Foi dada a largada para a Linguagem de Macaco (Guinlagem de Camaco) ser reconhecida como patrimônio cultural imaterial de Itabira pelo IEPHA-MG
No destaque o bar Palô, na década de 1980, no bairro Pará, depois de ter funcionado por muitos anos na rua Tiradentes, no centro histórico. Ao se mudar para “terpo do Pacim Reichoso”, no bar se jogava sinuca e a conversa entre muitos era comum o camaquês, a guinlagem de camaco
Foto: Eduardo Cruz
A Prefeitura de Itabira, por meio da Diretoria de Patrimônio Histórico e Cultural (DPHC), deu início ao processo de reconhecimento da célebre Guinlagem de Camaco (Linguagem de Macaco) como patrimônio histórico e cultural imaterial de Itabira, junto ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG).
Trata-se do reconhecimento dessa corruptela da língua falada portuguesa, invenção de nativos mineiros itabiranos como forma de resistência à colonização inglesa na cidade ainda toda de ferro, nas décadas de 1920/30. Era utilizada pelos sagazes itabiranos para não serem entendidos em suas conversações pelos gringos adventícios, que exploravam as minas de ouro de Conceição e Cauê.
Para que se consiga êxito nesse propósito de reconhecimento, uma equipe foi nomeada pelo prefeito Marco Antônio Lage (PSB) especialmente para preparar um dossiê, que será enviado para avaliação e para o posterior reconhecimento pelo Instituto Estadual do IEPHA-MG.
Roda de conversa
Para debater o sentido e significado histórico desse patrimônio cultural itabirano, o DPHV promoveu recentemente uma roda de conversa sobre esse patrimônio imaterial, coordenada pela historiadora e mestranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mariana Brescia Cruz.
O encontro contou com participação do pesquisador Geuderson Traspadini Marchiori, servidor da Unifei, mestre com dissertação sobre essa “linguagem de macaco” ainda falada em Itabira. Contou também com a participação do compositor e músico Nandy Xavier, do músico bissexto Roberto Quintão, ex-vocalista da banda Sobrinhos do Padre, além de Sara Oliveira e Elyza Menes, ambas da equipe da DPHC.
Os depoimentos colhidos nesse encontro farão parte também do dossiê da Guilagem de Camaco a ser encaminhado ao IEPHA-MG. O objetivo não é só o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial de Itabira, mas também como meio de contribuir para a preservação dessa tradição oral que está se perdendo com o tempo, com poucos falantes na cidade.
Memória
No passado ainda recente, a célebre linguagem itabirana foi muito utilizada por moradores dos bairros Campestre, do Paquim Reichoso (Capim Cheiroso, hoje Pará), que eram os mais próximos das minas de ouro, contou a este site o compositor e sambista José Caetano “Tobias” Belisário (1930-21).
O sambista, falecido em 26 de março de 2021, contou na entrevista que não chegou a garimpar ouro na mina Cauê, mas disse que participava de grupos de trabalho, já na década de 1940, no início da Vale, carregando caminhões com pedra de minério.
“Foi com a turma no trabalho que aprendi a linguagem de macaco, uma ‘língua’ inventada para os ingleses não entenderem o que os trabalhadores nativos diziam, já que eles não entendiam a linguagem dos gringos”, recordou Tobias na entrevista a este site.
Com o domínio da linguagem, Tobias compôs vários sambas utilizando-se, ou traduzindo para a linguagem de macaco, a exemplo do que segue:
Ah, equ tosgoso, ah equ tosgoso. (Ah, que gostoso, ah, que gostoso)./E on lhevo pemto do Pacim Reichoso. (E no velho tempo do Capim Cheiroso)./E a ita Lecicia zafia o lobo, ás Mencletina zafia o facé. (e a tia Cecília fazia o bolo, e sá Clementina fazia o café)./Uem aip Ez ad Vilsa xupava o lofe na saquinha de pasé. (Meu pai Zé da Silva puxava o fole na casinha de sapé)./Ah que tosgoso, ah que tosgoso. (Ah que gostoso, ah que gostoso)./On lhevo pemto no Pacim Reichoso. (No velho tempo do Capim Cheiroso)./
Ue era quepeno sam era guendoso. (Eu era pequeno mas era dengoso)./Omc as romeninhas do Pacim Reichoso. (Com as moreninhas do Capim Cheiroso)./Ramia ad Zul e Ramia Sojé, tancavam nobito e bamsavam no ep. (Maria da Luz e Maria José, cantavam bonito e sambavam no pé)./Ah que tosgoso, ah que tosgoso. (Ah que gostoso, ah que gostoso)./Guechava os mondingos eu vada um teijinho, lococava a dorca on eum vacanhinqo. (Chegava os domingos eu dava um jeitinho, colocava a corda no meu cavaquinho). Ah, equ tosgoso, ah equ tosgoso. (Ah, que gostoso, ah, que gostoso).
Linguagem cantada
E assim, fazendo uso da linguagem de macaco para também divulgar as suas músicas, Tobias seguiu, na prática, uma recomendação da musicista – e também falante da linguagem de macacado, Nana Mendonça.
“Cantar em camaco pode ser um bom facilitador de aprendizado para aqueles iniciantes em guinlagem – com traduções mais simples e de fácil assimilação fonética – ou mesmo recitar poemas e frases em camaco”, ela recomenda, em artigo publicado neste site, como meio de difundir e perpetuar a guinlagem de camaco em Ibatira do Tamo Trendo.
Foi o que fez por muitos anos, à frente da banda Sobrinhos do Padre, o veterinário e músico bissexto Roberto Quintão Guerra. “Usávamos essa linguagem em ambiente familiar e com amigos. Nos lugares onde estudei, Viçosa, São Paulo e Belo Horizonte, a gente levava essa tradição”, ele contou.
“Os itabiranos se identificavam e quando tinha um assunto de interesse apenas do grupo, era usada a Linguagem de Camaco para deixar as outras pessoas sem saber o que estava sendo falado”, recordou Roberto Guerra na roda de conversa, depois de cantar a versão da música de autoria de Luís Carlos Paiva (já falecido), Esquina do Juquinha Cabral, traduzida para a linguagem de macaco:
“Cesdendo trouo idia an Cujinha Bacral, iv muna quepena, ique quepena guelal (Descendo outro dia a Juquinha Cabral, vi uma pequena, que pequena legal).” É, portanto, por meio da canção que se deve ter um dos meios para divulgar e fazer com que essa linguagem peculiar do itabirano volte a integrar e a fazer parte do cotidiano das pessoas, até como forma de diversão e resistência cultural.
“Quando falamos em Guinlagem do Camaco reproduzimos o fonema das palavras exatamente como elas são pronunciadas normalmente – seu som, acentos, articulações e (na maioria das vezes) métrica – mantemos a tonicidade sem alterar as acentuações das sílabas”, acentua Nana Mendonça, que recomenda:
“Ensinar línguas através de músicas é um método de aprendizagem tão eficiente – porque memorizamos o som (fonema) das palavras e não necessariamente o seu significado ou a maneira como as escrevemos – e não seria diferente para ensinar guinlagem do camaco.”Nesse sentido, “é preciso fazer com que o itabirano se aproprie da guinlagem do camaco, compreenda o seu valor simbólico de resistência e aprenda a contar sua própria história a partir das suas experiências, ocupando seu lugar de fala e protagonismo”, é o que defende a musicista itabirana.
Dissertação
Com ela concorda o mestre em linguagem de Camacao, o secretário-executivo da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), campus de Itabira, mestre em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Geuderson Traspadini Marchiori. Ele é o autor do livro A Linguagem de Camaco – aquilombamento linguístico, publicado pela editora Letramento.
Em sua dissertação, Marchiori procura identificar e resgatar a memória da reexistência dessa peculiar linguagem de trabalhadores das minas de Itabira do Mato Dentro.
É resultado de pesquisa a respeito dessa manifestação linguística popular entre moradores, mineiros das minas do Cauê e Conceição. “A pesquisa aponta a linguagem como herança de caráter afrodiaspórico”, define o autor em artigo publicado neste site.
“Ao investigar os contextos de uso sob a lente da insurgência decolonial e dos conceitos de língua/linguagem como ação e materialização de tensões e disputas sociais, o estudo aponta a Linguagem de Camaco como espaço de resistência e de protagonismo negros, atribuindo-lhe o valor de aquilombamento linguístico.”
“Além de apontar padrões da formação do vocabulário da linguagem, a pesquisa insere a Linguagem de Camaco no campo das línguas especiais, cuja origem reside na divisão social, e que compreendem as gírias e os jargões, ambos utilizados em situações específicas de adaptação da língua às necessidades de um grupo restrito.”
Para saber mais sobre a linguagem de macaco, essa manifestação de resistência cultural dos itabiranos, acesse também aqui
Linguagem de Camaco, aquilombamento linguístico: uma invenção de resistência dos itabiranos
“Sovê basse lafar guinlagem do camaco?
Carlinhos, essa prosa foi muito boa e proveitosa. Entretanto eu cantei a música do Sobrinhos do Padre e não do Fagner. ( cesdendo trouo idia an Cujinha Bacral, iv muna quepena, ique quepena guelal…)
Abraços
Betão
Corrigido.
senhor redator,
ufa
finalmente
guinlagem de camaco e um invenção genial.
uma manifestação antropológica de resistência social e da maior importância para a história de Itabira, de todo o Matto-Dentro e do Brasil.