Drummond para principiantes
Galeria antropofágica (1974), óleo sobre Madeira, de Márcio Sampaio
Foto: Reprodução
Carlos Wagner
Uma cidade de Minas, Itabira, e o sentimento do mundo escrevem os versos deste homem, que consegue sorrir para a vida aos 60 anos, depois de ter dito um dia, em sua juventude, que ela não presta: três décadas de distância e de acontecimentos não riscaram a província do mapa da memória, nem diminuíram o seu amor pelos homens, que lhe querem dar, agora, em retribuição, o Prêmio Nobel de Literatura.
Oito livros de poesia e cinco de prosa, que são a experiência e a confissão de quem amou, desamou, sofreu, brigou e viveu, dirão aos sábios da Academia Sueca quem é ele. Antes, porém, que conheçam este mineiro tímido, que convive com as forças líricas do mundo e aprendeu com elas a suportar a dor de existir, tentemos penetrar o misterioso reino de sua poesia. Mas quem é Carlos Drummond de Andrade?
Trinta e oito anos de poesia, desde o primeiro livro, Alguma Poesia, até o último, Lição de Coisas, elevaram Carlos Drummond de Andrade à categoria de um personagem fundamental da história da literatura brasileira.
Em todas as antologias literárias a sua presença se tornou indispensável, porque o verso deste poeta é um documento do nosso tempo, o retrato da evolução lírica de um artista identificado com os problemas e as angústias do homem moderno.
Hoje, Drummond é um marco poético do Brasil: todas as pesquisas se fazem a partir da sua obra, ponto de referencia para o que é novo e o que é velho em literatura. Até a poesia concreta se alimentou dele, para tentar a experiência do espaço na palavra escrita.
Paralelamente, Drummond assiste ao nascimento de grupos e tendências com a severidade de um artista consciente que, depois de dominar a linguagem e a estética pode abandonar as pesquisas formais para arquitetar um poema.
Em meio ao caos das teorias literárias e das rebeldias intelectuais da juventude, o poeta reflete, para evoluir sem concessões, subordinando a sua arte a uma perspectiva geral do homem e das coisas que o cercam.
Carlos Drummond de Andrade descende da linhagem literária de Machado de Assis: o escritor que, na criação, não consegue escapar à análise do seu tempo, nem à confissão de amor (ou desencanto) pela humanidade.
A influência de Machado é marcante na obra de Drummond, que nunca escondeu por ele uma admiração total; mas enquanto no primeiro o humor se revelou no fim da vida, depois de meio século de pessimismo, no poeta de hoje ocorreu o contrário: o piadista de 1930 foi cedendo lugar, pouco a pouco, ao homem consciente que buscava a autodefinição, um estilo de verdade, até chegar ao esteta quase clássico do fim da carreira.
Penetrar o universo drummondiano é uma experiência fascinante que iniciará o leitor na busca, nos objetivos e em todo o desenvolvimento do movimento modernista da poesia brasileira.
Mas para conhecer a obra é preciso, antes, conhecer o homem – o itabirano que mora em Drummond e em toda a sua poesia, que governa seus passos na cidade de quatro milhões de habitantes e suas ideias diante da máquina de escrever. É impossível compreendê-lo sem este dado fundamental que o acompanha pela vida afora, livro a livro, poema a poema, como um selo, na forma e no conteúdo.
No seu livro de estreia – Alguma Poesia –, lançado em Belo Horizonte em 1930, Carlos Drummond de Andrade expõe em verso as pesquisas poéticas da juventude, sob a influência do convívio com o grupo mineiro do modernismo: Abgar Renault, Gustavo Capanema, Milton Campos, João Alphonsus, Emílio Moura, Aníbal Machado.
Ele recolhe, aí, as impressões da infância e começa a denunciar o observador da vida e de sua inutilidade, a ironia tentando esmagar a timidez. E começam também as confissões do poeta, desde o primeiro poema:
Quando nasci / um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos ser gauche na vida… / Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.
Quatro anos depois, Brejo das Almas amplia o universo lírico do poeta, mantendo, porém, a tônica do riso, da piada e do desprezo aos padrões acadêmicos, e engajando-se definitivamente na onda modernista.
Ele já havia então aprendido a lição e o lema de Mário de Andrade, o papa da renovação: escrevia para o povo, na linguagem do povo, sem se importar com a exigência estética do passado, que alienava a literatura.
De vez em quando, porém, o jovem irreverente estaca e cede lugar ao poeta sensível que pouco a pouco se descobre em Drummond como neste Soneto da perdida esperança: Perdi o bonde e a esperança / Volto pálido para casa. / A rua é inútil e nenhum auto / passaria sobre meu corpo.
Em 1940, a realidade da guerra provoca em Carlos o choque social. Ele sente então a necessidade da participação e encontra o sentimento do mundo: Os camaradas não disseram / que havia guerra / e era necessário / trazer fogo e alimento. / Sinto-me disperso, / anterior a fronteira / humildemente vos peço / que me perdoais.
As tensões se aguçam, e o poeta preocupa-se cada vez mais com elas. A Rosa do Povo marca o inconformismo sociopolítico com relação aos acontecimentos. Aí surge, com uma nova carga lírica, o artista comprometido com o seu tempo, numa revelação que, segundo um de seus amigos íntimos, Gustavo Capanema, permaneceria por toda a obra de Drummond:
O povo para ele é objeto de angustiosa preocupação, é objeto de constante amor, com seus assuntos, seus problemas, seus sofrimentos de cada dia. É o povo que inspira esta confissão participante: O poeta / declina de toda responsabilidade / na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, instituições, símbolos e outras armas / promete ajudar /a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta, / um verme.
O após-guerra opera a mais importante transição na poesia de Carlos Drummond de Andrade. O seu elã revolucionário se retrai, ante as marchas e contramarchas da guerra-fria, e o poeta se contamina pelo tédio dos acontecimentos.
Um novo livro – Claro Enigma –, que trouxe como epígrafe um verso de Valéry (Les événements m’ennuient – Os acontecimentos me aborrecem –) sela definitivamente o divórcio de Drummond com a poesia política e dá a medida do autor realizado, do artesão que domina o “métier”, numa nova perspectiva das coisas, onde o mais importante é a interpretação do mundo e a purificação da forma verbal.
Carlos sente então, nesse estágio, a presença e o peso da idade: Escurece, e não me seduz / tatear sequer uma lâmpada. / Pois que aprouve ao dia findar / aceito a noite. / E com ela aceito que brote / uma nova ordem de seres / e coisas não figurados. / Braços cruzados.
Em Claro Enigma está, sem dúvida, o melhor Carlos Drummond. O Drummond, por exemplo, de Os Bens e o Sangue, cuja perfeição estilística o coloca ao lado dos maiores poemas já escritos em língua portuguesa. Aí se denuncia o eterno fazendeiro do ar, o filho e neto de fazendeiro que renunciou ao ouro e ao gado para ser funcionário público e contemplar a nuvem.
A cronologia da obra de Drummond é marcada por alguns poemas que assinalam a sua evolução, através das diversas fases por que passou o poeta, e que, por isso, se tornaram importantes para o leitor que pretende iniciar-se no lirismo Drummondiano.
O mais famoso deles é, talvez, No Meio do Caminho, por causa das controvérsias que provocou, em consequência dos ataques dos setores acadêmicos resistentes ao modernismo de 22:
No meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.
Atrás dos 60 anos se esconde o jovem anarquista.
Mais tarde, surgiu o José, que se popularizou no dia em que um réu [ver também E agora, José? Na Vila de Utopia em 4/11/2017] o declamou no Tribunal do Júri, em Belo Horizonte, depois de ser absolvido de um crime de morte que agitou a opinião pública da Cidade.
O poema, que pôs na boca do povo uma interrogação transformada em lugar-comum – E agora, José? – suscitou uma série de interpretações e seu personagem central foi atribuído, sem confirmação, a um irmão de Carlos residente em Belo Horizonte. A Confidência do Itabirano (em Sentimento do Mundo) transformou Itabira num retrato na parede e declarou a condição metálica do poeta:
Alguns anos vivi em Itabira / Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Na fase participante, um poema dramático: Morte do Leiteiro, que revela ao leitor a humanidade escondida sob a capa de rispidez do poeta. Um leiteiro é assassinado por engano pelo dono da casa, que ouviu barulho na madrugada e achou que fosse ladrão. E “ladrão se mata com tiro”.
O fim do poema é um dos momentos mais altos da poesia brasileira: “Da garrafa estilhaçada / no ladrilho já sereno / escorre uma coisa espessa / que é leite, sangue… não sei / Por ente objetos confusos, / mal redimidos da noite / duas cores se procuram, / suavemente se tocam, / amorosamente se enlaçam / formando um terceiro tom / a que chamamos aurora”.
A Mesa(1951) é um álbum de família em versos. O poeta se senta com os pais e os irmãos para comemorar as bodas paternas, e descreve um por um ao leitor, que assiste à cena como se estivesse presente ao banquete, em companhia dos Andrades, na sua fazenda de Itabira.
Claro Enigma, a fase de reflexão filosófica, onde Carlos atinge a plenitude da forma, é também um balanço do passado: “Amar o perdido / deixa confundido / esse coração /. Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não. As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão./ Mas as coisas findas, / muito mais que findas, / essas ficarão.
Em Lição de Coisas, o último livro, o poeta sente-se de novo ofendido pelos acontecimentos e volta provisoriamente à participação, para explicar a bomba atômica e manifestar a sua esperança de que o homem a derrotará:
“A bomba / é uma inflamação no ventre da primavera / A bomba / não permite a ninguém o luxo de morrer de câncer / A bomba / é câncer / A bomba / é um cisco no olho da vida, e não sei / A bomba / é miséria confederando milhões de misérias / A bomba / tem um clube fechadíssimo / O homem / (tenho esperança) derrotará a bomba.”
Todas as manhãs, um itabirano naturalizado carioca veste o short e vai bronzear-se ao sol de Copacabana: depois de 30 anos de serviço público, que não lhe davam tempo para almoçar e jantar em casa, Carlos Drummond de Andrade é hoje um aposentado tranquilo que se pode dar ao luxo do banho de mar, como um exercício preparatório para a criação literária na tarde livre.
Na praia cheia de gente, o poeta se dissolve entre milhares de banhistas, como um esportista prosaico, sem medo de ser reconhecido por alguém. Depois de um mergulho, ele volta para casa e se tranca na sua fortaleza para escrever a crônica diária, consertar um poema, traduzir alguma coisa.
A aposentadoria no Ministério da Educação e Cultura, que lhe valeu um elogio do ministro Oliveira Brito, deu ao poeta aquilo com que ele sempre sonhou: tempo para criar. E Carlos trabalha dia e noite no meio de seus livros, sem nunca ir para a cama antes de uma ou duas horas da madrugada.
No seu mundo de palavras, versos e histórias do cotidiano, Carlos Drummond de Andrade é uma caixa de surpresas para quem só o conhece pelas informações e tenta penetrar na intimidade do poeta. A personalidade esquiva de Drummond criou a impressão de que se trata de um homem “com noventa por cento de ferro na alma”, herança, talvez, do subsolo itabirano.
Ele é, de verdade, um poeta triste, tímido e avesso ao diálogo: fala pouco e, quando fala, gagueja um pouco. Mas o aparente gelo que envolve Drummond e suas relações com o mundo se derrete mais depressa do que se esperava, ou antes, o interlocutor descobre que não havia gelo nenhum, mas um simples mito.
A descrição de um irmão, José, no poema A Mesa, caberia melhor a ele próprio: “Feroz a um breve contato, / à segunda vista, seco, / à terceira vista lhano, / dir-se-ia que ele tem medo / de ser, fatalmente humano. / Dir-se-ia que ele tem raiva, / e que sábios, ardilosos / recursos de se enganar / quanto a si mesmo: exercita / uma força que não sabe / chamar-se, apenas, bondade”.
Carlos é assim mesmo: da secura inicial, ele evolui para a conversa, e daí para a amizade franca. Por ocasião de seu último aniversário, um jovem escritor de Belo Horizonte, Márcio Sampaio, enviou-lhe um poema-saudação em louvor dos 60 anos do poeta.
A resposta de Carlos Drummond a Márcio é uma prova da humanidade que esconde sob a sua aparente frieza:
Meu caro Márcio Sampaio:
Itabirano não é de escrever cartas; a omissão epistolar constitui mesmo uma de nossas mais caras tradições. Por isso, você não terá estranhado o meu silêncio. Eu mesmo é que me censuro por ele. Recebi em tempo sua carta e seu poema, deram-me alegria, e formulei um agradecimento íntimo, que pedia carta, expressão verbal.
Fui adiando, na esperança de dizer melhor um dia o que senti com o seu gesto de cordialidade poética. E os dias se passaram. Antes que passe o ano, aqui estou para lhe agradecer de qualquer jeito, ou mesmo sem jeito, como também é do nosso estilo itabirano, a mensagem de simpatia e compreensão que a sua juventude me enviou.
Você tem razão em achar que fazer 60 anos é bastante chato, mas enganou-se supondo que fez comigo uma afetuosa “maldade”. A compreensão de chegar a essa idade um tanto exagerada consiste em transformar lembranças melancólicas em vivências felizes, em recriar a vida à força de lucidez e serenidade.
Assim, o que você fez foi de verdade uma coisa boa, proporcionando-me um passeio através do tempo, da terra natal e de mim mesmo. Tudo palpita e ensina uma graça misteriosa, nesses momentos. E o passado não existe como tal, é uma das franjas do presente. Estamos vivos, estou vivo e agradecido a você. Sinceramente.
Com os melhores votos de uma bela carreira, o abraço amigo de Carlos Drummond de Andrade.
As crônicas de Drummond revelam um outro ângulo surpreendente da sua personalidade: o do homem que, fechado no seu universo particular, está, apesar disso, em convívio direto com os fatos e os acontecimentos do mundo.
Sempre muito bem informado – ele sabe de tudo – o poeta abandona a sua torre de marfim quando pratica a prosa diária no Correio da Manhã: quem lê as coisas que o cronista C.D.A. escreve no jornal observa logo que a poesia não alienou o repórter que mora em Drummond.
A rotina carioca, as doçuras e as amarguras do cotidiano numa cidade que ainda não perdeu a alegria de viver, apesar da dureza da vida, a boemia intelectual, misturadas com lembranças da infância, de Itabira, de Belo Horizonte, tudo isso está projetado nas crônicas do poeta.
É tudo isso que ajuda a formar uma ideia acerca do homem que as escreve: o homem que declarou um dia, em verso, que a vida é uma coisa besta, mas que, no fundo, ama o ato de viver – e, amando-o ama também a humanidade.
Alterosa (MG), Março de 1963 [Hemeroteca da BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]
O mais famoso dos poemas, ‘No meio do Caminho’, completa neste ano 100 anos, porém sua 1ª publicação data de 1928