Fragmentos do caos no Rio
Athaliba dos Anjos*
Com o esfacelamento do princípio da autoridade – o ex-governador Cabral (PMDB) condenado e preso e seu sucessor Pezão (PMDB) e o vice Dornelles (PP) recorrendo da cassação pelo TRE-RJ por abuso de poder econômico e político -, o Rio de Janeiro afunda numa crise em precedentes. No final de semana, o Exército, Marinha e Aeronáutica, junto com a Polícia Federal, Polícia Militar e Guarda Municipal tomaram a Favela da Rocinha para apartar briga entre duas gangues de traficantes, rachados, da mesma facção. O caso repercute na mídia no exterior, enquanto segue a ocupação e moradores denunciando que os militares estão arrombando casas – até saqueando – sem mandado judicial.
Cômico, se não fosse trágico!
O presidente da ALERJ, deputado Jorge Picciani (PMDB), em março, foi conduzido à força pela Polícia Federal para prestar depoimento na investigação “O Quinto do Ouro”, que levou à prisão temporária cinco dos sete conselheiros do Tribunal de Contas do RJ: Aloysio Neves, Domingos Brazão, José Gomes Graciosa, José Maurício Nolasco e Marco Antonio Alencar, filho do ex-governador Marcello Alencar (1925-2014).
O empresário Eike Batista foi preso sob a acusação de pagar propina e participar de esquema de desvio de dinheiro no governo de Sérgio Cabral. E o juiz Flávio Roberto de Souza, que tinha expedido mandado de busca e apreensão contra Eike, acabou condenado a oito anos de prisão. Dois carros de luxo e o piano do empresário foram apreendidos. O Juiz guardou o piano no condomínio onde mora e os carros na garagem dele. Certo dia, o juiz foi flagrado dirigindo um dos carros. Em sua própria defesa afirmou que tomava 15 remédios e uma garrafa de uísque por dia.
Brincadeira, né?
A chamada “Operação Calabar” expôs a Polícia Militar como um dos eixos da indústria do crime no Rio de Janeiro.
– Pode chegar. A boca de fumo agora é nossa e o “bagulho” está em promoção, propagandeava um soldado da PM.
Diante da situação inusitada, o viciado hesitava. Não acreditava no que vivenciava. Como a necessidade de “comer era maior que a fome”, arriscou:
– Olha aí, me dá então uma de 20.
Pasmem, os traficantes eram PMs. Eles tomaram a boca de fumo dos traficantes na mão grande e passaram a vender maconha, cocaína e crak. A curiosa cena – até poderia ser filme policialesco estadunidense de péssima categoria – ocorreu numa boca de fumo em uma das comunidades de São Gonçalo, segundo município mais populoso do RJ, com mais de um milhão de habitantes.
Por algumas horas, os PMs tomaram o lugar dos traficantes para ganhar uns trocados. Também sequestravam traficantes para exigir resgate. Orientavam criminosos a roubar carros, alugavam armas do quartel para bandidos, incluindo fuzil; realizavam bliz para achacar motoristas com pendências no Detran (o valor em R$ na palma da mão evitava gravação) e escoltavam os chamados “bondes” de criminosos de um local a outro.
“Essa imagem é danosa para a sociedade. Os moradores, que não têm perspectiva nestes bolsões de pobreza, passam a ver essas cenas absurdas como uma relação normal. As crianças crescem neste ambiente achando que a venda de drogas é a única forma de ascensão social”, comentou à época um delegado que participou das prisões dos PMs.
Por sua vez, o comandante-geral da Polícia Militar, coronel Wolney Dias, desabafou:
“Essa instituição está sangrando. Não compactuamos com qualquer desvio de conduta. Não queremos os maus policiais nas nossas fileiras. Se precisar excluir 90, 900, 9 mil, não importa. Nós não os queremos na nossa instituição. O policial que trai o seu dever de ofício não é digno de vestir a farda da Polícia Militar”.
Os fatos que chocaram a sociedade e repercutiram no exterior integram o inquérito instaurado a partir da investigação realizada no final de junho pela Divisão de Homicídios de Niterói e São Gonçalo e pelo Ministério Público estadual que prendeu 97 PMs lotados no 7º BPM, acusados de corrupção e formação de quadrilha. A propina recebida por PMS era em média de R$ 1 milhão por mês. Não foi descartada a hipótese de que esquema semelhante ocorra em outros quartéis da Polícia Militar, na Região Metropolitana do Rio.
A investigação “Calabar” alimenta a discussão que pede a extinção da corporação, defendida por expressivas entidades organizadas da sociedade civil e por alguns políticos. O nome da investigação fez alusão a Domingos Fernandes Calabar, aliado aos portugueses e que depois se juntou aos holandeses na invasão do Nordeste brasileiro. Trata-se de um personagem controverso da nossa história. Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra, em 1973, fizeram a peça teatral “Calabar: o Elogio da Traição”, revisitando a condição de traidor do personagem. Afinal, Calabar foi traidor ou não?
O jornalista e historiador Romeu de Avelar, no livro “Calabar”, publicado em 1938, contesta a ideia de que ele tenha sido de fato um traidor. O autor argumenta que Calabar, por ser brasileiro e não português, tinha o direito de escolher de que lado lutar. E afirma que ele não apenas foi corajoso, mas, também, patriota. Para o autor, Calabar foi insurreto e um clarividente que se antecipou à revolução histórica e liberal do Brasil.
O alusivo batalhão da PM em São Gonçalo tem precedente criminal na história policial do Rio. Em 2011, a juíza Patrícia Acioli foi assassinada com 21 tiros quando chegava de carro à residência dela, em Niterói, numa emboscada autorizada pelo então comandante do quartel, o tenente-coronel PM Cláudio Luiz Silva Oliveira. Ele e os cúmplices foram condenados e cumprem sentença na prisão.
A magistrada à época titular da 4ª Vara Criminal recebeu resultados de investigações do Ministério Público e da Polícia Civil dando conta de PMs envolvidos em autos de resistência forjados. É quando a polícia mata simulando legítima defesa e, em alguns casos, altera o local do crime para dificultar a veracidade do caso. Os investigadores dizem que os policiais militares, juntos, têm mais de 250 autos de resistência. Por decretar prisões de policiais militares, Patrícia Acioli ficou marcada para morrer.
No mês de outubro/2010, dias depois de o tenente-coronel Claudio de Oliveira assumir o comando do 7º BPM, George da Conceição Silvestre, de 18 anos, foi morto a tiros. Os tiros foram dados por PMs em uma ação na Favela do Salgueiro. As investigações sobre o crime mostraram que eles alteraram a cena do crime. A juíza decretou a prisão de quatro soldados e do major Rodrigo Bezerra de Barros pela participação na morte de George.
Ainda em 2011, após o assassinato da juíza Patrícia Acioli, outro fato sacudiu os alicerces do 17º BPM: o comandante, tenente-coronel Djalma Beltrami, ex-árbitro de futebol, foi preso, junto com outros PMs, sob a acusação de receber propina de traficantes para deixar funcionando pontos de venda de tóxicos. Ele tinha assumido o comando do quartel depois da prisão do tenente-coronel Cláudio Luiz de Oliveira. Na ocasião, a acusação foi de que os PMs recebiam R$ 160 mil de propina por mês. Beltrami fez parte do quadro de árbitros da Ferj e, também, dos quadros da CBF, além da Fifa.
A violência sem limite no Rio – como se limite houvesse à violência -, conflagrada na maioria das cerca de 850 comunidades: favelas e morros – tem impedido alunos de frequentar aulas devido a investidas da PM e até mesmo da “guerra” entre facções criminosas.
Entre as cerca de 640 vítimas de balas perdidas – cognominar bala perdida que mata é muita hipocrisia – das quais 70 morreram, no Rio no decorrer deste ano, estão alunos de rede pública de ensino. Uma menina foi atingida por tiro nas costas no Colégio Ricardo Leon, em Belford Roxo. Outra morreu baleada na Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, em Acari.
O secretário de Educação, César Benjamin, chegou a exteriorizar que “não quero esconder a realidade: o Rio está morrendo aos poucos”, sobre a situação de violência. Ele, que foi guerrilheiro, preso e torturado durante a ditadura militar é um dos fundadores do PT e defensor de uma escola laica.
Os considerados anos românticos da vida urbana do Rio, creio, estão na memória de alguns poucos cariocas, pois vão se distanciando os anos de 1950. Já na década de 1960, o caldo entornou no antigo Estado da Guanabara. Com o golpe civil-militar foi criado o grupo “Homens de Ouro”, integrado por uma dúzia de policiais, com o “objetivo” de combater o crime organizado. Mas, a ideia do então secretário de Segurança Pública, general do Exército Luiz de França Oliveira, foi para o ralo. Pior: suscitou o Esquadrão da Morte. O general morreu 12 de junho de 1988, aos 78 anos, atirando-se do 6° andar do Pavilhão do Hospital Central do Exército.
Dos fragmentos do caos no Rio, entre tantos outros a contar, cabe uma advertência às autoridades e à população de Itabira: cuida da cidade enquanto é tempo, antes que seja adotada pelo crime organizado. A violência em larga escala na capital mineira está se expandido às cidades limítrofes. E Itabira já sente os primeiros sintomas.
*Athaliba dos Anjos é repórter policial no Rio (RJ) e correspondente deste site