador. Segundo ele, este é um evento singular na história brasileira, motivo pelo qual ele se dedicou a estudar os mandatos coletivos.
A pesquisa também analisou as dinâmicas institucionais na estruturação da democracia brasileira e a ascensão das candidaturas coletivas como uma possível tentativa, segundo ele, de abrir as fissuras do sistema representativo tradicional.
Por intermédio de uma análise da literatura acadêmica sobre o assunto, o pesquisador demonstrou as contradições da democracia brasileira ao comprovar que, embora o Brasil seja a quarta maior democracia mundial em termos de eleitores, é também o País com 85% de homens compondo o Congresso Nacional, mesmo as mulheres sendo a maioria da população.
Os novos perfis de atores políticos que compõem as candidaturas coletivas geralmente não conseguem defender suas agendas políticas, segundo o pesquisador, pois encontram diversos obstáculos no sistema político brasileiro.
Dentre eles, o alto financiamento das campanhas eleitorais, a ausência de incentivos pelos partidos políticos, além da discriminação e violência política perpetrada pelos grupos que já estão no poder. “O que torna a política institucional um ambiente hostil à participação de novos atores”, destaca o pesquisador.
“As contradições da política institucional operam no nível da simultânea inclusão e exclusão: o sistema é formalmente aberto a todas as pessoas, porém opera para expulsar as maiorias marginalizadas e manter os privilégios de uma elite minoritária que, historicamente, monopoliza o poder”, afirma.
Contudo, esse sentimento de injustiça ou falta de representação, para o pesquisador, também fortalece os grupos que se utilizam dos coletivos como forma de condensar suas lutas. Para Costa, esta luta é organizada para diminuir o abismo que há entre governantes e governados, ao passo que representa os desafios sofridos pela grande maioria dos eleitores brasileiros.
Esse movimento se torna um mecanismo de resistência diante dos partidos políticos que, por meio do recrutamento, acabam deixando de fora grande parte das potenciais candidaturas coletivas e, consequentemente, diminuem as chances de inserirem novos corpos nas instituições de poder.
Analisando os efeitos psicossociais da luta, o autor argumenta que as candidaturas coletivas podem trazer um impacto psicológico positivo, tanto para quem participa dessas iniciativas, quanto para quem apoia as agendas coletivas.
Isso não significa que não existam desafios e processos de adoecimento no percurso. Porém, o caminho da luta funciona para os atores sociais como um processo de aprendizado. Recorrendo à poesia do poeta periférico Sérgio Vaz, o autor conclui que, diferentemente da briga, a luta carrega consigo um caráter permanente, enquanto a briga tem um momento para acabar. “A briga é pessoal, a luta é coletiva”, define Costa.
Para o autor, é na vida cotidiana que as pessoas ouvem, constantemente, que precisam “ir à luta”, serem batalhadoras. De modo subjetivo, esses ideais trabalham para construir a identidade e a noção de pertencimento das pessoas sobre a razão de lutarem por algo.
“E se lutam, é porque carregam consigo a força motriz para viver. Daí a importância da ampliação das lutas interseccionais – feministas, antirracistas, ecológicas e anticapitalistas – para o bem da democracia e do bem-viver coletivo; como forma de prática social resistente às forças institucionais normativas”, diz.
Obrigação legislativa
O pesquisador alerta que, mesmo com a presença de cotas para mulheres e negros, os partidos passaram a buscar ativamente essas pessoas apenas para cumprir uma obrigação legislativa. Somente em 2022. foi aprovada uma medida no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que alterou a reserva de vagas das candidaturas para, de fato, chegar a uma ocupação feminina em nível legislativo.
A presença das candidaturas coletivas, então, demonstra um antagonismo presente na atual crise da democracia brasileira: a inserção de novos corpos e os limites impostos pela legislação eleitoral. Sobretudo porque essas candidaturas estão protegidas somente por acordos extraoficiais, sem qualquer regulamentação legal definida para serem instituídas. Além disso, os conflitos existentes internamente também podem acabar desestruturando esse tipo de fazer político.
Em um levantamento estatístico das candidaturas coletivas que emergiram no País desde 2016, utilizando uma apuração das redes sociais de internet entre 2019 e 2022 dos perfis dessas candidaturas, Costa chegou a uma compreensão desses novos fenômenos na dinâmica eleitoral do País.
“Tem ocorrido uma reconfiguração da dinâmica das lutas sociais e o País se encontra imerso em uma crise democrática complexa que, simultaneamente, ataca questões sub-representadas e privilegia os interesses da extrema direita, grupo que vem ascendendo rapidamente aos espaços de poder”, afirma.
Nas últimas eleições, nas esferas estaduais e municipais, foi possível perceber a união em partes da sociedade civil com as propostas expostas pelas candidaturas coletivas. Ele exemplifica isso com a chegada das candidaturas “Juntas”, em Pernambuco, e a “Mandata Ativista”, em São Paulo, em 2018, nas Assembleias Legislativas estaduais. Nas eleições de 2020, o modelo se proliferou pelo País.
Essas primeiras candidaturas coletivas revelam as dificuldades de mulheres, negros, indígenas e da comunidade LGBTQIA+ em furar essa bolha institucional. Hoje, 15% das mulheres compõem o Congresso Nacional. Já nas candidaturas coletivas, segundo dados coletados pelo pesquisador, 74% são mulheres.
Nos primeiros moldes dessa reforma política tradicional, há uma horizontalidade no poder, definida por coparlamentares que compartilham suas agendas políticas e lutas, que refletem os anseios da sociedade civil em renovar a política.
Segundo o pesquisador, também é preciso olhar para novos rearranjos de luta que podem emergir. Como, por exemplo, os riscos que as candidaturas coletivas podem ter com a chegada de grupos mais conservadores, que poderão tentar expandir os seus oligopólios de poder de forma concentrada, aproveitando-se do formato inovador. “Embora isso já ocorra de forma individual e até estratégica, como no caso das bancadas parlamentares”, lembra o pesquisador.
Diferentemente dos mandatos coletivos, essas bancadas funcionam como uma aliança entre parlamentares em torno de pautas comuns. É o caso da bancada ruralista, como lembra o pesquisador, que privilegia os interesses do agronegócio, por exemplo.
No caso dos movimentos de direita, também é possível uma apropriação do modelo de candidaturas coletivas, como, por exemplo, duas candidaturas coletivas conservadoras que concorreram nas eleições de 2022: As Estelas e o Coletivo PMBM.
Em Dia com o Direito #16: Mandato coletivo aumenta representatividade da população na vida social e política
Conflitos internos
A manutenção interna de uma candidatura coletiva costuma ser muito difícil, de acordo com o pesquisador. Quanto mais gente, possivelmente maior o conflito de vozes. Por isso, os grupos tentam desenvolver o diálogo e estabelecer novas formas de consolidar as suas lutas, recorrendo a estratégias como a sociocracia ou o estabelecimento de estatutos e regimentos internos.
Costa também pontua que a concentração de um grupo de ativistas ocupando uma única cadeira demonstra as fragilidades do sistema representativo. Para a Justiça Eleitoral, até o momento, apenas a pessoa representante do grupo eleito, que formalizou a candidatura, será reconhecida como a titular do mandato e, portanto, a responsável legal. Todos os demais acordos são informais.
O pesquisador ressalta que “a política é o espaço por excelência do conflito, do dissenso, do debate. Então é natural que esses grupos tenham divergências. Dificilmente um coletivo não vai ter divergência interna e atuar de forma homogênea. talvez isso aconteça se ele for controlado por algum partido”, acredita.
Procurando compreender o que leva as pessoas a se engajarem numa luta, os riscos e o que há de eficácia nesse tipo de movimento político, Costa analisou conflitos que permearam a décima candidatura coletiva mais votada para o cargo de deputado estadual nas eleições de 2018 em São Paulo, a Mandata Ativista.
Das ruas às redes
A pesquisa concluiu que as motivações sociais de luta não acontecem por acaso. A eficácia da sedimentação desses coletivos não depende apenas da vontade dos atores sociais envolvidos, mas de certas condições que favoreçam a reprodução dessas novas formas de luta enquanto prática social democrática, reconhecida tanto pelos partidos políticos quanto pelo eleitorado.
Costa pontua a atuação das redes sociais de internet como elemento fundamental para a ascensão de mandatos coletivos, que encontram barreiras também no financiamento de suas campanhas por meio do fundo eleitoral destinado aos partidos pelo TSE.
Por não conseguirem espaço nem arcar com os altos custos da apresentação de suas propostas em poucos segundos no horário eleitoral da TV aberta, muitos coletivos migram suas atuações de luta para as ruas e para as redes sociais de internet. Ali, conseguem aproximar suas agendas políticas nos espaços públicos e nos espaços virtuais. O processo ocorre por meio de compartilhamento de suas propostas de forma direcionada aos nichos de apoiadores.
Como foi o caso da Mandata Ativista, que juntava nove codeputadas ativistas de diferentes partidos, eleitas coletivamente para ocupar um único gabinete de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. O cargo está em exercício desde março de 2019. O grupo se apresentou por meio das redes sociais como um movimento independente e pluripartidário dedicado a eleger ativistas em São Paulo e apoiar a construção de seus mandatos.
Em 2022, embora tenham sido 215 candidaturas coletivas disputadas, sendo cinco candidaturas inéditas ao Senado, apenas duas foram eleitas ao cargo de deputado estadual. Isso registrou um aumento de 117% comparado aos anos somados de 2016 e 2018, segundo o TSE.
Já para os mandatos coletivos que foram iniciados em 2023, apenas em São Paulo conseguiram ser eleitas as candidaturas que pretendem remodelar o fazer político tradicional, ambas em continuidade de experiências anteriores: a Bancada Feminista (Psol), representada por Paula Nunes, e Mônica Seixas sendo a porta-voz do Movimento Pretas por SP (Psol).
O pleito de 2022 foi o primeiro após a resolução do TSE de permitir que grupos ou coletivos sejam mencionados em nome na urna, diferentemente das outras eleições quando apenas um porta-voz era mencionado.
eleição e mandatos legislativos só vão refrescar no dia que for voto distrital, o mais é somente as tais das narrrativas infindas