Fazendeiro do ar, o itabirano (“80 por cento de ferro nas almas”)
Foto: acervo Folhapress
Fui um combatente que não teve sorte na luta imediata, e os combatentes não podem nem devem ser lastimados quando lutaram não por obrigação, mas porque quiseram, conscientemente. (Gramsci, carta a sua mãe, 24/8/1931, Cárcere de Turin).
Em qualquer mês do ano de 1997, eu almoçava com um camarada que havia sido torturado barbaramente na fábrica de tortura e medo estabelecida no tenebroso prédio da rua Barão de Mesquita n. 425, na Tijuca/Rio, lugar onde os militares gozavam o prazer de torturar.
No decorrer do almoço se juntaram a nós dois camaradas do camarada Alcir Henrique da Costa com quem eu compartilhava o rango. Eram três homens velhos de corpos e células cinzentas marcados pelas torturas dos militares golpistas.
Quando encontrei o Ping-Pong entre Geir Campos e o poeta Drummond, lembrei-me do almoço com os véios guerreiros. Um deles relatou o seu martírio: antes da tortura os milicos ensadecidos jogavam ping-pong.
E se o camarada morria das torturas, as bolinhas do ping-pong eram enterredas junto ao corpo violado. Ele sobreviveu às torturas, estava vivo, mas ficou zuado com o som ping-pong, não tolerava, entrava em pânico. Entretanto os três véios disseram que fariam tudo de novo.
Agora eu me pergunto: o que diriam, Geir e Drummond se ouvissem mais essa história ignóbil do Partido Militar na ditadura que teve início em 1964?
(Cristina Silveira, do Jardim plantado da Glória)
Ping-Pong com Carlos Drummond de Andrade
Fazendeiro do ar, o itabirano (“80 por cento de ferro nas almas”)
Drummond publicará em breve, todos os seus poemas num só volume: “Fazendeiro do Ar e Poesia Até Agora”.
Por Geir Campos*
Ping – De onde vem o título Fazendeiro do Ar, para o seu novo livro?
Pong – Os meus antepassados, inclusive meu bisavô, meu avô e meu pai, foram todos fazendeiros em Minas, quando chegou a minha vez, a fazenda havia acabado. Assim sem-terra, considero-me fazendeiro do ar – daí o título.
Ping – Gostaria de perguntar algo, antes de começar a ser perguntado?
Pong – Até parece que sou um candidato à morte, e que você me dá chance de pedir qualquer coisa…
Ping – Preocupa-o a morte?
Pong – Nem sempre.
Ping – E a vida?
Pong – Estamos nela.
Ping – Julga a vida moderna avessa à cultura, às letras e às artes?
Pong – Pelo contrário. Está cheia de sugestões à atividade intelectual, à pesquisa e à criação. Não acredito que o desequilíbrio econômico, a falta de tempo e a tecnização impeçam a vida da inteligência. A arte, por exemplo, nasce quase sempre de um constrangimento e é uma espécie de reação do indivíduo acuado.
Ping – Não receia então um esmagamento da pessoa humana, pela idade técnica?
Pong – Não receio nada, o homem ganha sempre.
Ping – Qual o seu passatempo favorito?
Pong – Infelizmente o tempo passa tão depressa que não posso me permitir esse luxo de fazê-lo passar mais depressa ainda.
Ping – Quantas horas você estuda ou lê ou escreve, por dia?
Pong – Minhas tarefas é que dispõem do meu dia; eu só entro com um coeficiente de preguiça, para corrigir-lhes a tirania.
Ping – Escreve para si mesmo, ou para um público?
Pong – Escrevo para jornal, todos os dias; e para ninguém, algumas vezes.
Ping – Como interpreta a missão do escritor?
Pong – Não lhe atribuo missão alguma, pois não sei de pessoa ou instituição que possa traçá-la. Por outro lado, não creio em missões reveladas.
Ping – A arte não é, então, dirigível?
Pong – Nem tem que dirigir nada.
Ping – Gosta de política?
Pong – O menos possível…
Ping – É fato que já pertenceu ao Partido Comunista?
Pong – Não. Namorei, mas logo vi que o casamento era impossível.
Ping – Nunca pensou em candidatar-se a cargos eletivos?
Pong – Nunca, e no dia em que eu cair em tentação é favor não votarem em mim.
Ping – Já passou grandes períodos de tempo sem escrever?
Pong – Escrever para mim, é fazer poemas e passo meses sem compô-los. Não forço a mão.
Ping – Sabe que é dos poetas brasileiros mais lidos, daqueles cujos os livros se esgotam mais rapidamente?
Pong – Não devo atribuir isso as minhas possíveis qualidades, mas ao esforço com que se tem chamado a atenção para os meus defeitos.
Ping – Qual o primitivo sentido, e como brotou, o seu famoso poema da pedra “No meio do caminho”?
Pong – Já o fiz há muito tempo, e acho que queria dar a sensação de monotonia e chateação, a começar pelas palavras…
Ping – Por que, após as conquistas do Modernismo, sua poesia parece voltar-se para certas formas tradicionais?
Pong – Comecei a perceber que os conquistadores ficam prisioneiros de suas conquistas. De resto, todas as formas de poesia são tradicionais. Restabelecidas algumas que andam esquecidas (as do verso livre), é bom a gente ir praticando também as outras.
Ping – E se lhe oferecessem uma cadeira na Academia de Letras?
Pong – Até agora ninguém ofereceu, mas creio que havia de preferir o sofá de minha velha sala.
Ping – Que pensa das associações de escritores e artistas?
Pong – As de escritores fracassaram, entre nós, por demasiado ambiciosas: desprezando os interesses profissionais, queriam converter-se em juízes do bem e do mal. Quanto às de artistas, não posso avaliar.
Ping – Já ganhou algum prêmio de literatura?
Pong – Dois. Um, de 50 mil réis, num concurso de contos da mocidade; fiquei tão satisfeito que resolvi não concorrer nunca mais, como Gene Tunney, que abandonou o box na qualidade de campeão mundial. O outro foi o da Fundação Felipe de Oliveira, espontaneamente concedido, no valor de 5 mil cruzeiros – isto é, exatamente a mesma quantia vinte anos depois.
Ping – Por que aderiu ao jornalismo e ao rádio?
Pong – Por causa do “plano Aranha”, cujo objetivo é melhorar a situação dos brasileiros…
Ping – Qual o maior problema do nosso país?
Pong – Ainda estamos na idade da fome.
Ping – E o maior problema do nosso tempo?
Pong – E de todos os tempos: aquilo que Alain chamou “a luta do cidadão contra os poderes”.
Ping – Acredita na iminência de uma terceira guerra mundial?
Pong – A segunda já acabou?
Ping – De que modo o impressionam as bombas atômicas e de hidrogênio?
Pong – Não vejo diferença essencial entre elas e as demais armas de guerra. O objetivo é o mesmo, e a propaganda de ambos os lados me impressiona pouco.
Ping – Vê com bons olhos a família como ela é?
Pong – Está na moda proclamar que a família vai-se esfarelando; não creio. Vai-se transformando, apenas, principalmente em seus aspectos civis… Mas é qualquer coisa de profundo, que liga as pessoas independentemente do vínculo legal.
Ping – Você é pelo divorcio ou pelo desquite?
Pong – Pelo divórcio, que é honesto e humano.
Ping – Qual é a sua posição perante a igreja?
Pong – Imagino-a como uma grande força revolucionária. Se ela quisesse…
Ping – Acha que o trabalho enobrece?
Pong – Então somos todos marqueses…
Ping – Como coloca o trabalho do escritor?
Pong – No mesmo plano dos demais.
Ping – Concorda em que a língua portuguesa seja, de fato, um túmulo do pensamento?
Pong – Às vezes é apenas túmulo, sem pensamento dentro, no caso dos maus escritores. Mas é também a lingua de Camões, Fernando Pessoa, Machado de Assis… Não esquecer que há túmulos gloriosos, como o latim e o grego.
Ping – Preocupa-o mais o passado, o presente ou o futuro?
Pong – O passado, como substância de minhas tentativas de poesia e como dado essencial da consciência, como espaço incomensurável em que cabe toda a experiência humana – história, pré-história, vida atual, vida em promessa… Só ele existe realmente, na sua irreversibilidade e ausência de flutuação.
Ping – Conte-nos algo de sua infância e mocidade.
Pong – Ora, deixe o poeta com as suas recordações: para ele, são matéria prima.
Ping – Costuma pôr a poesia em relação com outras artes?
Pong – Todas as artes são comunicantes, embora seus cultores não se comuniquem.
Ping – Você tem muitos amigos, ou apenas colegas e conhecidos
Pong – Tenho alguns amigos verdadeiros, que não mereço e que fizeram bela a minha vida.
Ping – E inimigos?
Pong – Sou o pior deles.
Ping – Gostaria de viver como um Rilke, por exemplo?
Pong – Não adianta viver como Rilke, sem ser Rilke.
Ping – Julga-se feliz?
Pong – A vida não me negou nada, e eu mesmo lhe pedi pouco. Portanto, acho que sou feliz.
Ping – Conte-me a história de algum de seus poemas.
Pong – Era uma vez um sujeito que não sabia fazer versos. Publicou dez volumes de poesia…
*Geir Campos (1924-1999), poeta, tradutor, professor e piloto do Lloyd Brasileiro na Segunda Guerra Europeia. Autor da letra do hino de Brasília. Em 1957, em parceria com o poeta Thiago de Mello, fundou a editora Hipocampo.
[Revista da Semana, ano 54 – n. 37, RJ, 11.9.1954. Hemeroteca BN-Rio]
viva Gramsci.
viva CSL -ou seria CLS-
e CDA nem precisa mais vivar.
manteve-se.