“EM BUSCA DO MEU LANCO-MONDAINE PERDIDO’
– Arqueologia possível de mais uma fotografia na parede. Texto dedicado à memória do itabirano Robinson Damasceno dos Reis
Lúcio V. Sampaio
ENTÃO FIQUEMOS absolutamente convencidos do seguinte; basta fixarmos atentamente à fotografia em questão (abaixo, acima ou ao lado deste texto) e logo nos apercebemos que realmente se trata, sem a menor sombra de dúvida, de uma “cena” datada precisamente do ano de 1923 (há 94 anos, portanto), nem mais e nem menos. Quanto ao mês e dia desse tão inusitado flash, torna-se quase impossível apontar com exatidão, mas tudo indica que, por entre claros e sombras, foi espocado (quase por um milagre!) em uma estival tarde de outono tipicamente itabirana, entre abril e maio, por aí, isso pela sua visível e inebriante luminosidade. Fica também evidente que a autoria de tal foto é da lavra do grande latinista e fotógrafo amador Brás Martins da Costa, o legendário Ti’Brás, conforme era tratado pelos mais chegados.
ISTO POSTO, chama imediata atenção até dos mais distraídos, a cortina preta (possivelmente, um surrado chitão confeccionado pela hoje falida fábrica têxtil que funcionava ali no bairro Gabiroba), que serviu literalmente de pano-de-fundo para a composição de tão rústico cenário, embora se revele uma certa atmosfera de senhorial nobreza, compondo assim em sua totalidade, uma instigante e original “gestalt”… Há de se chamar atenção do esópico leitor que me honra, na parte superior à direita da foto, uma possível “falha” (se bem a considerarmos como tal), quando notamos que o referido pano preto que serve de fundo não conseguiu encobrir toda a extensão daquele espaço, mas isso devido ao desnível do alicerce construído com madeirames de lei, proveniente – com certeza – da Fazenda do Pontal.

MAS VAMOS LOGO ao que nos interessa aqui. Todo mundo deste vasto mundo já está careca de saber que os personagens (chamemo-los assim, com mesóclise e tudo), antevistos em tão precioso flagrante são quase todos eles professores (autênticos mestres do saber! Luminares da virtude! Faróis do progresso! do extinto Ginásio Sul-Americano, nesta Itabira do Matto-Dentro, com exceção de um ou dois, como veremos adiante. E atentem agora para um fato verdadeiramente incontestável: todos eles, absolutamente todos que compõem tão raro instante, já estão eles devidamente mortos e enterrados neste exato momento em que escrevo este texto ou que você, amigo leitor, esteja lendo, isso não é mesmo verdade? Pois é, então prossigamos…

SEM MAIS DELONGAS, vamos aos nomes daqueles que estão de pé, da esquerda para a direita: podemos observar o primeiro deles, elegante em seu terno claro, doutor Altivo Drummond de Andrade – sim, irmão mais velho do próprio. Em sóbria postura, mãos cruzadas à frente, já transparece o brilhante advogado que foi, além de ter sido pai do saudoso Virgílio dos Santos Andrade. Logo a seguir, apresenta-se o professor Alfredo Sampaio – um avô baixinho e bigodudo que tive há muito e muito tempo – e que é hoje senão nome de rua aqui no bairro Pará. E a figura seguinte, alguém se arriscaria? Claro que se trata do nosso Poeta Maior, com seus oclinhos à la John Lennon, já lançando moda naquele tempo. O baixinho que vem a seguir, de gravata borboleta, meio de banda, mirando seu olhar em imprecisa direção, nada mais é que o afamado Totoque (senhor José Eduardo Moreira), professor de artes musicais no citado estabelecimento de ensino, considerado por muitos como o Rei do Violino de Itabira, enquanto exercitava suas cordas febris em itabiranas noites claras e sem mulheres, conforme também nos informou o poeta. No centro da foto aparece a figura fardada de quepe e tudo, conferindo à cena autoridade e respeitabilidade, embora não exercesse qualquer cargo naquela casa do saber, do tenente Minervino Bethônico, olhar fixo na câmara do Ti’Brás, hoje também mais um nome de rua, lá pros lados do Capim Cheiroso.
SURGE, DE REPENTE, o senhor João Gonçalves Araújo Lima, conhecido como João III (leia-se, Terceiro), por toda a sociedade itabirana, revelando uma testa que me lembrou muito a do geólogo e amigo Nandin Duarte Gonçalves, que, a propósito, há muito não o vejo – prometo aqui pesquisar tão relevante detalhe genético. Logo ao lado aparece João de Oliveira Torres, o sô Lolão da farmácia localizada bem no coração da cidade, em cuja bodega realizava, sob suas longas barbas, experimentos químicos e alquimias diversas. Após ele, é vez de sô Raul de Alvarenga, que não lecionava no referido educandário, mas era irmão mais novo do então diretor – e, como ele estava de bobeira no momento em que Ti’Brás chegara com seu pesado aparato fotográfico, por ali mesmo ficou. Encerrando a fila dos sem-cadeiras, notamos a figura muito bem apessoada diga-se, no cantinho à direita, portando visível corrente de seu relógio cebolão preso ao ventre, do médico Raimundo Duarte, tratado por sua vasta clientela por Doutor Deco.
É IMPORTANTE AGORA mirarmos nas duas cadeiras de espaldar de palhinha e do sofazinho de três lugares ao centro da foto: tiveram de colocar calços aos seus pés, para acomodar os restantes sentados… Bem, da esquerda para a direita, primeiramente, nos deparamos com o farmacêutico Trajano Procópio da Silva Monteiro, à época o digníssimo diretor daquela casa de ensino. Ao seu lado, avistamos a primeira figura feminina, de alva elegância, a senhora Rosa Amália de Andrade, de soslaio olhar, educada e formada nos vetustos educandários da desde então centenária cidade de Barbacena. Agora, de braços cruzados, pernas idem, sapatos admiravelmente lustrosos, se insurge com um olhar em direção aos longes, o médico doutor José de Grisolia, pai do futuro prefeito Daniel, que leva o seu nome à rua onde hoje mora a minha amada Suely. Somente isso lhe confere preito e respeito de todos nós.
SEGUINDO ÀS NOSSAS VISTAS, observamos agora outra mulher: dona Saíta (sem sobrenomes, por favor), educada, como sua já citada colega, também em Barbacena (a cidade das rosas, como se vê), na foto com seu vestido de largas golas, oito botões de branco marfim, colarzinho de pérolas, meias brancas encobrindo seus pezinhos e sapatinhos pretos, empoeirados, balançando-os sobre o chão, como se estivesse evitando tocá-lo; ah, jamais conseguirei descrever com a riqueza de detalhes necessária tudo que (pré) vejo nessa fotografia que revelou-se na “piscina do tempo”, como disse em outro verso o Poeta Maior.
Chegamos, finalmente, ao último dos figurantes, sentado como se estivesse indiferente ao que se passava ao seu redor, dirigindo seu olhar para o lado oposto às lentes de Ti’Brás, indicando assim – sem querer – uma possível outra cena que aqui não se vê à mostra. Trata-se do ex-padre João Borges, brancos cabelos, já um velho senhor nesse instantâneo , que, após ter desistido de seu celibato e se despido das vestes sacerdotais, tornou-se professor de geografia, preocupando-se muito mais com as coisas terrena e afluentes do que propriamente com os desígnios do céu.
ENCERRO, mais uma vez, essa viagem que não termina jamais.
(1917)