Historiadora descreve como eram as práticas do ofício de ferreiro em Itabira e as suas relações sociais no século XIX
A professora e historiadora Maura Silveira Gonçalves Britto acaba de publicar, na Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), um interessante artigo versando sobre as Práticas do ofício de ferreiro entre escravizados e libertos nas minas do Ferro, século XIX.
O artigo tem como foco a análise de algumas experiências entre escravizados e libertos na transformação do ferro no município de Itabira, nos anos oitocentos.
Doutoranda e mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com especialização em Cultura e Arte Barroca pela mesma universidade, Maura Britto é ex-aluna da Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (Funcesi), pela qual se graduou em História, em 2002.
Pesquisadora sobre o universo da prática de ofícios mecânicos entre escravizados e libertos nas minas do ferro, no decorrer do século XIX, a historiadora encontrou campo fértil de pesquisa na minerada cidade de Itabira do Mato Dentro.
Em seu artigo, Maura Britto analisa historicamente o universo dos primeiros forjadores do ferro em terras itabiranas, destacando a participação desses artífices em uma região de grande concentração de ferreiros próxima às minas.
Trata-se da história dos primeiros operários e empreendedores itabiranos nos primórdios da indústria siderúrgica no estado de Minas Gerais – e que poderia ter dado um salto maior se caso o modelo exportador de matéria-prima (commodities) não prevalecesse, tendo coibido todas as iniciativas anteriores à grande “indústria de extração mineral” que prevaleceu a partir de 1942.
Maura Britto procura identificar o horizonte de liberdade que esses ferreiros vivenciavam a partir de seus ofícios. Isso ela faz por meio da análise de inventários, listas nominativas e dos censos provinciais de 1833 a 1872.
Com esses dados históricos, aponta as características desses ferreiros (cor, idade, condição jurídica, estado civil, domicílio em que residiam, grupos familiares, entre outros dados), considerando também a sua localização no espaço da cidade.
Conforme ela explica, esses dados, em conjunto, permitiram a percepção das relações criadas por esses ferreiros em torno de seu ofício.
Outros aspectos analisados foram as relações de aprendizagem, assim como a prestação de serviços, entre brancos, crioulos e africanos livres, libertos e escravizados.
E assim a historiadora desvenda as relações forjadas pelo trabalho com o ferro, “que permitiam a tais artífices uma autonomia de trabalho e experiências de liberdade construídas antes mesmo da conquista da alforria”.
Leia a seguir, trechos do artigo:
Práticas do ofício de ferreiro entre escravizados e libertos nas minas do Ferro, século XIX
“Contudo, é preciso pensar, que, no universo da escravidão, os escravizados não eram sujeitos passivos. Posicionavam-se na sociedade a partir dos elementos que ela os oferecia.
Dessa forma, a aprendizagem de um ofício podia representar para esses sujeitos históricos uma alternativa ao trabalho na lavoura, uma maneira de ter mais autonomia no exercício de seu trabalho.
Negar aos escravos níveis de adestramento social e desenvolvimento de conceitos compatíveis ao trabalho livre é ignorar por completo tanto a realidade multifacetada da escravidão, quanto a capacidade dos cativos em criar artifícios de sobrevivência, que por certo, acompanharam os escravos no trajeto de integração ao universo dos homens livres.
Isso significa que para o escravizado ou liberto artesão a prática de um ofício mecânico não é vista por eles como um elemento de depreciação moral, mas constitui o cerne de uma experiência de liberdade. O saber fazer dá a esse escravizado a possibilidade de criar uma rotina de trabalho diretamente ligada ao exercício de sua prática. O ofício permite-lhes uma autonomia que não é partilhada por outros escravizados que não tenham a sua especialização.
Dessa forma, quando falamos em produção e transformação do ferro, é a própria atividade que dita o ritmo da produção. Desde a extração do minério de ferro, sua preparação, a fundição e forja, o ofício de ferreiro permite a esse escravizado uma vivência de trabalho diferenciada dos demais cativos de sua unidade.
É uma de suas maneiras de agir de acordo com os recursos que a ordem escravocrata oferecia. Analisando as características sociais dos aprendizes de ferreiro identificados em nossas fontes, nota-se que a transmissão de saberes não tinha início nas fases iniciais da vida, como ocorria nas sociedades europeias descritas por Rugiu.
Na verdade, nos dados dos inventários, não pudemos perceber a existência de um padrão etário para o início da aprendizagem do ofício.
Entre os 27 ferreiros listados, quatro deles, todos de propriedade do Alferes Manoel Fernandes Nunes,– um dos proprietários da Fábrica do Girau – foram descritos pela inscrição “com luz de ferreiro”, evidenciando sua condição de aprendiz.
São eles: Manoel Sabará, crioulo, de 19 anos; João, crioulo, de 26 anos; Florentino, pardo, de 36 anos; e Joaquim, crioulo, de 21 anos.
Isto é, a condição de aprendiz é experimentada por indivíduos de faixas etárias distintas. Ainda assim, podemos dizer que o ofício é comum entre os jovens, em torno dos 20 a 30 anos.
Entre os escravizados ferreiros, observamos o predomínio de indivíduos solteiros.
Também pudemos observar que a presença de mais de um ferreiro por unidade produtiva investigada não foi a regra.
Além do Alferes Manoel, apenas em mais um dos inventários encontramos mais de um escravizado ferreiro, o de José Carlos Marques, que quando de sua morte, era senhor dos “oficiais de ferreiro” Custódio e Manoel.
Através disso, podemos sugerir algumas questões: se a transmissão desse saber mecânico se dava através dos senhores, ou que tais oficiais ferreiros pudessem trabalhar, por meio de jornal ou por sociedade entre seus donos, em mais de uma unidade.
Ou ainda, que essa atividade era desempenhada de maneira rudimentar, servindo apenas para sanar a necessidade de pequenos reparos em instrumentos da lide agrícola e da mineração do ouro.
Ao confrontarmos esses dados com as características identificadas entre os ferreiros representados tanto na lista de reserva da Guarda Nacional de 1833 quanto na
Relação Nominal dos Habitantes de Itabira de 1840, novas questões começam a ser evidenciadas.
Nota-se um predomínio de pardos e crioulos entre os artífices dessa natureza: na primeira, temos 26 pardos, dois cabras, dois crioulos e apenas três brancos. Todos livres.
Também não podemos identificar a partir da descrição da lista de reserva diferenças quanto ao conhecimento do ofício, isto é, os indivíduos listados estão todos descritos apenas como ferreiros, não havendo possibilidade de distinguir os oficiais dos aprendizes.
Da mesma forma que nos inventários, os ferreiros descritos nas listas pertencem a várias faixas etárias, sendo a menor idade presente 19 anos e a maior sendo a de 58 anos.
Contudo, ao contrário do observado nos inventários, a maioria dos indivíduos era casada (apenas seis eram solteiros); o que reforça nossa proposta de que a concepção de laços de parentesco entre praticantes do ofício de ferreiro, pardos, criolos e/ou africanos, foi mais comum entre os livres que entre os escravos.
Da segunda fonte obtivemos uma gama maior de informações. Distribuindo a população por quarteirões, a partir de seus dados pudemos identificar a localização desses ferreiros por quarteirão na cidade de Itabira.
Tornam-se evidentes a composição dos domicílios de cada um desses ferreiros. Em 1840, o núcleo urbano de Itabira estava dividido em doze quarteirões.
A título de consolidação de dados, a partir da relação nominal de seus habitantes, separamos os ferreiros nela presentes de acordo com o quarteirão em que residiam.
Nos 1º e 2º quarteirões, a maioria dos ferreiros identificados são agregados no fogo, havendo apenas dois entre os seis indivíduos citados que são chefes de domicílio.
O que indica que nestes quarteirões, entre os oficiais de ferreiro ali presentes, a aprendizagem não se fazia a partir da transmissão do conhecimento entre pais e filhos.
O terceiro quarteirão, com 19 ferreiros listados, nos apresenta uma distinção quanto à descrição desses indivíduos: 15 deles são ferreiros e 04 fabricantes de ferro.
Acreditamos que essa última descrição se refere ao proprietário da forja ou do “engenho de fazer ferro”, mesmo que este não seja necessariamente ferreiro – termo que indica o domínio pessoal do ofício.
É o caso de Dona Maria Luiza da Silva, chefe do domicílio
88, que certamente herdou de seu falecido marido a forja e 49 escravizados, entre os quais, três eram ferreiros.
A expressão fabricante de ferro poderia ter sido usada, por exemplo, para identificar os proprietários das duas instalações maiores, as Fábricas do Girau e do Onça, que seriam qualificadas como manufaturas.
As demais experiências de produção e transformação do ferro, disseminadas pelas diversas tendas de ferreiro espalhadas pela cidade poderiam ser entendidas como artesanato.
Acreditamos que esse quarteirão se localiza na área central da cidade: seria próximo à Rua de Baixo (uma rua que sai como bifurcação da Rua Flores, que, como já dissemos, é chamada hoje de Rua dos Operários. O nome, diziam os antigos, se deve ao fato de ali residirem vários mestres de ofício).
Essa localização explicaria a concentração de ferreiros nessa parte da cidade: área de saída em direção a uma Fábrica de ferro de grande porte, de entrada de saída de comerciantes, de tropeiros, que poderiam precisar dos serviços oferecidos por tendas de ferreiros para consertos em utensílios da tropa.
É preciso lembrar que o trabalho com o minério de ferro compreenderia então algumas etapas: sua extração, a fundição do minério para se adquirir o ferro derretido e a forja, que se refere aos processos de produção da barra de ferro e de dar a esta a forma do produto desejado.
Em nossas fontes, encontramos apenas essas duas distinções – ferreiro e fabricante de ferro. Não havendo distinção entre os trabalhos do fundidor – o que transforma o minério de ferro em ferro para ser trabalhado – e os do malhador – que daria a forma ao ferro fundido.
O que implicaria na inexistência – ou precariedade – de uma divisão do trabalho aos moldes do conceito de manufatura.
A relação das lojas boticas, fabricantes de ferro e demais negócios da Capela de Nossa Senhora do Socorro, em 1829, foi um dos poucos documentos em que percebemos alguma especialização.
Nesta, os fabricantes de ferro Pantaleão Pessoa e José Pereira do Rêgo foram descritos com a observação “só de fundir”
De modo que, na ausência dessa especificação, estamos considerando a descrição ferreiro abrangente aos dois processos, fundição e forja do ferro.
Ainda no que se refere aos ferreiros residentes no 3º quarteirão, temos uma presença maior de ferreiros em um mesmo fogo.
Da mesma forma, já podemos identificar o chefe do domicílio descrito como ferreiro ou fabricante de ferro, (domicílios 74 e 88), partilhando a ocupação com escravos ou agregados.
Dos 19 habitantes trabalhadores do ferro deste quarteirão, seis são chefes do domicílio, sendo uma mulher, Maria Luiza da Silva, descrita como fabricante de ferro, que sendo viúva, é possivelmente herdeira da forja do marido, mantendo-a ativa. Era uma mulher rica, sabia ler, possuía 49 escravizados, ente os quais quatro eram ferreiros (três deles africanos).
Nas outras casas em que encontramos chefe de domicílio e escravizados ferreiros, os primeiros também são descritos como fabricantes de ferro (fogos 66, 74 e 90).
Mais uma vez, a relação de hereditariedade na transmissão do ofício não se verifica. Para os escravizados, a aprendizagem aqui apresenta-se como resultado da convivência com outros ferreiros, fossem eles outros escravizados, seu senhor ou outros ferreiros livres.
Uma aprendizagem ligada à experiência prática do cotidiano.
Quanto à origem desses ferreiros, temos o seguinte quadro: um branco, – não enumeramos D. Maria Luiza da Silva, uma vez que ela não pratica tal ocupação, apenas herdou os bens do marido que, ele sim, poderia ser ferreiro – cinco pardos, oito crioulos e quatro africanos.
Mais uma vez, nota-se o predomínio da população de cor entre tais oficiais e aprendizes do ferro.
No que se refere à relação entre cor e condição, identificamos entre os crioulos o predomínio de cativos (um livre, seis cativos e um liberto). Entre os pardos, todos são livres, chefes de domicílio e casados.
Reforça-se aqui a presença minoritária dos africanos no grupo.
Temos aqui a situação de Sebastião Cruz, ferreiro de 24 anos, chefe do domicílio de 6,5, liberto. Sebastião é casado com Antonia Maria, crioula de 40 anos, livre, que trabalha como costureira e é mãe de Sebastiana, também crioula de 13 anos. Este domicílio representa uma situação clara em que a liberdade se fez presente.
Não podemos afirmar, apenas por esses dados, que a alforria de Sebastião fora conseguida pelo fato de ser ferreiro. Mas é este ofício, sem dúvida, que permite a ele viver entre os livres como chefe de um domicílio, com outros crioulos livres, na área central da Itabira.
Outro liberto identificado é João Coelho, africano de 36 anos, casado, residente no domicílio de José de Magalhães Barboza. É possível que João Coelho tivesse sido escravizado do mesmo José de Magalhães – uma vez que este tem ainda mais dois cativos ferreiros, Joaquim e Gregório, ambos crioulos – e tivesse permanecido junto a seu ex-senhor, proprietário da forja, para que pudesse continuar vivendo de seu ofício.
Em se tratando de uma área central, é provável que todos esses ferreiros tivessem ampla circulação uns com os outros. De modo que, assim como aponta Sennett, o aprender o ofício de ferreiro se dava a partir de sua prática, isto é, aprendia-se fazendo.
Não havia um aprendizado longo, como no caso das corporações de ofício da Europa Ocidental, e nem mesmo esse era iniciado na tenra idade, dada a falta de um padrão consistente quando observamos a idade dos ferreiros identificados.
Como nem todos eram proprietários de forja, poderiam trabalhar em conjunto nas instalações dos fabricantes de ferro ali presentes. Conviviam.
Assim, a experiência da aprendizagem desse ofício, nas Minas do Ferro escravista, era inerente ao modo de vida dos escravizados e libertos que nela se envolveram.
Nos 4º e 5º quarteirões, mais uma vez predomina entre os ferreiros entre pretos, pardos e crioulos. Trata-se de domicílios pequenos, compostos pelos chefes do domicílio, seus familiares, outros crioulos e pardos livres, libertos ou escravizados.
Da mesma maneira, temos um predomínio de chefes de domicílios entre os ferreiros identificados nesses quarteirões. Homens que a partir do ofício de ferreiro, buscavam se inserir no mundo dos livres e através dele, demonstrar sua condição liberta.
Encontramos também nesses quarteirões Maria Francisca de Assis, parda, de 53 anos, solteira, fazendeira, Jerônimo Machado Porto, pardo de 46 anos, livre, negociante e Fernando Antonio Drummond, branco, de 23 anos, casado, comerciante.
Maria Francisca divide seu fogo com mais dois indivíduos livres, dois libertos e dois escravizados. Um dos libertos é o ferreiro Firmiano Moreira, pardo de 37 anos, casado, descrito apenas como ferreiro.
Firmiano é casado com Francisca Rosa Mendes, também parda e liberta, de 27 anos, que vive de seu ofício de costureira.
Trata-se de um fogo formado predominantemente por escravos e libertos, que vivem de si a partir dos ofícios que prestam na cidade de Itabira.
Não podemos afirmar se há laços de parentesco entre eles, embora seja possível, pela disposição dos nomes e pelas idades das mesmas, que Francisca, esposa de Firmino, seja filha de Maria Francisca.
De toda maneira, buscam juntos uma forma de sobrevivência nesta sociedade escravista.
A presença de escravizados entre eles demonstra uma prática comum entre os libertos de, sempre que possível, a partir da propriedade de escravizados, superar seu passado de cativeiro.
O ferreiro Firmiano e sua esposa são os únicos do domicílio que possuem um ofício definido. Como ferreiro, Firmiano pode oferecer seus serviços para as fábricas da região, como a do Girau e do Onça, ou mesmo, trabalhar por jornal junto a outros proprietários de forjas na cidade ou com outros ferreiros livres. Também poderia ter uma tenda, na qual trabalhariam com ele outros ferreiros, livres ou escravizados das proximidades.
Observamos nesse domicílio uma situação que, como veremos, se repetirá em outros analisados adiante: o casamento entre ferreiros (livres, pardos ou crioulos), com crioulas ou pardas livres que praticam o ofício de costureira.
Ou seja, situação de uniões entre indivíduos artesãos e autônomos, prestando serviços para os habitantes da cidade e/ou para viajantes que por ali passavam.
É preciso considerar também que, conforme já foi dito, a localização de Itabira é um ponto estratégico no caminho que liga as áreas de mineração antiga com o norte de Minas.
A passagem de tropas poderia ser algo frequente ali e que seriam uma demanda para os serviços das tendas de ferreiro que ali se localizavam. Consertos em utensílios desgastados pelo uso e pelas viagens poderiam ser feitos por ferreiros como Firmiano.
Da mesma forma, Francisca, como costureira, poderia fazer remendos em roupas puídas pelo tempo e pelo desgaste do uso, tanto desses viajantes como de habitantes da cidade. O ofício é para ambos a maneira de consolidar a liberdade já conquistada.
Outro chefe de domicílio desses quarteirões que não é ferreiro é Jerônimo Machado Porto, pardo de 46 anos, negociante. Casado com a parda Beatriz Nunes, de 30 anos, costureira livre, Jerônimo vive junto a seus quatro filhos, dois escravizados e o livre Antonio Faustino, pardo de 19 anos, que prática o ofício de ferreiro.
Faustino não é filho de Beatriz Nunes, o que sabemos ao comparar a idade dos dois. Também não existem outros ferreiros em seu domicílio. Dessa forma, a aprendizagem e o exercício de seu ofício ocorreria aqui através do trabalho em conjunto com outros ferreiros, isto é, uma aprendizagem marcada pela convivência, socializada pela prática.
Fernando Antonio Drummond, branco de 33 anos, casado com Tereza Miguelina, é negociante e proprietário de sete escravizados, entre eles João dos Santos.
João é pardo, tem 40 anos, é solteiro e descrito na relação nominal como ferreiro. É o único ferreiro do domicílio em que reside.
Embora não fosse ferreiro, por ser um negociante, Fernando Antonio poderia ser proprietário de uma tenda na qual utilizava os serviços de João dos Santos para vender os artigos de ferro por ele produzido.
Ali também poderiam trabalhar Antonio Faustino, Joaquim Leandro, Firmiano Moreira, entre os outros ferreiros que viviam nas proximidades de seu fogo.
No 6º quarteirão encontramos um caso em especial deve ser considerado aqui, justamente por não se enquadrar no padrão de aprendizagem encontrado comumente nos fogos até aqui discutidos.
Trata-se do domicílio 277, quem tem como chefe Antonio Coelho, pardo de 51 anos, casado com a parda livre Maria Joana, de 41 anos, descrito como ferreiro.
O casal divide a residência com mais cinco homens livres, todos ferreiros, que pela idade e disposição na lista, podem ser seus filhos. São eles: José Amaro, pardo de 22 anos; Antonio, pardo de 18 anos; Thomé, pardo de 20 anos, Manoel, pardo de 16 anos e Claudino, pardo de 14 anos. Todos eles são livres e solteiros.
Nesse caso, a aprendizagem do ofício pode ter se dado pela transmissão do ofício de pai para filho, compreendendo uma prática exercida entre todos os homens membros da família.
A transmissão de saberes mecânicos por hereditariedade e tendo início na infância, uma vez que, o fato de encontrarmos na documentação os filhos de Antonio Pedro já crescidos não significa que o seu contato com o ofício de ferreiro tenha se iniciado no momento em que conseguimos apreendê-los na fonte.
Tal aprendizagem certamente inicia-se bem antes disso. Aprendizagem no ambiente doméstico e familiar. Com o uso de instrumentos próprios, dominando todo processo de trabalho e da qual os frutos são revertidos para a manutenção da unidade produtiva familiar. Um exemplo típico do modelo clássico de produção artesanal.
Os outros oito ferreiros encontrados no s 6º e 7º quarteirões estão distribuídos em três domicílios, os fogos 303, 304 e 330.
José Filho Ferreira, pardo de 80 anos, solteiro, com a ocupação de negociante, é chefe do domicílio 303, onde residem mais dois homens livres e dois cativos. Entre esses, temos Pacífico Filho, pardo solteiro de 22 anos, ferreiro e que pode ser filho do dito José.
Os escravizados Luiz, africano de 26 anos e o também Luiz, também africano, de 26 anos, ambos solteiros, são descritos como ferreiros.
No fogo 304, o ofício de ferreiro é ocupação do chefe, Arcanjo Teixeira, pardo de 40 anos, casado, livre (sabe ler) e dois habitantes livres, Manoel e Francisco, que podem ser filhos do casal.
Arcanjo tem 40 anos, é pardo, livre e casado. Manoel, de 21 anos e Francisco, de 18, partilham com o chefe do domicílio a cor, a condição jurídica e o ofício.
Considerando Manoel e Francisco filhos de Arcanjo Teixeira, esse é mais um dos poucos casos em que temos a transmissão geracional do ofício para fogos formados por ferreiros descritos com o pardos, crioulos, pretos ou africanos.
Narcizo Teixeira, ferreiro livre de 71 anos, casado com a parda Maria, de 39 anos, é chefe do domicílio de número 330. Com o casal moram mais 3 escravizados, entre eles João, de origem africana, solteiro, também ferreiro, sem idade definida.
Entre os casos identificados no 8º e 9º quarteirões, trataremos aqui de dois em especial: o de Manoel José dos Santos (fogo 375, 8º quarteirão) e o de Felícia Fernandes (fogo 485, 9º quarteirão).
Manoel José dos Santos, pardo de 61 anos, é um negociante livre casado com a parda livre Joana, de 42 anos. Nesta casa há também o ferreiro Francisco, pardo livre, de 19 anos, filho do casal. Moram ali apenas os três.
O inventário de Manoel, datado de 1863, continha em sua descrição de bens parte em terras na Fazenda do Monjolo, na qual havia 120 alqueires de milho, avaliado tudo em 1:200$000; terras de cultura no lugar denominado Chapadão, com 43 alqueires de milho, avaliadas em 516$000.
Manoel deixava também quatro escravizados sem ocupação definida. O monte-mor de seus bens equivale a 3:646$000.
Ao que tudo indica, esses escravizados trabalham nas terras ou da Fazenda dos Monjolos ou no Chapadão5, uma vez que não foram listados na relação nominal de 1840 como integrantes do fogo 375.
(5 A Fazenda Chapadão localizava-se fora dos limites da Cidade, em direção a Caeté. Acabou dando origem a uma comunidade rural que por muito empo chamou-se Chapada, onde haviam pequenas propriedades agrícolas e de criação de animais. Atualmente esta área foi rebatizada como Bairro Boa Esperança.)
Contudo, acreditamos que a residência descrita na relação nominal como fogo 375 do 6º quarteirão se refere a outra propriedade, devida a distância que a Fazenda Chapadão estava do núcleo da cidade.
Notadamente, não foi com seu pai que Francisco aprendeu seu ofício de ferreiro.
O inventário de Manoel dos Santos não indicava elementos de ferro ou que pudessem indicar que em suas propriedades havia alguma tenda de ferreiro.
Certamente, o processo de aprendizagem de Francisco nas artes do ferro se fez a partir da convivência com outros artesãos que trabalhavam nas vizinhanças.
Contudo, o produto de seu trabalho poderia também atender a demanda por instrumentos agrícolas nas terras de seu pai.
Já Felícia Fernandes, pardaçã de 40 anos, é livre e solteira, vivendo de seu trabalho de lavadeira. É chefe do fogo 485, do 9º quarteirão, onde estão descritos também mais cinco homens livres e solteiros.
Destes, quatro são ferreiros: Francisco Romão, pardo de
20 anos ; Angelo, pardo de 20 anos; Manoel, pardo, também de 20 anos e o pardo José, de 16 anos. Possivelmente filhos de Felícia.
Trata-se de um fogo composto por indivíduos de cor que vivem de seu trabalho, a partir dos serviços que prestam para os habitantes da cidade de Itabira.
O ofício de ferreiro está presente como a atividade desenvolvida por praticamente todos os homens deste domicílio, pela idade, certamente eram aprendizes.
Possivelmente, esses ferreiros trabalham juntos, oferecendo seus serviços aos proprietários de forjas da cidade, juntamente com outros ferreiros livres, libertos e escravizados.
Há também a possibilidade serem eles autônomos, trabalhando em sua própria tenda de ferreiro.
(…)
No fogo 699, Joaquim da Costa Lage, viúvo de 62 anos, mineiro, é proprietário dos escravos ferreiros Felipe, pardo, solteiro, de 30 anos e Ricardo, crioulo, também solteiro, de 25 anos.
Além desses, Joaquim tem mais 119 cativos (a maioria tinha a ocupação de mineiro ou de roceiro).
Em sua casa foram listados ainda seus quatro filhos e oito indivíduos livres.
Joaquim da Costa Lage é um dos grandes proprietários de terras minerais em Itabira, e já havia sido identificado como inventariante de Dona Senhorinha Maria Clara de Andrade, em processo de 1840, em que os bens compreendiam grande fortuna.
Entre esses bens, estão a Fazenda Engenho com oitenta alqueires de planta de milho, avaliada em 1:284$000; uma roça no Ribeirão de São José com 92 alqueires de milho, avaliada em 523$336.
Um outro terreno de cultura na Fazenda Caxoeira com 12 alqueires de milho em 102$000; terreno de cultura no Morro do Coelho com 25 alqueires de milho em 212$500 e uma morada de casa de sobrado na Vila de Itabira com água por bicas em 1:400$000.
É importante ressaltar como um sobrado bem localizado na Vila de Itabira tinha um valor superior ao da fazenda, com seus alqueires de cultura e benfeitorias.
Em datas e praças nas Serras do Esmeril, Conceição, Piriquito e Itabira, a quantia 13: 575$000
. Há ainda 104 escravizados, entre eles, um ferreiro: João, crioulo de 64, aleijado dos pés, avaliado em 150$000.
O inventário de Dona Senhorinha Maria Clara de Andrade, de quem Joaquim da Costa Lage fora herdeiro e filho inventariante, constava ainda de uma extensa lista de crédito por dívidas dos moradores da Vila, somando tudo a quantia de 1:959$439.
Além disso, a quantia de 210$000 referente à dívida vencida do preto forro José Antonio. A inventariada deixa em dinheiro a quantia de 1:461$343 e 36:254$080 no valor total de seus escravizados.
O monte-mor do inventário soma a invejável fortuna de 58:960$073.
Trata-se de um caso em que os serviços dos escravizados ferreiros Felipe e Ricardo serviriam a Joaquim da Costa Lage como forma de atender as necessidades de suas lavouras e das terras minerais que possuía.
Felipe e Ricardo poderiam não só fundir o minério de ferro retirado das lavras que seu proprietário tinha nas Serras do Esmeril, Conceição, Piriquito e Conceição, como também forjar ferramentas para a cultura de milho e para a mineração nessas mesmas terras minerais, sobretudo em Conceição, que, conforme nos relata Saint-Hilaire, nesse período já iniciava sua exploração subterrânea de ferro, na década de 1820.
Outro ponto a considerar é o fato de, em uma lista de escravizados tão extensa, haver apenas 02 descritos como ferreiros.
Observa-se que a atividade que preenche os maiores interesses de Joaquim da Costa Lage é a mineração de ouro e ferro, dado ao grande número de seus escravizados serem representados na fonte com a ocupação de mineiros/mineradores.
Dessa forma, Felipe e Ricardo fariam parte de uma atividade subsidiaria nesta unidade produtiva. E estes muitos escravizados mineiros de Joaquim também podiam auxiliar nos trabalhos de fundição, deixando a forja do metal a cargo de Felipe e Ricardo.
Sendo os únicos ferreiros de propriedade de seu afortunado senhor, estes dois artesãos também poderiam praticar seu ofício junto aos outros ferreiros, entre outros escravizados, livres e libertos, dos 10º, 11º e 12º quarteirões.
Também é provável que Joaquim da Costa Lage pagasse pelos serviços de outros ferreiros dessa área para atender a necessidade de utensílios de ferro em suas roças e minas, uma vez que o trabalho somente de Felipe e Ricardo pudesse não ser suficiente para tal demanda.”
Leia o artigo na íntegra aqui.
Grande artigo. E o editor desta Vila deve acordar com a Maura Brito novos artigos para mantermos viva a memória da Cidadezinha.
Beijoca pra você Maura.
Oi Cristina! Obrigada pela leitura! Assim que tiver mais resultados preparo algo para compartilhar pelo Vila de Utopia. E agradeço ao Carlos por esse espaço tão importante não só para a preservação da memória da Itabira do Mato Dentro, como também para discutir pontos relevantes para a construção de uma cidade melhor hoje! Um abraço pra você!
Maura, a Vila de Utopia está organizando uma plataforma digital com o nome de Itabiranas, trata-se de uma coleção de periódicos da BN-Rio, que estamos copiando e classificando com palavras-chave e abrange todos os jornais brasileiros depositados na hemeroteca BN. O que significa que você e o Mauro Moura, por exemplo, poderão ilustrar os artigos que tão bem escrevem.
Outra coisa, é a Vila de Utopia que agradece você por nos dar a oportunidade de publicar o que revelam à você os “arquivos implacáveis” de Minas Gerais.
A você o nosso abraço e o espaço livre na Vila de Utopia.