Itabira, a do poeta

(Texto publicado originalmente no Correio da Manhã, sábado, 28 de março de 1953, acervo Cristina Silveira)

Waltensir Dutra*

Uma cidade cheia de sugestões literárias – Cornélio Pena, menos popular de que Carlos Drummond – Didina Guerra, vizinha do poeta – Quando param os motores – O Itabirano

ITABIRA é uma cidade difícil. O contraste violento que o forasteiro desavisado encontra logo ao entrar na cidade, dificulta a aproximação. Pelas ruas estreitas e empoeiradas, são a impressão de que vão desabar, transitam, em média, duzentos e cinquenta caminhões no transporte de minério de ferro. O aspecto de decadência das ruas tortuosas não se harmonizam com o movimento dos veículos.

Correio da Manhã, sábado, 28 de março de 1953 (Fotos: Miguel Bréscia e acervo Cristina Silveira)

Depois, é a topografia que dificulta uma noção do conjunto. Itabira é, praticamente, uma rua comprida que dá volta ao morro. Daí as perspectivas que oferecem serem sempre incompletas, e só de avião é possível ter-se uma visão panorâmica da cidade. Já disseram que Itabira se oculta atrás dos morros…

A princípio, tudo é desconfortável, fechado, quase hostil. A agitação e a poeira dos caminhões, a dureza dos “pés de moleque” que calçam as ruas (70% de ferro…), o aspecto pardacento da cidade, criam no visitante uma quase sensação de mal-estar. Não obstante, sente-se que atrás de tudo aquilo há uma outra cidade, uma outra vida que a custo iremos descobrindo, uma fôrça e uma unidade que não sabemos bem qual seja.

Não é o movimento de minério, é quase alguma coisa que existe apesar dêsse movimento, um clima de antiguidade que resiste a todo o moderno, do bairro do Pará, à Vale do Rio Doce e até aquêle pretencioso edifício dos correios, moderno de mau gôsto esprimido entre sóbrios coloniais.

QUANDO PARAM OS MOTORES

MAS há um momento em que a cidade é tranquila e silenciosa, como deve ter sido antes da Vale do Rio Doce, antes que o minério tomasse as proporções atuais. É no domingo pela manhã, entre sete e nove horas, quando os caminhões estão nas oficinas, as escavadeiras dão um descanso ao Cauê, os funcionários da Companhia estão dormindo e os itabiranos estão na missa. Com o silêncio, a austeridade dos casarões coloniais enriquecem a calma das ruas, Itabira retorna a face antiga.

Ilustração e foto do Correio da Manhã, 28 de março de 1953

O próprio calçamento parece já não ser tão impraticável. O forasteiro abandona o “Hotel dos Viajantes” e vai andando devagar pelas ruas, que êle não consegue dissociar de alguns dos mais belos versos de nossa língua. Porque Itabira, o sabemos todos, é a terra de um poeta.

Um dos edifícios mais característicos é o do Hospital, que pelas suas proporções e pelo curioso da sua arquitetura colonial, atrai logo o olhar do visitante, Também o Itabira Hotel é um belo exemplo de edificação colonial, embora o precário estado de conservação da rua fechada.

Subimos uma ladeira e encontramos a Igreja de N. S. da Saúde. Apenas a fachada lembra remotamente o esplendor de outras igrejas mineiras – Itabira é uma cidade pobre: o interior das igrejas é sempre moderno e descaracterizado por sucessivas reformas. A única que tem algum valor artístico é a do Rosário, num canto tranquilo de Itabira, e que foi tombada pelo Serviço do Patrimônio, cremos que devido a uma solicitação do poeta.

Praça Municipal, hoje do Centenário

Junto da Igreja do Rosário está a casa de Didina Guerra, que os leitores de Cornélio Pena e dos “Contos de Aprendiz” conhecem bem. Da janela onde Didina passava as horas, descortinava-se uma paisagem realmente bela: ao fundo o Cauê, ao lado de uma estrada que sobe para o Pico, à direita um trecho da cidade. Dali ela apostrotava os passantes e recebia os xingamentos e as pedradas dos meninos.

Bem próximo à casa da personagem real, vamos encontrar a do poeta. Fica na rua principal, naquela rua que dá voltas, num dos poucos trechos em que é larga. Dá frente quase que para a mesma paisagem que se vê da janela de Didina Guerra. É um bonito sobrado, de cinco sacadas, de esquina, próximo à Matriz. Bem conservado, o casarão tem excelente aspecto. Situado em ponto não muito central, parece ter sido poupado pela poeira ferruginosa.

Deixamo-nos a contemplá-lo, pensando no dia em que, ao lado da porta, uma placa de bronze esclarecerá: “Aqui nasceu e, por algum tempo viveu, o poeta Carlos Drummond de Andrade”.

O ITABIRANO

Aspecto do bairro Pará, no paredão onde atualmente é a rua Ipoema e doutor José de Grisolia

MAS Itabira não é apenas casas, é antes de tudo um clima, e dele fazem parte os homens. O itabirano é reservado, mas tão logo percebe o amor que a sua cidade desperta no visitante, tão logo descobre o interêsse do forasteiro por aqueles velhos casarões, o seu desejo de andar pelas ruas íngremes, perde muito da sua desconfiança.

A hospitalidade é perfeita, mas só desaparece a reserva depois de ficar constatado que, ao contrário do que geralmente acontece, a cidade não nos parece detestável, mas atraente, curiosa, como se tivesse um mistério a ser desvendado. (No “Hotel dos Viajantes”, alguém disse, ao almôço: “Nunca vi cidade tão desgraçada de ruim”.)

Sòmente depois de ter vivido Itabira num domingo de manhã, depois de ter conhecido a falta de caráter do Pará, bairro de casas novas, depois de ter conversado com os itabiranos, é possível começar a compreender a cidade de Itabira, “noventa por centro de ferro nas calçadas e oitenta por cento de ferro nas almas”.

A CIDADE E O SEU POETA

Rua Guarda-Mór Custódio, antiga rua das Flôres, onde o poeta nasceu 

A RIGOR, não se pode dizer que o poeta seja popular na sua cidade. O cidadão sim, é conhecido e muito. Todos sabem da sua existência, sabem que é escritor, mas os que leram alguma coisa dêle não são muitos. Os mais velhos o aceitam ainda desconfiadamente, e é entre os de sua idade que êle vai encontrar mais compreensão. A nova geração, essa só o conhece de ouvido e de ver seu nome nos jornais.

Desconhece o poeta como desconhece a cidade – todos desejam abandoná-la, voltam-lhe um desprezo que nos parece melancólico; contemplando o Cauê semi-arrasado, compreendemos de onde chega aos jovens a inquietação, do desejo de partir. E nos perguntamos se o poeta terá sofrido o mesmo, se algum dia a sua cidade terá sido para ele a prisão que é para os moços de hoje.

Cornélio Pena, o romancista de tantas cenas itabiranas, é bem menos conhecido. Sòmente as gerações mais velhas leram algum livro seu, os novos placidamente o ignoram.

A OUTRA CIDADE

JÁ agora a impressão de hostilidade desapareceu completamente. Descobertos os pontos de contacto com a cidade, o resto se revelando como que por acréscimo. As ruas intermináveis, pelas quais os personagens de Cornélio andam longas introspecções, são realmente maravilhosos na sua humildade, no seu jeito ressentido de cidade ofendida. Se estiverem sem pretensão e sem plano, gratuitos, cheios de sugestões a de veres. E

O pico do Cauê visto da praça municipal, atual praça do Centenário

Esta casa que antes não notáramos, como nos parece agora plena de sugestões, como as silenciosamente nos contasse uma história! E à noite, os postes muito compridos colocam ilhas de claridade numa cidade que tem um aspecto estranhamente irreal, como se pertencesse apenas ao mundo da ficção e da poesia.

DADOS ESTATÍSTICOS

ITABIRA tem dois hotíes, um cinema bom, dois hospitais (um da Vale do Rio Doce S.A), e segundo os dados do I.B.G.E, sua população urbana é de 7.602 habitantes, estando colocada em 307º lugar entre as cidades mais populosas do país.

*Publicado originalmente no Correio da Manhã, sábado, 28 de março de 1953. Acervo: Cristina Silveira

 

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