Fazenda e comunidade do Cubango vão desaparecer do mapa para virar pilha de estéril da mineração; sitiante resiste e diz que não sai

Reportagem e fotos: 

Carlos Cruz

“Às vezes me assalta o remorso de, sendo filho, neto e bisneto de fazendeiros, ter contribuído para que morresse a nossa fazenda (…). Cedi a minha parte e fui cuidar das nuvens, no exercício da literatura. Passaram-se os tempos, e a fazenda acabou vendida a uma empresa estatal, que ali instalou uma represa para depósito de rejeito do minério de ferro por ela explorado. (..) Por outra causa não desapareceu a bonita fazenda do Pontal, além da falta de estímulo à atividade no campo, (…) entre tantas fazendas condenadas à morte pelo chamado desenvolvimento.” (Carlos Drummond de Andrade, em A fazenda que desapareceu do mapa, revista Globo Rural, 1985).

Disse um famoso filósofo que a “história só se repete como farsa”, mas em Itabira, repete-se também como violações de direitos. Várias são as comunidades rurais e bairros desalojados pela mineração, antes na forma de desapropriação quando a mineradora Vale era estatal, utilizando-se da “servidão temporária” que é para sempre, um artificio jurídico previsto no Código de Mineração, em nome do interesse maior da coletividade que é a continuidade da atividade extrativista no município.

Foi assim com a fazenda do Pontal, que pertenceu à família do poeta Carlos Drummond de Andrade, “desapropriada” em 1973, uma das primeiras propriedades rurais que “sumiu do mapa”, cedendo lugar à barragem homônima.

Na sequência, no início da década de 1980 foi a vez de desaparecer do mapa a comunidade do Rio de Peixe, para dar lugar à barragem homônima. Pouco depois, sumiu do mapa a parte alta da Vila Paciência, para permitir o “open pit mining “ de Chacrinha, recém adquirida da Acesita.

Rio de Peixe e o seu desaparecimento, em reportagem do Cometa, em novembro de 1979: “Penso às vezes, cruamente, que Itabira vendeu a sua alma à Companhia Vale do Rio Doce” – CDA

No início da década de 1990, foi a vez do Vale do Onça, ou do Hilário, território situado após subir e descer a serra do Esmeril,  também desaparecer do mapa de Itabira. Na ocasião, várias famílias de sitiantes tiveram de deixar uma vida para trás, assim como foram soterrados (ainda que protegidos por uma manta de “bidin” em galerias) os córregos Bangalô e Folha de Bolo, pequenos cursos d’água que abasteciam o córrego Borrachudo, que já foi o principal fornecedor de água para a população de Itabira.

Reportagem do jornal O Cometa sobre a ocupação do Vale do Onça, ou do Hilário, no início da década de 1990, para disposição de material estéril das Minas do Meio

A mineração ocupou com matérial estéril todo o Vale do Onça, mas por pressão do jornal O Cometa Itabirano e do Codema, foi preservada a mata de São José, hoje uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPM), que assim deve permanecer inatingível pela mineração.

Com a saída dos moradores do Vale do Onça, foi formado o maior depósito de material estéril do complexo de Itabira, com pelo menos 1,2 bilhão de toneladas, sem que fossem realizados estudos prévios de impacto ambiental, conforme denunciou reportagem do jornal O Cometa, na edição de novembro de 1993.

RPPM Mata de São José, no Vale do Onça, foi salva da fúria assassina da motosserra da mineração

Novas ocupações territoriais

Nesse novo capítulo de ocupação territorial pela mineração no município de Itabira, antes mesmo de a Vale entrar com pedido de licenciamento ambiental junto à Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), em 2 de agosto de 2023, “visando a regularização ambiental da ampliação das cavas Conceição e Minas do Meio, na modalidade de licenciamento ambiental concomitante (Licença Prévia + Licença de Instalação + Licença de Operação)”, tiveram início os assédios para compra de pequenas propriedades rurais nas comunidades do Turvo, Criciúma, Borrachudo e Cubango.

A ocupação desses territórios é parte dessa expansão minerária, que se tornou possível após a apresentação do novo plano de aproveitamento econômico das minas de Itabira, já aprovado pela Agência Nacional de Mineração (ANM), em 2021,

Muitos moradores ainda nem mesmo foram procurados pela Vale e estão no compasso de espera

O número de moradores que serão atingidos por essa expansão é incerto, uma vez que a Vale sequer fez um comunicado oficial informando à sociedade itabirana sobre essa nova ocupação territorial. Mas são seguramente dezenas de famílias – só no Cubango são pelo menos 54 famílias, a maioria pequenos sitiantes e trabalhadores rurais/diaristas.

Se a Vale privatizada não tem mais a prerrogativa de desapropriar compulsoriamente, as armas coercitivas continuam sendo as mesmas, por meio de forte coação e pressão por se tratar de “interesse público”, como também pela atração econômica junto aos mais vulneráveis, o que certamente provocará mais êxodo rural no município, com os impactos sociais conhecidos. E muitos já venderam as suas pequenas posses, como se observa com inúmeras casas e benfeitorias demolidas.

Placas indicando proriedade da Vale estão em muitos imóveis já desocupados

Resistência

Mas há quem resista a todo esse assédio. É o caso de Antônio Nazareno de Menezes, proprietário do sítio Nazamel. Ele assegura que a sua propriedade rural, que é altamente produtiva e exemplo de agrofloresta em Itabira, situado na parte mais alta da comunidade do Cubango, definitivamente não vai desaparecer do mapa.

“Dinheiro nenhum paga por tudo que construímos com a minha família aqui no sítio, parte herdada do meu pai João Batista de Menezes, além de outras glebas que fui comprando de vizinhos”, conta o sitiante. “Podem cercar tudo com rejeito, que estou protegido pela mata e por estar no alto do morro. Só cobro que preservem a estrada de acesso ao meu sítio, que é um direito de ir e vir que poder econômico algum pode me tirar.”

Segundo Menezes, todas as benfeitorias e melhorias existentes na comunidade do Cubango foram conquistadas com muita luta. “Aqui não tinha energia elétrica, hoje temos, uma conquista de nossa associação. Temos transporte escolar para as crianças que estudam em Ipoema, tudo isso vai ser perdido com o fim da comunidade”, lamenta.

Nazareno com a sua mulher, Maria Dilza Oliveira Menezes: “dinheiro nenhum paga pelo que construímos e preservamos aqui em nosso sítio”.

História

A terra que Nazareno ocupa com a sua família é parte remanescente da antiga Fazenda do Cubango. Pertenceu a Amintas Jaques de Morais, que foi quem trouxe o agrônomo Georg Grünupp para Itabira, fugindo da Alemanha de Hitler, pai de Elke Maravilha. A multiartista, também já falecida, chegou aos 4 anos e viveu até os 14 anos na fazenda. “O pai da Elke alfabetizou o meu pai, que também trabalhava para Amintas, mesmo sabendo pouco do português”, conta o sitiante.

A marca de Amintas na parede lateral da Fazenda do Cubango, onde Elke Maravilha viveu a infância e parte da adolescência

“Amintas vendeu a fazenda para Gonçalo Silveira, que por sua vez vendeu essa parte alta para o meu pai. Herdei uma parte do meu pai e depois comprei uma gleba com muita mata nativa do seu filho Gilson, que reside na Itália. Essa mata permanece intacta com as minhas caixas de abelha, só em uma pequena parte tenho pastagem. É muita história que precisa ser preservada como patrimônio de Itabira”, defende Nazareno.

Mexericas e outras frutas são produzidas no sítio, vendidas na cidade e aos programas de alimentação escolar e assistêncial da Prefeitura

Exemplo de agroecologia, ciência que ele aprendeu convivendo com o médico Mauro de Alvarenga, que cultivava várias plantas em seu quintal em Itabira, Nazareno soube muito bem como tornar a sua terra produtiva.

O sítio Nazamel tem hoje uma produção diversificada, exemplo que deveria servir de modelo de política agrícola para o município de Itabira, que em sua estrutura fundiária dispõe de 1.754 minifúndios e 631 pequenas propriedades, conforme registro no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR).

Produção de cacau no sítio Nazamel: “por enquanto é só para consumo familiar.”

No sítio Nazamel é produzido o festejado mel comercializado em Itabira e na região, além de outras frutas de época, principalmente laranja, mexerica e banana, queijo, cachaça, além de cultura de subsistência.

“Tudo isso é resultado de muito trabalho juntamente com a minha esposa Maria Dilza e com os meus filhos Moisés e Bernardo, como também com os meus irmãos e o meu pai. E não tem preço”, vai logo avisando.

Nazareno é um dos primeiros apicultores de Itabira, foi um dos fundadores do Núcleo Apícola, na década de1980, juntamente com o advogado Paulo Magalhães

Sem informações

Nazareno também se queixa da falta de informações, o que gera clima de insegurança e apreensão que toda essa situação acarreta. “Do nada começou a chegar gente de fora a mando da Vale pedindo para entrar em meu sítio para fazer um estudo ambiental. No início permiti, mas depois vi que estavam coletando material do solo, fazendo perfurações e não gostei. Como nada me explicaram, proibi o pessoal da Vale de entrar em meu sítio.”

Mas o assédio continuou, conforme recorda Maria Dilza. “Uma moça a mando da Vale chegou aqui querendo entrar e me disse que Nazareno tinha autorizado, o que era mentira, pois ele já tinha dito que não ia mais permitir a entrada de ninguém a mando da Vale. Mas ela ficou insistindo, veja que machismo dela, mesmo depois que eu disse que não podia entrar”, conta a sitiante.

Produção de bananas é outra atividade produtiva no sítio. “Aqui  também somos produtores de água, temos várias nascentes e uma bela cachoeira que precisam ser protegidas.”

Compras a conta-gotas

Apesar de todo esse assédio, Nazareno diz que até hoje não foi sequer informado pela Vale, não sabe nem mesmo para qual finalidade a mineradora pretende ocupar o território. Como também não recebeu oferta financeira para a aquisição do seu sítio, que ele diz ser invendível.

“A Vale está comprando primeiro dos mais vulneráveis, muitos já venderam e já deixaram a comunidade”, ele observa, com preocupação. “Em nenhum momento a Vale fez reunião aberta com os moradores”, emenda o sitiante, que faz parte da diretoria da Associação Comunitária do Cubango.

Em resposta a este site, a Vale informa que vem “adotando novos processos e tecnologias em suas operações para diminuir a necessidade de barragens”, daí que estuda “novas formas de compactação de estéril e rejeito, o que implica em uso de áreas e na consequente aquisição de imóveis, não sendo essa uma atividade de extração mineral”, assegura mineradora (leia íntegra da nota da Vale abaixo).

“Somos um dos dos maiores produtores de banana em Itabira”: exemplo de agrofloresta

Divisão em famílias 

“A Vale diz que é uma transação de compra e venda e ninguém é obrigado a vender, como realmente não sou. Mas como a maioria já vendeu, vamos ficar entre o rejeito e as máquinas trabalhando, protegido pela mata no alto da serra”, afirma Nazareno Menezes, que critica a velha tática de dividir para dominar. “Muitas vezes uma pessoa da família quer vender, outra já não quer”, ele observa.

Entre os que já venderam a sua casa, construída em uma pequena gleba de terra da família, está um trabalhador rural, nascido e criado no Cubango, que pede para não ter o seu nome divulgado, que é para não se indispor com os vizinhos que resistem e não querem vender as suas pequenas propriedades.

Esse trabalhador dividia o terreno de pouco mais de 1 mil metros quadrados com mais três irmãos, cada um com a sua casa. “Aqui não tivemos divisão, todos concordaram em vender. A Vale me pagou mais de três vezes o que a minha casa valia e já comprei outra bem melhor em Bom Jesus do Amparo. Lá eu consigo trabalho nas fazendas e o custo de vida é menor”, ele alegra.

Mas mesmo estando satisfeito com o valor recebido, concorda que tem havido muito disse não disse na comunidade.

“O pessoal a mando da Vale conversa com as pessoas separadamente. Muitos estão com medo de perder a venda por um bom preço e receber menos depois, como aconteceu na Vila Paciência. Com isso, apressam a negociação, o que não foi o meu caso”, assegura.

Outra propriedade particular da Vale, essa já à beira da estrada de Ipoema, a 16 quilômetros do distrito

Sem propostas

Muitos proprietários ainda sequer receberam uma proposta oficial de compra. Com isso, muitos deixam de investir na capineira, na formação de pastagem, ou mesmo no replantio de alguma cultura. E assim os residentes na comunidade seguem apreensivos, angustiados sem saber como será o futuro de quem ainda está no território a ser ocupado pela mineração.

“Temos muitos pés de jabuticabas e um pomar formado com muitas frutas, além de muito apego e história aqui. Se todos venderem, deixaremos de ser uma comunidade, daí que vou acabar vendendo se apresentarem um valor justo e que seja vantajoso. Mas vou vender contrariado”, resigna-se um sitiante, que diz manter firmeza nas negociações com a poderosa mineradora.

“O preço de nosso terreno não se mede por hectare, mas pela nossa história e pelas nossas emoções vividas nesse território que para nós é maior que o mundo, a nossa comunidade do Cubango, que infelizmente vai desaparecer do mapa, como a Fazenda do Pontal”, afirma, estabelecendo esses requisitos também como parâmetros determinantes antes de dar início às negociações do seu sítio com a Vale.

Não demora a mineração chega a Ipoema, a 16 quilômetros da última casa demolida para ser ocupada com material estéril

Entidades cobram do MPMG investigações de violações de direitos

Na reunião do Conselho Municipal de Meio Ambiente (Codema), sexta-feira (14), o conselheiro Leonardo Reis, representante da Cáritas Diocesana no órgão ambiental municipal, leu e apresentou uma representação ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

No documeto são relatadas graves denúncias de assédio e violações de direitos nesses territórios que serão ocupados por pilhas de estéril a seco: Cubango, Turvo, Criciúma e Borrachudo. O requerimento ao MPMG é assinado também pelo Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região.

É o caso de o MPMG, à semelhança do que fez o promotor José Adilson Marques em 1985, quando ocorreu a devastação florestal e paisagística da Serra do Esmeril, instaurar inicialmente um inquérito civil público, com base na Lei Federal 4.377/85, para apurar possíveis casos de violação de direitos, protegendo os interesses coletivos e difusos dessas comunidades.

Área a ser ocupada pelas novas pilhas de estéril a seco (Imagem/Google/Reprodução/Comitê dos Atingidos pela Mineração)

No documento, as entidades cobram a contratação de uma assessoria técnica independente para assessorar os moradores dessas comunidades.

E reivindicam a aplicação do que dispõe o artigo 225, parágrafo primeiro, inciso IV da Constituição Federal, para que seja feito o estudo prévio de impacto ambiental, antes de a Vale ocupar esses territórios com mais pilhas de estéril, por se tratar de atividade potencialmente causadora de significativa degradação do   meio ambiente.

Audiência Pública

É o caso de o Codema, Câmara, Prefeitura, sindicatos se unirem em uma só petição, para cobrar do órgão ambiental estadual a realização de uma audiência pública em Itabira antes de aprovar a regularização ambiental da ampliação das cavas Conceição e Minas do Meio, na modalidade de licenciamento ambiental concomitante (Licença Prévia + Licença de Instalação + Licença de Operação).

O pedido de anuência municipal para essa expansão já se encontra no Codema, mas ainda não entrou na pauta para a apreciação e votação dos conselheiros.

Portanto, ainda há tempo legal para que seja requerida a realização da audiência pública em Itabira, pelas implicações que tem essa ampliação para as comunidades diretamente afetadas, como também para toda a sociedade itabirana.

Vale sustenta que aquisições e abordagem dos moradores estão de acordo com a legislação

Em resposta a este site, a mineradora Vale encaminhou nota à redação deste site. Leia a íntegra:

A Vale vem adotando novos processos e tecnologias em suas operações para diminuir a necessidade de barragens e, assim, continuar sua atividade minerária de forma segura e sustentável, com foco nas pessoas e no meio ambiente.

Nesse contexto, tem sido estudada a viabilidade de aplicação de novas formas de compactação de estéril e rejeito, o que implica em uso de áreas e na consequente aquisição de imóveis, não sendo essa uma atividade de extração mineral.

Ressalta-se que todo o processo de aquisição conta com o diagnóstico socioeconômico das famílias e tem sido conduzido de forma transparente, respeitosa e diálogo permanente com as pessoas diretamente envolvidas.

A Vale reforça que o atendimento às famílias está em conformidade com a legislação vigente, normas técnicas aplicáveis e alinhado às diretrizes de padrões internacionais de sustentabilidade.”

 

 

 

 

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1 Comentário

  1. essa desgraça de mineradora é uma miséria só!
    além de empoeirar toda a cidade, beber toda a água potável, agora vai transformar terra agricultável em depósito de lixo
    o Imposto Territorial Rural desta propriedade deveria ser decaduplicado!

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