Em sua 27ª edição, Mostra de Cinema de Tiradentes provoca discussões sobre tempo e identidade cultural
Longa Mostra Praça – Saideira
Foto: Leo Lora/ Universo Produção
No segundo ano de realização presencial depois da crise pandêmica, a Mostra de Cinema de Tiradentes conclui a 27ª edição reafirmando ser o espaço do grande encontro do cinema brasileiro contemporâneo.
Se em 2023 houve um misto de entusiasmo e esperança pelo retorno, em 2024 diversas discussões foram retomadas e avançadas, permitindo vislumbrar rumos instigantes ao setor, tanto em termos de conteúdo a serem realizados quanto em encaminhamentos institucionais que o ajudem a avançar economicamente.
O 2º Fórum de Tiradentes foi o espaço perfeito dessa conjugação, na medida em que ele reuniu dezenas de profissionais de várias áreas durante boa parte da mostra para verem filmes brasileiros e discutirem políticas públicas.
A presença de Margareth Menezes, ministra da Cultura, foi significativa dentro de um contexto de retomada de ações – ainda em movimento, com muito a se resolver, mas numa caminhada constante.
“Devemos ter a tranquilidade de defender o que somos. A diversidade cultural brasileira não é um problema, é uma solução, uma saída”, disse Margareth Menezes, em referência à reconstrução do Ministério da Cultura em 2023, após mais de seis anos que a pasta fora extinta por governos anteriores.
“Nós precisamos garantir a continuidade da pasta, não podemos arriscar que ela fique indo e voltando dessa forma”, salientou a ministra.
A secretária do Audiovisual, Joelma Gonzaga, que esteve em diversas atividades da mostra, relembrou ações da pasta no último ano, com a mais recente sendo a sanção da cota de tela, anunciada pelo governo federal em 15 de janeiro.
A “batalha legislativa” do momento, como frisou Joelma Gonzaga, são as negociações para regulamentação do VOD (video on demand). “Estou praticamente fazendo um doutorado em política legislativa para resolvermos isso no primeiro semestre”, comentou.
O ex-ministro da Cultura Juca Ferreira exaltou a importância de regulamentar as plataformas de conteúdo, especialmente por ser o Brasil um dos maiores mercados de consumo desses canais.
Ferreira considera que desvincular a indústria local da exploração das grandes plataformas de streaming é uma defesa da soberania nacional.
“Não tem nada mais decolonial nesse momento na política cultural brasileira que a regulamentação desses ‘players’, o que irá proteger a nossa autonomia”, disse.
“O momento é de disputa para garantir a saúde do mercado brasileiro e garantir o desenvolvimento do nosso audiovisual. Ele precisa ser uma questão nacional e virar política de Estado”, complementou.
É o que diz também a Carta de Tiradentes, divulgada pelos integrantes do Fórum ao final dos trabalhos e que apontava o atual momento como algo que “ainda exige mobilização e resiliência, mas também serenidade, imaginação e sobretudo capacidade de fabular novos modelos”.
Para a curadora Tatiana Carvalho Costa, retomar esses processos é essencial para trazer de volta à visibilidade expressividades que, segundo ela, foram abafadas pelas crises políticas e econômicas da última década no país.
A curadora revelou ter sentido, nas inscrições de filmes do festival, a ausência de realizadores e realizadoras que chamaram muita atenção em anos anteriores na mostra e não retornaram com novos trabalhos.
“Cadê os filmes dessas pessoas? Eles não existem porque depois de 2018 esses profissionais foram paralisados por um governo contra a cultura e foram fazer seus corres. Imaginem o que foi esse estrago”.
Imaginação e salvação
A ideia de imaginação e novos modelos, contida na Carta de Tiradentes, vem ao encontro da homenagem da mostra em 2024 ao cineasta André Novais Oliveira e à atriz Barbara Colen. A dupla mineira foi intensamente celebrada durante toda a semana, em bate-papos ou em filmes exibidos nas várias sessões.
Ao falar do amigo e sócio André Novais, por exemplo, o diretor e roteirista Maurílio Martins o apontou como “um gênio do cinema brasileiro contemporâneo” e se emocionou ao dizer que o vislumbra “como um verbete incontornável da história do cinema nesse país”.
Já Barbara foi apontada como um talento visceral no cinema e na TV por sua presença cênica magnética e os projetos nos quais assume entregar corpo, voz e expressões. “Eu percebi meu lugar nesse universo (da interpretação) e senti que devia trilhar esse caminho”, afirmou.
Boa parte dos filmes da dupla homenageada refletia a temática desse ano, “As formas do tempo”, que convidou a refletir sobre como o cinema brasileiro – incluindo nisso não apenas os filmes, mas toda uma cadeia produtiva de trabalhadores do setor, que formam um dos maiores PIBs do país – lida com as exigências modernas de produtividade, velocidade e eficiência.
O cineasta Kleber Mendonça Filho, ao comentar o que ele chamou de “processo artesanal” na feitura de seus trabalhos, disse que o tempo precisa estar a favor do artista, sob risco de a obra falhar enquanto expressão.
“Um filme precisa do tempo que lhe for necessário para ele ser feito”, comentou, reconhecendo que a forma como vem se dando os processos de produção não permitem a muitos realizadores lidarem, aos seus modos, com o tempo.
O cineasta Neville D’Almeida, aos 83 anos, participou de um debate conceitual e, na sua fala, recuou a 1895, ano da primeira exibição pública de um filme, para pontuar que, não tendo ainda som, palavras ou músicas, as imagens em movimento dependiam de expressões e olhares.
“O que define esses elementos e quais sentimentos devem ser transmitidos sempre foi o tempo. O olho da surpresa, o olho da poesia, do amor, do desejo, surgia pelo tempo”, disse Neville. “O tempo vem de decisões existenciais, sempre em busca do sentimento que se quer transmitir. É uma questão de linguagem, de criação e invenção”.
A mostra Aurora, espaço de experimentações e novos olhares, reuniu em 2024 um conjunto de filmes que, aos seus modos, tratavam de tempo. Fosse o tempo das ações em tela, assim como o tempo decorrido da sensação de se relacionar com cada título, foi interessante perceber o quanto cada um dos trabalhos se imbuiu, consciente ou não, de lidar diretamente com as muitas formas do tempo.
A gravidez de uma atriz em “Eu Também não Gozei”, o cotidiano de uma ilha de pescadores em “Lista de Desejos para Superagüi”, a rotina do trabalho em “Maçãs no Escuro”, a nostalgia nada inocente do punk em “Not Dead”, as experiências íntimas e sexuais em “Eros”, a jornada ao abismo de uma jovem garota em “Sofia Foi” e as memórias registradas e resgatadas em “O Tubérculo”: em cada um deles, uma temporalidade específica, que demandava também do espectador criar seu próprio tempo.
“A temática não foi pensada só a partir da estética e linguagem dos filmes, mas também de como eles adotaram a imaginação como sustentação para seus processos intimistas de aproximação com aquilo que filmaram”, disse Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial da Mostra.
Com esse espírito de novidade e renovação, a 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes se encerrou, apresentando um painel vigoroso do que deve ser um ano histórico para a produção no país.
Ainda há muito a ser percorrido, como foi constatado nos Grupos de Trabalho do Fórum de Tiradentes, mas a caminhada está em pleno andamento, os cineastas estão sedentos por se expressar e o público tem enfim despertado para a importância do cinema brasileiro como política, representação e identidade cultural.
Nisso a Mostra de Cinema de Tiradentes tem grande responsabilidade, por ser esse espaço que, há quase três décadas, ilumina caminho e é palco de passagens marcantes dessa história.
Sobre a Mostra de Cinema de Tiradentes
Maior evento do cinema brasileiro contemporâneo em formação, reflexão, exibição e difusão realizado no país, e chega a sua 27ª edição, ocorrida de 19 a 27 de janeiro de 2024, em formato online e presencial.
A mostra apresenta, exibe e debate, em edições anuais, o que há de mais inovador e promissor na produção audiovisual brasileira, em pré-estreias mundiais e nacionais – uma trajetória rica e abrangente que ocupa lugar de destaque no centro da história do audiovisual e no circuito de festivais realizados no Brasil.
O evento exibe 145 filmes brasileiros em pré-estreias nacionais e mostras temáticas, presta homenagem a personalidades do audiovisual, promove seminário, debates, a série Encontro com os filmes, oficinas, Mostrinha de Cinema e atrações artísticas.