Fernando Sabino, Dito e Feito

Fernando Sabino (12.10.1923-11.10.2004) – Foto: Marco Antônio Teixeira/Agência O Globo

Por Fernando Sabino

Foi daqueles trotes caprichados, como usávamos então: credor cobrando dívida, reclamação de vizinho, ameaça de alguma autoridade, simplesmente algum chato, ou coisa ainda pior – não consigo me lembrar.

E ele, a quem telefonei há pouco para refrescar a memória, também não. Eram tantas as brincadeiras…

Só sei que deu para assustar, caí como um idiota. Mestre em disfarçar a voz, também nessas artes ele sempre foi bom. Seu talento não ficou só na poesia, sua imaginação criadora não se restringiu à literatura.

Afinal, vendo o efeito produzido – eu não podia mais de indignação ante a impertinência do interlocutor ao telefone – ele não resistiu e se denunciou, disparando a rir. Acabei rindo também, mas prometi vingança:

– Você não perde por esperar.

– Jamais ouvi falar em trote com aviso prévio.

– Pois será ainda hoje.

Não era fácil; estando ele prevenido, eu tinha de agir de maneira indireta, mediante interposta pessoa. Acabei escolhendo, como inocente útil, alguém de suas relações, também escritor – figura austera, acima de qualquer suspeita, a quem imediatamente telefonei.

Não estando em casa, como eu previra, pedi que lhe transmitissem um importante recado: era Carlos Drummond de Andrade que desejava falar-lhe com a maior urgência, ligasse assim que pudesse. O mesmo recado foi deixado no jornal em que trabalhava, onde ainda não havia chegado, e na livraria que costumava frequentar.

Drummond gostava de disfarçar a voz para passar trote nos amigos pelo telefone (Foto: Reprodução/Acervo Cristina Silveira)

E aguardei os acontecimentos. Não podia falhar, eu cercara por todos os lados. Já imaginava o poeta, pensando que fosse eu, a descompor o outro, que além do mais tinha certa dificuldade de dicção, principalmente ao telefone. Um tanto cruel, no mínimo uma desconsideração para com alguém ilustre e digno, mas ia por conta da insensatez de minha juventude.

Pouco antes de meia-noite, já a expirar-se o prazo estabelecido, liguei para a minha vítima a fim de saborear o resultado da tramoia. Ele a princípio negaceou, dizendo que nada acontecera. O que me deixou encafifado, pois eu tinha como apurar a verdade.

Quando já me dava por vencido, eis que ele me diz secamente que eu havia passado dos limites, envolvendo uma pessoa que merecia mais respeito, aquela brincadeira de mau-gosto – e desligou o telefone. Completamente aturdido, sem saber o que fazer, acabei lhe telefonando de novo, para pedir desculpas. Ele me atendeu às gargalhadas.

O que é de se admirar é que naquela época ele também já era uma pessoa de respeito, escritor famoso, poeta consagrado, glória da literatura brasileira – e, no entanto, com tamanha acessibilidade, bom humor e disposição de espírito para semelhantes divertimentos com um amigo de vinte anos mais jovem.

Pois continua assim até hoje, ele próprio de uma jovialidade que posso diariamente comprovar. E ainda o dizem sisudo, inabordável, fechado em si mesmo – fama advinda possivelmente da sua ojeriza às homenagens e honrarias de que se fez merecedor com a sua obra extraordinária.

E talvez do ar esquivo ao andar pela rua, sempre apressado, braços colados ao corpo, sem olhar para os lados. Mas não se enganem! No filme-documentário que fizemos com ele, conta que esta postura lhe adveio do tempo de colégio: os padres proibiam os alunos de andar balançando os braços.

Os rapazes de uma pensão em frente à qual tinha sempre de passar costumavam mexer com ele: abana o braço, moço, abana o braço! Um dia abanou o braço, mandando uma banana pra eles.

Eu tinha dezessete anos quando me caiu nas mãos um exemplar meio esfrangalhado de um livro chamado Alguma Poesia. Logo depois se seguiu Sentimento do Mundo, que acabava de ser publicado.

Foi um verdadeiro impacto. Quer dizer que poesia podia ser assim? Não precisava ser feita de versos delicados e sentimentais, em geral rimados, para recitativos em saraus literários? Podia usar uma linguagem simples e direta, do dia a dia, com as mesmas palavras que ocorriam em nossas conversas?

A descoberta da poesia de Carlos Drummond, para o grupo de jovens que juntos vivíamos intensamente a paixão pela literatura, significou a maneira mais eficaz de exprimir nossos anseios e inquietações.

Sabíamos seus poemas de cor e nos entendíamos por citações, incorporando seus versos à nossa gíria familiar: perdi o bonde e a esperança, volto pálido para casa, cismando a derrota incomparável, sem nenhuma inclinação feérica, com a calma que Bilac não teve para envelhecer, mundo, mundo vasto mundo, seria uma rima não seria uma solução.

Até que chegou enfim o grande dia: o de conhecê-lo pessoalmente, assistido pela doce presença do poeta Emílio Moura, seu velho amigo e já nosso amigo também. Foi marcado o encontro com ele e nossa turma para um chope no Trianon, bar da moda na época em Belo Horizonte.

Seguiu-se uma semana intensa de encontros diários, nos quais púnhamos em dia a nossa escrita literária. A partir de então, passamos a considerá-lo não apenas o poeta da nossa maior admiração, mas um companheiro mais velho, nosso amigo, nosso irmão.

Depois foi a troca de cartas e de produções literárias, durante anos de uma convivência que só se fez encurtar a distância que nos separava no tempo. Já morando no Rio, acabei seu vizinho e até hoje nos vemos ou nos falamos com frequência, não tanto quanto eu gostaria, mas o suficiente para manter sempre renovada a estima em que o tenho e crescente a admiração que me inspira.

É com essa linguagem um tanto convencional de dedicatória, tão pouco ao seu feitio, que venho saudá-lo de público no dia de seu aniversário. Ela exprime com exatidão o meu sentimento, ao vê-lo, lépido e jovial, no limiar dos 80 anos: o de orgulho por acolher minha amizade e o de gratidão por me haver revelado a poesia.

[Diário de Pernambuco, 31/10/1982. Hemeroteca BN-Rio]

 

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