Hoje é aniversário de morte de Cornélio Penna, o escritor que fez de Itabira a sua melhor amiga: 12 de fevereiro de 1958
O escritor Cornélio Penna vai ser enfim homenageado em Itabira com um bonito busto e jardim
Foto: Reprodução/ Letra in.verso e re.verso
No bairro das Laranjeiras, Rio, aos 62 anos morre o desenhista, pintor e romancista Cornélio Penna. O corpo velado na Capela da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória – criada por decreto imperial em 1842 e inaugurada em 1872 –, no Largo do Machado. O corpo foi sepultado no Cemitério de São João Batista (1852), ao meio-dia ensolarado de 13 de fevereiro. A alma voou aos céus. Descansa em paz.
2023, ano de guerra na Europa, guerra que o Ocidente Coletivo teima chamar de Guerra Mundial…
2023, em Itabira, dia e noite à dentro, abarrota-se com minério o trem que leva Minas… lá vai o ferro construir os corpos das máquinas de guerra…
“a rua subia de repente, toda eriçada de pedras agudas, como o dorso de um antigo animal…”
2023, a Prefeitura de Itabira não fará guerra! Fará Amor, Na Rua.
2023, no mês de maio, o prefeito Marco Antonio Lage entregará a Cidade o busto no jardim para o melhor amigo de Itabira: Cornélio Penna.
“Não sei se Itabira prestou ou prestará qualquer homenagem ao romancista falecido há pouco, mas se alguém já mereceu de uma cidade um busto no jardim ou pelo menos dar nome a uma rua, esse é Cornélio Penna”.
Talvez, o prefeito José Eliziário Barbosa (1957-59) não tenha lido a crônica, “Imagens da terra. Itabira e romance”, do poeta Drummond, publicada no Correio da Manhã, em 23/2/1958.
Nunca é tarde! Passados 65 anos, o prefeito Marco Antonio Lage leu o replique de “Itabira e romance” na Vila de Utopia de 18/2/2021. Inspirado por Drummond, o prefeito percebeu a oportunidade de fazer política pública cultural e irá reconhecer Cornélio de Oliveira Penna cidadão itabirano.
O busto de cobre, estanho, zinco e de memória, é criação do artista Genin Guerra, e, torna-se símbolo da certidão de nascimento, lavrada em arte, do itabirano por DNA, de itabirismo profundo, do tempo do Matto Dentro, da Cidadezinha…
É assim que se faz a boa cultura: Cornélio, Drummond e Genin. Obrigada, Marco Antonio. Civismo. (Cristina Silveira)
Cornélio Penna
Por Marques Rebêlo
Não fui ao seu velório, noite quente e maravilhosa. Não tive curiosidade em ver Nico Horta como “uma figura de cera na sua límpida imobilidade”. Cheguei-me à varanda e pensei que ele não a veria, noite quente e maravilhosa, nem nenhuma outra mais, quente ou fria, de estrelas ou de tempestade, imerso naquela outra; subterrânea e sem fim, que jamais o amedrontara e para a qual longamente se preparara.
Não fui ao seu enterro, dia quente e luminoso, não quis ver, eu “o demônio de todas as horas”, como me tratava, a triste terra estéril esconder seus despojos. Cheguei-me à janela, janela que dá para a nossa paisagem comum, pintalgada agora pelo roxo das quaresmas, pelo amarelo das acácias, e disse a alguém que aquele sol e calor já não mais seriam procurados por ele para os seus passeios, trôpegos, amparados, de dez metros, a cabeça protegida pela boina.
Era me penoso vê-lo nos seus últimos dias, dias destruidores que chegaram a um ano, talvez pouco mais que um ano. A morte, que fora a sua grande companheira e confidente, como se quisesse ter a prova da sua lealdade e paciência, matara-lhe primeiro os passos firmes e altivos, depois a mão honrada, que nunca se libertara do grande anel de grau, e maltratara a sua boca, e escurecera os seus olhos, impedindo-o de ler, de escrever, obscurecera-lhe um pequeno ponto de seu cérebro claro e sensível, tão claro e sensível que o mistério das almas, do qual seus personagens seriam um exemplo – Maria Santa, Didina Guerra, Emiliana, Nico Horta, Dona Ana, Maria Vitória, Dodôte, Urbano, Carlota – tornava-se para ele matéria palpável e devassável, que os olhos dos torvos não veem senão como fantasmas, como se de fantasmas não andasse cheio este mundo de carne e osso, fantasmas de homens, fantasmas de mulheres, fantasmas de fantasmas!
Era penoso, mas vi-o. Plantava-me diante dele, sempre barbeado e composto como um velho cavalheiro, a sala parecia uma loja de antiquário, que sempre viveu entre o acúmulo sentimental de coisas antigas, móveis ou adornos, quadros ou instrumentos musicais, louças ou cristais, plantava-me diante dele e chamava-o de ignorante, de hipócrita, de reacionário, agredia-o, ofendia-o como sempre o fizera, como era do nosso jogo, jogo velho de trinta e cinco anos, tentando lhe dar inutilmente a ilusão de que não o encontrava transformado em ruinas.
Procurava encará-lo com os olhos firmes, “olhos enfermos de luz”, como ele me dizia, falava-lhe nas tristes ocorrências terrenas, como se as pobres aventuras humanas ainda lhe interessassem, como se já não se sentisse longe do mundo, no céu que tanto ambicionara.
Via-o nas suas refeições insossas, tomando cápsulas, pílulas, sabendo da inutilidade de tais expedientes, confiando somente na graça divina:
– Meus dedos ficaram duros. Você sabe que os médicos – e imita mal seu querido sorriso zombeteiro – não sabem nada, coitados! Rezei a Nossa Senhora do Amparo e no outro dia estava bom.
– Está se vendo. Foi um grande milagre! Mas a insulina tem feito os dela, não.
– Herege…
Nunca mais nos veremos, velho e querido Penna, apesar da tua fé. Mas vejo o nosso sobradinho da Praia de Botafogo, velho sobradinho amarelo, com ares de chalé, de trêmulo, rangente assoalho, pombal que não existe mais, que foi demolido para que em seu lugar se levantasse um feio produto da estupidez e do pó de pedra, rígida colmeia de habitantes sem mel.
Tinha grades de lança sem nenhum sentido defensivo, tinha banquinho no jardim de ultrapassada jardinagem, banquinho antigo, próprio para namorados do fim do século. E tudo era antigo. Os móveis, os tapetes, os retratos os objetos.
Moveis, tapetes, retratos, objetos que te acompanharam sempre, que foram de parentes e ancestrais, cenário familiar sem o qual sucumbirias, cenário algo misterioso, algo fúnebre, impregnado de sândalo e incenso – o retrato da pequena morta sobre o desafinado clavicórdio que te dei, os castiçais funerários eretos num canto, o anjo que foi de um cemitério fluminense velando teu sono solitário, pois que vivias só naquele tempo.
Tinha a chave da porta, nunca uma fechadura foi tão macia, zelava como fiel mastim o tesouro daquelas velharias nas tuas excursões paulistanas, fluminenses e mineiras, das quais voltavas carregado de mais bugigangas.
Liamos juntos, praticávamos a maledicência literária ou não literária ouvíamos música na única coisa nova que havia no sobradinho: a vitrola, que tinha mais de vinte anos!
O leque de sândalo era um luxo para o calor e o piano, tão desafinado quanto o clavicórdio, chorava sobre as tuas mãos todas as valsas que não se tocavam mais. Participava dos almoços de dieta, Maria Pequena, louca de hospício, que atendia aos encargos da cozinha e da limpeza, rodando à nossa volta como uma barata tonta.
– Tal serva, tal dono…
– Tem mais juízo do que…
Para escrever aqui o nome do volúvel amigo? Certamente compareceu ao enterro, gordo e hipócrita. Eu é que não. Fiquei mergulhado nos mistérios do sobradinho de Botafogo, do qual herdei o telefone – que aí já trocara a Tijuca pela Praia – quando o proprietário resolveu vendê-lo para que o derrubassem, e foi se esconder em S. Paulo, esconderijo que não suportou mais que dois anos, voltando com o seu acervo de cacarecos para reerguer aqui seu reinado de ilusões.
Reergueu-o primeiro no Largo dos Leões. Afugentado por um coro que se formou na vizinhança, transferiu-se para as Laranjeiras. E aqui, onde a sua eterna amiga veio busca-lo, reconstruiu-o, com o mesmo amor, pintando ele mesmo os tetos, especialmente o teto de sua capela, porque tinha uma capela, onde fazia só as suas novenas.
– Você ainda acaba preso por exercer ilegalmente a profissão de sacerdote…
Ria. O cupim paulistano metera os dentes na talhadíssima mobília de um certo rei Faissal, mobília negra e insentável. Atacara também o porta-bibelôs de laca da marquesa do Paraná e as molduras das pinturas que ela legara, frutos do seu próprio, diletântico e nobiliárquico pincel. Também um outro cupim mais sério começava a nos invadir.
[Para Todos (RJ), março de 1958. BN-Rio]
Sr. Redator, desnecessário o texto da senhora Cristina Silveira… para quê anteceder um texto do Rebelo, com bobagens?
Parabéns à Vila de Utopia pela matéria sobre Cornélio Penna, sobretudo a Cristina Silveira pela sensibilidade e competência de uma respeitável pesquisadora, sempre resgatando a memória do esquecimento imposto pelo descuido e pelo tempo. Cornélio Penna precisa ser lembrado para além do nome de um “grupo escolar”, de uma rua ou um busto em praça pública. É necessário um trabalho, sobretudo na área da educação, que leve a obra desse escritor ao conhecimento dos itabiranos.
Obrigado, Cristina pelo o seu importante resgate deste personagem Itabirano por adoção e por me envolver neste projeto.