Lei geral do licenciamento ambiental: avanço normativo ou risco à sustentabilidade?

Itabira e a mineração: licença ambiental para a Vale minerar em Itabira está vencida desde 2016

Foto: Carlos Cruz

Por Denes Martins da Costa Lott*

A recente aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei nº 2.159/2021, que institui a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (LGLA), representa um marco na tentativa histórica de sistematização do licenciamento ambiental no Brasil.

O texto, originado do PL nº 3.729/2004, de autoria do então deputado Luciano Zica (PT/SP), passou por duas décadas de debates, apensamentos, substitutivos e reconfigurações, refletindo os sucessivos interesses majoritários nas diversas legislaturas.

O momento atual impõe um olhar crítico e comprometido: é possível desburocratizar o licenciamento ambiental sem abrir mão da proteção constitucional ao meio ambiente?

Como advogado especializado em Direito Ambiental e Minerário, com experiência acadêmica e institucional, afirmo que o licenciamento ambiental é o principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente para conciliar desenvolvimento com proteção ecológica.

O que está em jogo não é apenas um rito procedimental, mas a própria salvaguarda da qualidade de vida das presentes e futuras gerações, bem como a integridade dos ecossistemas nacionais.

Atualmente, o licenciamento ambiental no Brasil é regulado principalmente pela Resolução Conama nº 237/1997, que define as modalidades e o rito do processo. São três categorias clássicas de licença:

  • Licença Prévia (LP): aprova a viabilidade ambiental do projeto, exigindo estudos como EIA/RIMA;
  • Licença de Instalação (LI): autoriza o início da implantação do empreendimento;
  • Licença de Operação (LO): permite o início da atividade após verificação do cumprimento das condicionantes anteriores.

Essas licenças são emitidas por órgãos federais (Ibama), estaduais (como Feam em MG) ou municipais, conforme a competência definida pela Resolução Conama nº 237 e pela Lei Complementar nº 140/2011.

Minas Gerais adotou, com base na DN Copam nº 217/2017, modalidades mais diversas e adaptadas à realidade do Estado:

  • Licenciamento Ambiental Simplificado (LAS): para atividades de baixo impacto, com variantes por cadastro, relatório simplificado (RAS) ou relatório único (RAU);
  • Licenciamento Ambiental Concomitante (LAC): autoriza simultaneamente LP, LI e LO;
  • Licenciamento Ambiental Corretivo : para regularização de empreendimentos já implantados;
  • Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC-MG): baseado na autodeclaração do empreendedor, com aplicação restrita.

O estado de Minas também instituiu um sistema de tipificação que combina porte e potencial poluidor, gerando uma classe de licenciamento (de 1 a 6) que determina o rito e a modalidade aplicável.

Entendo e defendo que a desburocratização é desejável e necessária. Contudo, deve ser acompanhada de:

  • Fortalecimento institucional dos órgãos ambientais;
  • Critérios técnicos claros e auditáveis para autodeclarações;
  • Participação efetiva da sociedade;
  • Rigor técnico proporcional ao risco da atividade.

A pluralização das modalidades é juridicamente válida e pode, sim, aumentar a eficiência da administração ambiental. A lei deve servir ao princípio do desenvolvimento sustentável, integrando eficiência econômica, justiça social e segurança ecológica. O licenciamento não pode ser mera formalidade, ritual vazio ou chancelamento, mas um processo vivo de responsabilidade intergeracional.

Apesar de seu papel estruturante, o sistema atual no Brasil enfrenta graves problemas:

  • Múltiplos procedimentos paralelos e sobrepostos;
  • Prazos excessivamente longos e indefinidos;
  • Interferência política em decisões técnicas;
  • Baixa capacitação técnica em muitos órgãos ambientais;
  • Judicialização excessiva por falta de segurança jurídica.

Panorama proposto no PL 2.159/2021: novas categorias de licenciamento

 A proposta de uma Lei Geral tem por objetivo justamente enfrentar essas disfunções, padronizando critérios e possibilitando procedimentos proporcionais ao risco ambiental envolvido.

Observemos uma linha do tempo legislativa, da proposta original ao texto atual:

  • 2004: Apresentado o PL 3.729/2004 por Luciano Zica (PT/SP), com a finalidade de estabelecer normas gerais sobre licenciamento ambiental.
  • 2004–2021: Diversos substitutivos, discussões técnicas e políticas moldaram o texto original. Avanços e retrocessos marcaram o processo, sempre com forte influência de setores econômicos e ambientais.
  • 2021: Aprovado na Câmara e encaminhado ao Senado como PL 2.159/2021.
  • 2025: Após tramitação no Senado, o projeto é aprovado com novas emendas – entre elas a polêmica Licença Ambiental Especial (LAE), proposta por Davi Alcolumbre – e retorna à Câmara para nova apreciação.

O texto do PL 2.159/2021 detalha cinco modalidades distintas de licenciamento ambiental. Essa classificação busca adaptar os procedimentos à natureza, risco e complexidade de cada empreendimento, inovando no plano normativo brasileiro:

  • Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC)

Procedimento autodeclaratório para atividades de baixo impacto.

Inovadora em termos de agilidade e simplificação, mas vulnerável a fraudes e omissões.

Exige regulamentação técnica rigorosa para evitar banalização.

  • Licença Ambiental Simplificada (LAS)

Para empreendimentos de impacto ambiental moderado.

Processo célere, com análise técnica única e menor burocracia.

Inovação moderada, com risco de enfraquecimento da participação social.

  • Licença Ambiental Concomitante (LACo)

Unifica Licença Prévia e de Instalação.

Aplicável a projetos com estudos ambientais suficientes para avaliação conjunta.

Agiliza o processo, mas pode suprimir debates sobre alternativas locacionais.

  • Licença Ambiental Trifásica (LP, LI, LO)

Modelo clássico, ainda exigido para empreendimentos de significativo impacto.

Preserva ritos de consulta pública, pareceres técnicos e medidas mitigadoras.

Essa modalidade representa o núcleo de proteção do sistema nacional de licenciamento.

  • Licença Ambiental Especial (LAE)

Criada por emenda no Senado, com caráter excepcional.

Aplica-se a projetos estratégicos definidos politicamente.

Inconstitucionalidade provável por ofensa à obrigatoriedade de estudo de impacto e participação social.

Flexibilizações no licenciamento ambiental: caminho para a eficiência ou risco de fragilização?

Além das modalidades formais de licenciamento, o Projeto de Lei nº 2.159/2021 inova ao prever a possibilidade de dispensa de licenciamento ambiental para determinadas atividades ou empreendimentos de baixo impacto, a critério do órgão ambiental competente.

Essa previsão, se por um lado busca otimizar a gestão administrativa, por outro, suscita sérias preocupações quanto ao controle ambiental efetivo.

Entre os exemplos mencionados na proposta, destacam-se: a abertura e manutenção de estradas vicinais; a instalação de infraestrutura básica como poços artesianos e linhas de distribuição de energia de pequeno porte; atividades agrossilvipastoris em propriedades familiares; e, em certos casos, a intervenção em trechos de vegetação nativa secundária da Mata Atlântica com menos de 20 anos.

Essas possibilidades são condicionadas à ausência de sobreposição com áreas legalmente protegidas e devem seguir critérios técnicos estabelecidos pelos órgãos ambientais locais. No entanto, a falta de padronização nacional e a margem interpretativa ampla podem transformar a exceção em regra, resultando na invisibilidade de impactos cumulativos e dificultando a responsabilização por danos.

Como advogado ambientalista, entendo que dispensas pontuais podem ser úteis para evitar o engessamento da máquina pública. Contudo, devem ser acompanhadas de critérios objetivos, vedação de uso em áreas sensíveis, e obrigatoriedade de registro e monitoramento. Do contrário, corre-se o risco de transformar o licenciamento ambiental em um sistema reativo, onde a degradação é constatada apenas após sua ocorrência.

Embora a proposta original do PL nº 2.159/2021 previsse expressamente a criação da Licença Ambiental Única (LAU), tal modalidade não foi mantida na versão final aprovada pelo Senado Federal. A LAU pretendia consolidar, em um único ato administrativo, as etapas de Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO), aplicando-se a empreendimentos de menor impacto ambiental, com análise técnica simplificada.

No entanto, essa unificação plena foi substituída por uma abordagem mais cautelosa: a chamada Licença Ambiental Concomitante (LACo). A LACo, tal como aprovada, permite apenas a fusão das fases de LP e LI, mantendo a LO como etapa posterior e autônoma. Dessa forma, pode-se afirmar que a LAU foi funcionalmente diluída na estrutura da LACo – o que representa uma solução intermediária entre a simplificação procedimental e a preservação dos controles técnicos mínimos.

A ausência da LAU como categoria formal reflete a tentativa de evitar um esvaziamento excessivo das etapas tradicionais, sem deixar de atender à demanda por maior eficiência administrativa.

Em síntese, o texto aprovado no Senado introduziu mudanças relevantes, incluindo:

Criação da Licença Ambiental Especial (LAE): um novo tipo de licença com rito simplificado, aplicável a projetos considerados prioritários pelo governo.

Limitação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC): restrita a empreendimentos de pequeno ou médio porte e baixo ou médio potencial poluidor, excluindo casos que envolvam desmatamento de vegetação nativa.

Renovação automática de licenças: permitida apenas para atividades de baixo ou médio impacto, desde que cumpridas as condicionantes da licença anterior e sem alterações significativas no empreendimento.

Alterações na participação de órgãos ambientais: restrição da atuação de entidades como a Funai e o ICMBio apenas a terras indígenas homologadas e unidades de conservação federais, respectivamente.

Dispensa de licenciamento para certas atividades como obras de manutenção em rodovias já pavimentadas e atividades agropecuárias tradicionais de pequeno porte.

Essas mudanças visam simplificar e uniformizar o processo de licenciamento ambiental no país, mas têm gerado debates sobre possíveis impactos na proteção ambiental e na segurança jurídica

A polarização político-ideológica e o debate ambiental

A discussão sobre o licenciamento ambiental no Congresso Nacional não é isolada. Ela expressa, é causa e sintoma da crescente polarização político-ideológica global.

De um lado, há a retórica do “desenvolvimento a qualquer custo”, muitas vezes associada a pautas liberalizantes e de curto prazo. De outro, setores ambientalistas resistem a qualquer tentativa de flexibilização como retrocesso absoluto. No meio desse espectro, surgem tentativas de mediação técnica e constitucional.

A discussão sobre o licenciamento ambiental vai além da eficiência administrativa ou da busca por segurança jurídica. Ela reflete diferentes visões de desenvolvimento e de relação com o meio ambiente.

O verdadeiro desafio é construir normas que sejam tecnicamente sólidas, juridicamente seguras e socialmente legítimas, sem que se tornem reféns de disputas ideológicas.

Neste aspecto, afigura-se no debate o confronto das visões preservacionista, conservacionista e desenvolvimentista. Cada grupo tem visões específicas:

  • Preservacionistas: veem a LGLA como retrocesso. Defendem barreiras normativas rigorosas à ocupação e exploração ambiental. Têm voz forte no Ministério do Meio Ambiente, Ministério Público e ONGs.
  • Conservacionistas: admitem modernizações procedimentais, mas exigem a preservação dos pilares técnicos e jurídicos do licenciamento: EIA/RIMA, consulta pública, condicionantes, e fiscalização.
  • Desenvolvimentistas: priorizam a fluidez institucional para permitir maior velocidade na implementação de projetos econômicos. Alegam que o Brasil perde investimentos por morosidade e insegurança jurídica.
Celeridade e controle

Na minha visão e pela minha vivência, é possível uma LGLA tecnicamente sólida e politicamente viável, desde que a lei preserve o equilíbrio entre celeridade e controle. A estruturação das categorias de licenciamento é, por si, um avanço.

No entanto, mecanismos como a Licença Ambiental Especial (LAE) comprometem esse equilíbrio ao submeter critérios técnicos a decisões políticas arbitrárias.

A Lei Geral do Licenciamento Ambiental pode representar um verdadeiro avanço civilizatório, desde que seja compreendida não apenas como instrumento de ordenamento racional do território, mas sobretudo como uma garantia de proteção efetiva ao meio ambiente.

Sua finalidade deve ir além da organização administrativa: deve assegurar que qualquer uso do solo ou dos recursos naturais respeite os limites ecológicos e os direitos das futuras gerações.

Não pode ser convertida em escudo para interesses setoriais, mas em alicerce de uma política ambiental transparente, técnica e comprometida com a sustentabilidade

A desburocratização é um objetivo legítimo. Mas, como nos ensina a experiência internacional, ela deve estar a serviço da efetividade ambiental e não da sua erosão. O licenciamento deve ser diligente, responsivo e transparente.

Como advogado ambientalista, reconheço que, uma vez convertido em lei, o Projeto de Lei nº 2.159/2021 poderá representar um avanço importante na modernização do licenciamento ambiental no Brasil. O texto tem o potencial de resolver gargalos históricos, como a morosidade procedimental, a insegurança jurídica e a sobreposição de competências administrativas.

No entanto, não há dúvida de que diversos de seus dispositivos – especialmente aqueles que tratam de dispensas, autodeclarações e restrições à atuação de órgãos colegiados –  suscitarão legítimos questionamentos por parte dos movimentos sociais, comunidades afetadas e entidades de defesa do meio ambiente.

Assim, é previsível que o Supremo Tribunal Federal seja chamado a exercer seu papel de guardião da Constituição, dando a palavra final sobre a validade e os limites da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental à luz dos princípios da precaução, da vedação ao retrocesso e do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

*Denes Martins da Costa Lott – Advogado ambientalista e minerário, ex secretário de Meio Ambiente de Itabira

Referências:  

  1. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm. Acesso em: mai. 2025.
  1. CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE – CONAMA. Resolução nº 237, de 19 de dezembro de 1997. Dispõe sobre o licenciamento ambiental. Disponível em: https://www.in.gov.br. Acesso em: mai. 2025.
  2. BRASIL. Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. Define as competências administrativas em matéria ambiental. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp140.htm. Acesso em: mai. 2025.
  3. MINAS GERAIS. Deliberação Normativa COPAM nº 217, de 6 de dezembro de 2017. Estabelece critérios para o licenciamento ambiental no Estado de Minas Gerais. Disponível em: https://www.meioambiente.mg.gov.br. Acesso em: mai. 2025.
  4. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 2.159/2021. Institui a Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/147052. Acesso em: mai. 2025.
  5. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 3.729/2004, de autoria de Luciano Zica (PT/SP). Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/257161. Acesso em: mai. 2025.
  6. AGÊNCIA SENADO. “Comissões do Senado aprovam flexibilização do licenciamento ambiental”. Publicado em 20 de maio de 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias. Acesso em: mai. 2025.
  1. FOLHA DE S.PAULO. “Alcolumbre quer novo tipo de licença com menor controle para projetos como o da Foz do Amazonas”. Publicado em 17 de maio de 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambie

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