Itabira vive o crepúsculo da mineração enquanto assiste passivamente às suas montanhas serem pulverizadas

Fotos: Eduardo Cruz/
O Cometa Itabirano

Berço da Vale, que se tornaria uma das maiores mineradoras do mundo, a cidade enfrenta o colapso de sua atividade econômica e a urgência de uma reparação histórica: Drummond denuncia, Wisnik interpreta, enquanto os itabiranos cruzam os braços e deixam a vida passar devagar

Carlos Cruz

Itabira, terra natal de Carlos Drummond de Andrade, enfrenta hoje o esgotamento de um modelo econômico baseado, desde 1942, no monoextravismo exportador de minério de ferro, sem valor agregado, apenas uma commodity que já salvou o mundo do nazifascismo, impulsionou a industrialização japonesa e continua sendo consumida vorazmente pela China, cuja ascensão inquieta os Estados Unidos.

Com a previsão de exaustão das minas de ferro até 2041, um horizonte volátil nos anúncios da própria empresa, que mantém a cidade em um eterno compasso de espera, com fuga de capitais que poderiam ser investidos localmente, o município minerado à exaustão encara o risco de se tornar uma cidade esvaziada, quase fantasma, marcada por crateras, poeira e promessas não cumpridas.

O antigo alerta de que “minério não dá duas safras” já não basta. Impõe-se, agora, a urgência de uma reparação histórica. A montanha pulverizada: Cauê exauriu-se em 2003, tornando-se um depósito de estéril e rejeito — e como dói. E também de uma reflexão que conduza à ação objetiva, na tentativa de evitar o que pode se tornar a grande “derrota incomparável”, vaticinada por Tutu Caramujo e registrada por Drummond, por meio de uma reflexão profunda sobre o que foi feito, o que deixou de ser realizado, o que ainda se omite e o que precisa ser transformado em Itabira.

O projeto Itabira Sustentável precisa urgentemente sair do papel. Não basta investir na faculdade de medicina do UNIFuncesi, instituição privada e de curso elitista. Isso, definitivamente, não é suficiente. É preciso muito mais, e o tempo urge. O amanhã não tarda: é passado que se perde com o bonde da história.

Há 83 anos a Vale extrai minério de Itabira. Até 1969, não pagava impostos, e os royalties só vieram após 1989, com a nova Constituição. Se de tudo fica um pouco, para Itabira sobrou muito pouco – uma cidade que vê esvair-se sua riqueza mineral, sem potência sequer para cobrar a dívida histórica que será acentuada com o fim inexorável
Economia diversificada, uma necessidade sempre adiada

É preciso ir muito além, inclusive cobrando da Unifei maior comprometimento com projetos de inovação tecnológica, prometidos desde o início e que até hoje não saíram do papel, permanecendo apenas como cartas de boas intenções, com o propósito de atrair indústrias de novas gerações, não poluentes.

Desde o fracassado projeto Itabira 2025, lançado na década de 1980 pela Associação Comercial e Industrial de Itabira (Acita), acumulam-se promessas não cumpridas. Trata-se de um cenário recorrente em uma cidade que já teve uma economia tão diversificada a ponto de ser comparada, nas décadas de 1930 e 1940, a Juiz de Fora, então conhecida como a Manchester mineira.

A economia juiz-forana segue pujante, enquanto Itabira perdeu suas duas fábricas de tecidos, a fábrica de implementos agrícolas e até armas do Jirau e tantas outras pequenas forjas, que poderiam ter sido transformadas, com o advento da mineração em escala, em uma grande siderúrgica. O que, afinal, diga-se, teria sido um agravante para a qualidade de vida: a cidade teria ganhado mais uma fonte industrial de poluição do ar, somando-se ao que já ocorre há décadas com a mineração.

Um livro como ponto de partida para uma reflexão mais profunda
Capa do livro que diz muito sobre Itabira, Drummond e a Vale

O livro Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração, de José Miguel Wisnik, publicado pela Companhia das Letras, pode e deve ser o fio condutor dessa reflexão. A obra parte da constatação de que a mineração é uma “linha de força inescapável do lirismo drummondiano”.

Wisnik interpreta o poema A Máquina do Mundo como “pedra totalizante no meio do percurso criativo, o núcleo secreto dessa história, seu cerne simbólico”. A recusa do eu lírico à revelação total do mundo é, segundo o autor, uma recusa à lógica extrativista que transforma tudo, natureza, história, afetos, em estoque.

A visita de Wisnik a Itabira, em 2014, foi decisiva para ele escrever essa importante obra, primordial para entender o que se passa na cidade carcomida pela mineração.

Ao ver a eliminação do Pico do Cauê e a transformação da Fazenda do Pontal em barragem de rejeitos, o autor percebeu que havia ali uma “cena do crime” que a poesia de Drummond já denunciava há décadas.

O impacto dessa visita levou à releitura da obra de Drummond sob o prisma da mineração. E assim surgiu a elaboração de um dos ensaios mais contundentes da crítica literária brasileira contemporânea à mineração predatória, sem compromisso com a tal sustentabilidade ESG, tão propagada, mas jamais efetivada.

A montanha pulverizada: Cauê exauriu em 2003, tornando-se um depósito de estéril e rejeito — e como dói

Repercussões na imprensa

A urgência da reflexão proposta por Wisnik encontrou eco em diversos veículos da imprensa nacional, mas muito pouco, quase nada, na imprensa itabirana.

A Folha de S.Paulo, por exemplo, já considerou A Máquina do Mundo o maior ensaio brasileiro sobre a mineração, destacando sua complexidade e sua capacidade de dialogar com os dilemas modernos.

No passado, o Correio da Manhã, onde Drummond publicou dezenas de crônicas entre as décadas de 1940 e 1960, foi palco de denúncias incisivas contra a Vale. O poeta cobrava a instalação do escritório-sede da estatal em Itabira, participação da cidade e dos empregados nos ganhos da empresa, “com critérios mais justos de participação municipal no preço do ferro e reversão do excedente em benefício da região”.

No Jornal do Brasil, Drummond publicou a crônica Só isso?, criticando o baixo retorno do Imposto Único sobre Minerais (IUM) para Itabira. E foi nesse mesmo jornal que o poema A Máquina do Mundo teve sua primeira vida pública, em 1949, antes de ser incluído em Claro Enigma (1951).

“O maior trem do mundo Leva minha terra Para a Alemanha/  Leva minha terra Para o Canadá/  Leva minha terra para o Japão/  O maior trem do mundo/ Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel/  Engatadas geminadas desembestadas/  Leva meu tempo, minha infância, minha vida/  Triturada em 163 vagões de minério e destruição/  O maior trem do mundo/ Transporta a coisa mínima do mundo/  Meu coração itabirano/ Lá vai o trem maior do mundo/  Vai serpenteando, vai sumindo/  E um dia, eu sei não voltará/  Pois nem terra nem coração existem mais.” (Carlos Drummond de Andrade, O Cometa Itabirano, agosto de 1984)

Na crônica, Drummond fala do projeto de criação do Imposto Único sobre os Minerais (IUM), mas que se apresenta com uma distribuição extremamente injusta para os municípios mineradores. “O produto da arrecadação desse imposto será distribuído entre a União, os Estados e os Municípios, e é claro que não pode ir para Sancho, Martinho e esse vosso criado. Mas a União terá 10%, o Estado 70% e o Município apenas 20%, o que me parece terrivelmente injusto.”

O poeta lembra que para o município, minério “é riqueza que não se recompõe, e com a exploração intensiva se esgota para sempre”.

A publicação do poema em meio ao noticiário cotidiano reforça a ideia de que a poesia drummondiana não se isolava da realidade, mas a enfrentava de forma crítica e sofisticada.

Esse engajamento drummondiano teve continuidade também no jornal O Cometa Itabirano, onde o poeta, além de crônicas, publicou os inéditos poemas O Maior Trem do Mundo e Lira Itabirana (“O rio é doce, a Vale, amarga. Aí, antes fosse mais leve a carga”).

A crítica como instrumento de transformação
Segundo projeções atuais, a mineração realizada pela Vale em Itabira deve ser encerrada até 2041

Wisnik defende que a poesia é “instrumento de percepção alargada e de criação de mundos”. Em tempos de obscurantismo, ela nos convida “a aderir ao espanto da enormidade da vida e da morte, a vibrar o destino da coletividade, a encarar os múltiplos vieses dos desejos”.

Essa potência discursiva é o que torna Maquinação do Mundo um livro urgente, não apenas para leitores de poesia, mas para gestores públicos, ambientalistas, educadores e cidadãos que desejam compreender o Brasil.

A crítica literária, nesse caso, não se limita à análise estética. Ela se torna ferramenta de denúncia, de memória e de mobilização.

Como aponta a Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, o ensaio de Wisnik “institui consistentes diálogos com a história econômica, a geografia, a antropologia, as artes visuais e outras áreas do conhecimento”.

É assim que a máquina do mundo se entreabre novamente, não como revelação metafísica, mas como convite à ação, antes que venha a derrota incomparável definitiva e irreversível.

A leitura de Maquinação do Mundo é indispensável para quem deseja compreender o passado de Itabira, enfrentar o presente e construir um futuro que não seja apenas pó.

Wisnik deu o alerta. A poesia de Drummond já fez a denúncia. Cabe agora à sociedade, e aos políticos, cobrarem a reparação histórica da Vale com Itabira, e assim impedir que a cidade se transforme em um permanente e triste retrato na parede, um case de insucesso de uma mineração que se diz sustentável, mas que não é.

Serviço

Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração, Companhia das Letras (304 páginas, 2018)

Autor: José Miguel Wisnik

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