Governo federal distribuiu 100 mil unidades de cloroquina para indígenas

Informação consta em powerpoint divulgado em coletiva do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Aldeias receberam ainda 205.540 comprimidos de oseltavimir, rejeitado por infectologista, segundo a Agência Saúde

Por Rafael Jasovich*

O governo federal distribuiu 100.500 comprimidos de cloroquina para indígenas. A informação do ex-ministro não foi destacada pelos textos oficiais nem pela imprensa. Mas está lá, na página 39 da apresentação.

A pasta reuniu a imprensa para apresentar o que considerava um pacote de boas notícias: habilitação de novos leitos de UTI e entrega de respiradores, por exemplo.

No meio do que seria uma agenda positiva, Pazuello confirmou a obsessão do governo pela cloroquina. O medicamento, de eficiência não comprovada e com alto risco para a saúde, foi distribuído em escala no país: foram 4,8 milhões de comprimidos.

Quase metade do material apresentado durante a entrevista tratava de saúde indígena. O tema ocupou 28 das 63 páginas do powerpoint, inclusive com dados desmentidos por organizações indígenas.

No material, mais uma informação sobre a distribuição de remédios destinados aos povos originários nas aldeias: além dos 100.500 comprimidos de cloroquina, foram encaminhados as aldeias outros 205.540 de oseltavimir.

Risco do medicamento é maior em comunidades distantes

Conhecido pelo nome comercial tamiflu, o oseltavimir foi outro medicamento que ganhou destaque nominal na apresentação.

No total, foram entregues no país 11,1 milhões de unidades da substância. A distribuição dos dois medicamentos não está em nenhum dos textos divulgados no site do ministério a respeito da entrevista.

Segundo a Sociedade Brasileira de Infectologia, esse medicamento tem uma eficiência menor ainda e um risco maior ainda no caso da Covid-19, embora recomende — sem ênfase — para o combate à gripe.

Sem qualquer indicação de eficiência no tratamento da Covid-19 e com sérias ameaças à saúde no seu uso, a cloroquina teve sua indicação de uso suspensa, em junho do ano passado, para pacientes da doença nos Estados Unidos.

No Brasil, contrariando todas as evidências científicas, o medicamento continuou no imaginário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e de seus seguidores. E uma das medidas tomadas foi a distribuição dos comprimidos de cloroquina para os DSEIs.

Desde de maio, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) não recomenda o uso da substância para o tratamento, especialmente em casos ambulatoriais. Pesquisas divulgadas desde maio mostram que, além de não ter eficiência comprovada para o tratamento, o uso ambulatorial da cloroquina representa um risco à saúde.

Um estudo publicado naquele mês pelo jornal científico The Lancet apontou um aumento da mortalidade entre os pacientes que receberam a substância, ligado principalmente a arritmias cardíacas.

Em comunidades que muitas vezes estão distantes de hospitais de alta complexidade e sem um acompanhamento médico específico, como é o caso das aldeias indígenas, o risco da utilização do medicamento pode ser ainda maior.

No início do mês, a Amazônia Real mostrou que uma missão chefiada por militares levou 66 mil comprimidos de cloroquina para as terras indígenas. Os ex-ministros Mandetta gostava de coletivas; Teich, menos; Pazuello, nem um pouco.

Presença incomum nas apresentações aos jornalistas ao longo da pandemia, Eduardo Pazuello comandou a coletiva, acompanhado de representantes do segundo escalão da pasta.

Em junho, o ministro chegou a ser questionado no Congresso, pela deputada Eliziane Gama (Cidadania), diante da ausência de coletivas. Na ocasião, ele respondeu que ir às entrevistas era “tirar o pessoal da produção, do trabalho”.

O militar comandou, primeiramente interinamente, o Ministério da Saúde desde maio do ano passado, embora não tenha qualquer formação na área médica.

Quem tinha essa formação abandonou o ministério, em boa parte pela obsessão de Bolsonaro pela criação de protocolos para utilização da cloroquina e um de seus derivados, a hidroxicloroquina.

Desde que testou positivo para Covid-19, Bolsonaro intensificou a propaganda do remédio em lives e aparições públicas, chegando ao ponto de erguê-lo frente a uma multidão que saudava o falso remédio milagroso e até mesmo mostrá-lo para uma ema que passeava no gramado do Palácio da Alvorada.

País tem estoque inútil de 4 milhões de comprimidos

A obsessão de Bolsonaro pelo medicamento, geralmente usado no tratamento da malária, causou um problema para o país.

Segundo reportagem da Folha, o Brasil possui um estoque parado de 4 milhões de comprimidos de cloroquina, dos quais 2 milhões foram despejados em solo brasileiro pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, semanas antes de o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) daquele país suspender o uso do medicamento para casos de Covid-19.

O rombo é ainda maior. O presidente Jair Bolsonaro também liberou R$ 1,5 milhão para o Laboratório de Química e Farmácia passar a produzir o medicamento, com insumos adquiridos da Índia. O gasto não havia sido aprovado pelo Ministério da Saúde.

O Ministério da Saúde também apresentou dados sobre a incidência da Covid-19 entre os povos originários muito menores do que os levantados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

A Apib registrou 18.260 casos confirmados e o ministério fala em 13.096. A distorção entre o número de mortes é ainda maior. São 570 indicados pela Apib e menos da metade, 247, conforme o ministério.

O problema não é isolado nem recente. O descaso do governo federal com a saúde indígena chegou ao Supremo Tribunal Federal.

Em liminar concedida em uma ação proposta pela Apib e pelos partidos PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT, o ministro Roberto Barroso determinou que o governo Bolsonaro teria de tomar cinco medidas para proteção dos povos indígenas.

O genocídio dos povos originários não é de hoje, mas o capitão cloroquina e seus áulicos ministros mantêm essa política de maneira alarmante e criminosa.

*Rafael Jasovich é jornalista e advogado, membro da Anistia Internacional

No destaque, soldados do exército transportam cloroquina para aldeias indígenas (Foto: Agência Saúde)

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