Itabira, tesouro fechado de homens e mulheres

Cornélio Penna*

O caminho balançava, lentamente, e o nome de Itabira do Matto Dentro, que me esperava lá no fim, percorria a minha cabeça em longo meandro, serpenteando entre reflexões que se confundiam com as montanhas e os vales lá fora, em uma paisagem de convenção e do já dito das lembranças detestáveis da minha infância…

Reagindo, quis povoar aquele vazio enorme, que se fazia cada vez maior, para lá e para cá, dentro e em torno de mim, e só consegui inventar pensamentos ambiciosos.

Retrato de Cornélio Penna. No destaque, rua Tiradentes, em Itabira (Fotos Miguel Bréscia e acervo Cristina Silveira)

Senti estremecer debaixo da terra a sua riqueza adormecida, e despertaram em meu espírito os faiscadores, os bandeirantes, os pioneiros das minas, que corriam ao encontro das jazidas de gemas e dos depósitos auríferos, logo substituídos pelo ingleses e pelos americanos, e me espantei, como eles, com a riqueza sem fim do ferro e das pedras úteis.

Construí guindastes, turbinas murmurantes, polias vertiginosas, e o meu sonho espesso se transformou em rápido pesadelo, naquela tarde de modorra e de preguiçosa viagem.

Ouvi, de repente, um grito estridulo e prolongado, composto de notas desencontradas, que me pareceu uma exclamação de surpresa e angústia nervosa.

Caíram, em segundos, todos os véus que eu mesmo correra diante de mim; era, entretanto, o simples riso de uma menina de cabelos nos olhos e áspera expressão nos lábios, agora sérios como por feitiçaria, e que me fitava através das folhas da moita, atrás da qual se escondera para me espiar sem ser vista.

A cidade fantasma surgiu subitamente, como chamada por aquele riso, restituída ao seu verdadeiro sentido, e veio ao meu encontro, reconhecendo-me, na paisagem que se tornara também diferente, em absoluto, da outra que me fizera sofrer o caminho, desde Santa Bárbara, como um remorso e uma expiação…

— Ela é uma “inocente” — explicou o meu camarada, julgando que me ofendera o riso da cidade ou da menina, já não sabia bem. E, se eu lhe explicasse, por minha vez, como me era grata aquela revelação repentina do mistério de Itabira e das outras cidades que me obsedam, talvez também se risse, com a mesma dolorosa gargalhada.

Desenho de Cornélio Penna, antiga Câmara Municipal, hoje Museu de Itabira

As montanhas de ouro, ferro, diamantes, predarias de toda sorte desmoronaram sem ruído, ocultando-se sob as ruas que se aproximavam, com suas casas teimosas e alucinadas; umas que se ergueram em um dia, mas esqueceram-se de cair, e outras de muralhas capazes de resistir aos séculos, construídas para pouso e abrigo provisórios.

Compreendi então a sua vida monstruosa de tristeza e escrúpulos contraditórios, fora da realidade do mundo, num paroxismo irremediável de inteligência e de hesitação, sempre em luta mortal e inútil consigo mesma. Senti imediatamente que penetrava bem fundo naquele ambiente de sugestão imperiosa, e que já estava muito longe, muito dentro de sua loucura concentrada e mansa.

E vi Itabira do Matto Dentro com suas irmãs chegarem de longes terras, onde a vida existe, trazidas no dorso das tropas e das bandeiras, lançadas como garras sobre as encostas das serras, ao longo das estradas, em uma festa de gritos e saúde.

Vi também os homens se lançarem, furiosos, à cata do ouro e do diamante, mergulhando terra a dentro, nas minas que se abriam como chagas. Mas, devorados por elas, ficaram seus filhos, que se esqueceram da ambição paterna, e as galerias estouraram, cheias d’água ou arrebentadas pelas raízes poderosas.

A cidade, que era subterrânea, veio para a flor do solo, e adquiriu uma vida mais forte ainda, no desejo desesperado de viver sem explicação e sem ganância, recalcada pela altura de sua inteligência abstrata.

Desenho de Cornélio Penna

A riqueza material ficou lá embaixo, e, cá em cima, Itabira do Matto Dentro é um maior tesouro guardado, um cofre de almas preciosíssimas, e assim as cidades históricas de Minas Gerais, que se fecharam, vigiadas pelo Destino, para viver pesadamente apenas a vida unida de seu filhos, marcados pelo selo da dor e do gênio incompleto.

Nenhuma delas se transformará, nenhuma poderá evoluir, fugindo à sua missão de guardadora de Homens e de Mulheres, que só nelas poderão ser verdadeiros.

Transplantados, eles despertam cheios de lento terror, na compreensão da realidade nova que aparece como um milagre absurdo aos seus olhos, e aqueles que os cercarem, nesse nascimento novo, rirão por sua vez, sem perceberem que se desenrola à sua vista todo um drama de transmigração dolorosa.

A sua descida ao mundo, a sua vinda entre os animais, é sempre uma cerimonia obscura, silenciosa, que passa despercebida e indiferente, mas que revela desconhecida beleza aos que conseguem suspeitá-la…

*Cornélio de Oliveira Penna (1896/1958), romancista, pintor, desenhista, ilustrador, jornalista, nasceu em Petrópolis (RJ). Mas embora tenha vivido a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, o autor sempre destacou, em entrevista e em sua obra literária, a sua passagem durante a infância em Itabira do Mato Dentro, terra de origem de sua família paterna.

[Lanterna Verde, Boletim da Sociedade Felippe D’Oliveira, RJ, n. 2, fevereiro de 1935. Hemeroteca da BN-RJ. Acervo: Cristina Silveira]

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