Entre crianças
Drummond entre crianças, em 1/11/1982 (Foto: Rubens Barbosa/JB)
“Eu pediria à juventude brasileira que, no dia 31, dedicasse algumas horas de leitura à obra de Drummond. Estou certo de que os nossos jovens se sentiriam orgulhosos de ser contemporâneos desse grande poeta e prosador.” (Cyro dos Anjos, escritor, JB, 26.10.1982)
Carlos Drummond de Andrade
Passei quase uma semana entre crianças, e me dei bem. Elas nada fizeram de especial para se tornarem notadas; comportaram-se como crianças. Eu não me atrevi a fingir de criança para cativá-las. E creio que nos entendemos.
Passei longos momentos vendo-as se atirarem à piscina, umas cautelosas, outras experientes e ousadas, todas fazendo da água um elemento natural de suas vidas.
Algumas vinham enroladas em toalhas maiores do que elas, caminhando com tanta naturalidade e segurança que lembravam rainhas envoltas em seus mantos de cauda. Nenhuma tropeçava.
E na água, nadando com maior ou menor desembaraço, borrifando-se umas às outras, rindo e simulando lutas que provocavam mais risadas, viviam o instante perfeito da alegria.
Sem que se soubesse como ou por que, uma liderava as demais, e não era das crescidas. Era das menores. Mas seu jeito imperativo e doce ao mesmo tempo comandava os grupos que se iam formando numa sala, no jardim, na salinha de jantar só de crianças, na “casa de boneca” onde brincavam de donas-de-casa. Tinha um riso que chamarei de rosado, no rosto lindo e rico de expressões renovadas. Mesmo séria, uma espécie de luz interior lhe enfeitava o semblante.
E havia o gordinho louro, ainda inseguro no andar, mas tão decidido nos gestos manuais, que contê-lo se tornava difícil. Sua intenção era atirar à piscina todos os objetos que pudesse pegar; os brinquedos, os chinelinhos, a toalha de banho. Ele mesmo ficava de fora, parecendo consciente da missão de submersor de coisas.
Desse outro a fisionomia naturalmente grave indicava concentração que dá a criança um ar adulto, sem perda de infantilidade. Sentia-se nele alguma coisa de profundo, germinando em silêncio e emoção.
Falava pouco, mas duas ou três perguntas que lhe fiz tiveram respostas reveladoras. Vislumbrei nele o mistério da criação, que um dia, quem sabe? Assumirá forma positiva; artista, homem de ação, homem de ideias. Talvez um jornalista de muito faro?… pensei comigo.
De repente, sumiam todos, a casa entre árvores ficava sendo ilha povoada de adultos, batendo papo, jogando, cochilando. Para onde foram meninas e meninos, que ninguém ouvia um grito cristalino, um riso? E também de repente apareciam aos bandos.
A variação de idades deixava de existir; cada grupo chamava-se infância, em todos os tons e ruídos. E a infância, que eu vejo dispersa, fragmentada, mãe levando pela mão o filho para o colégio, rapaz empurrando tranquilamente carrinho de bebê pela calçada, estava ali reunida, solta, pulando, olhando o sapo, a lagartixa, a borboleta, refrigerante ou boneca na mão, entre enormes troncos recamados de lianas, sob o ar perfumado de flores cujos nomes sempre me ensinam e sempre esqueço, menos as buganvílias, que durante anos conviveram comigo no terraço de uma velha casa.
Flores que se debruçam sobre as águas da cachoeira agenciada pela mão do homem, flores que boiam na correnteza, invadem os muros de antigas construções da fazenda, criam surpresas para a vista no mato circundante. Certas espécies são tão discretas em sua magnificência de formas e coloridos, que para descobri-las é preciso afastar os galhos; lá estão elas, cintilando para ninguém.
Nada melhor do que, estirado na espreguiçadeira, contemplar a integração desse povinho miúdo no quadro intemporal da natureza. Não é preciso falar com as crianças, basta senti-las perto de nossas vidas maduras ou mais que maduras. Se uma delas esfrega os olhos, com sono ou para remover um fio de pestana que a água desviou do lugar próprio, a sensação de escultura em movimento ocorre, nítida.
Mas não são estátuas. São formas naturais e viçosas, como as plantas, as aves, até os bichinhos humildes que transitam infatigavelmente em silêncio, na terra.
Quase diria que elas também, as crianças, apesar de todos os traços urbanos do vestuário e dos costumes, são seres emergentes do húmus (hoje se diz humo, porém eu gosto da forma antiga, que me faz cismar no sonho das transformações vitais).
Amanhã cada um desses brotos da mãe-terra definirá o seu destino, e a vida diversificada, remodela as pessoas. Naqueles momentos que passei junto de crianças, eram todas, na aparente multiplicidade de linhas e tamanhos, uma única e fascinante visão da aurora de dedos róseos.
[Jornal do Brasil (Rio), 11/11/1982]