Drummond e a tradição cultural e humanística de Itabira
O artigo Memória de uma diversificação fracassada em Itabira com recursos públicos, assinado por Carlos Cruz (leia aqui), deixa cismados os Tutu Caramujo – aquelas pessoas que têm a Cidadezinha na alma. O drama da exaustão das minas e o pensar o futuro da Cidade é uma repetição amarga, uma cauêite crônica.
A mineradora impõe a política do medo para calar a voz do povo. A Prefeitura, a Câmara e as associações de classe até agora foram incapazes derefletir “a cisma” e historicamente têm-se revelado incompetentes para criar perspectivas de futuro.
A penúria das universidades é derrota desmedida. Quem-Dera a Serra do Cauê estivesse intacta, salpicada de asas delta, parapentes e no seu entorno centenas de escolas. O que fica é a força das palavras, a luta com as palavras que o jornalista Carlos Cruz “cisma” diariamente na Vila de Utopia. E o seu xará, o poeta Carlos Drummond que fez a Lira Itabirana, também sempre fez a sua parte, como se observa no texto abaixo, publicado originalmente na edição conjunta de O Passarela e Folha de Itabira, abril de 1975. (Cristina Silveira).
A tradição cultural e humanística de Itabira
Carlos Drummond de Andrade
No começo do século XIX, o naturalista francês Augusto de Saint-Hilaire, que foi, sob certos aspectos, um novo descobridor do Brasil, por ele percorrido em boa parte e estudado em sua flora, fauna, minerais, costumes e instituições, chegava no modesto arraial de Itabira do Mato Dentro, ainda dedicado à mineração de ouro em declínio, mas já voltado para a industrialização primária do ferro. O sábio viajante foi recebido pelo capitão Manuel José da Silva Pires, e a este assim se refere em um de seus livros:
“O Capitão me acolheu com essa polidez e amabilidade que eu vinha encontrando sempre da parte dos mineiros. Era homem instruído e fino; sabia o seu latim e o seu francês. (…) E sobre metalurgia, dispunha de conhecimentos mais vastos do que em geral possuem os mineradores brasileiros.”
Pires não era o único homem culto do lugar. O padre ali residente “entendia muito bem o francês, e causou-me admiração pelo conhecimento que tinha de nossa literatura. Encontram-se habitualmente na região muitas pessoas que compreendem bem a nossa língua, não obstante os meios limitados de que dispõem para aprendê-la” – acrescente Saint Hilaire, discipulo de Goethe.
Em 1848, a vila torna-se cidade, e é empossada a primeira Câmara Municipal de Itabira. Seu presidente eleito, major Paulo José de Sousa, revela descortino fora do comum. No discurso de posse, coloca o ensino primário na linha de matéria prioritária, em relação as demais que devem preocupar o governo da comunidade.
Dele, no seu entender, dependerá o próprio sentimento cívico do povo, expresso no respeito à Constituição do Império. Só depois virão os assuntos especificamente municipais, como estradas, pontes, agricultura. Declarando que ninguém cede a preferência nos “sentimentos americanos”, afirma com visão de homem público: “Seremos livres; faremos honra ao solo americano e então veremos arvorado e auriverde pavilhão brasileiro, já reconhecido no Capitólio de Washington”. No remoto coração de Minas, desabrochava a consciência.
Cidade e povo que contam em sua tradição exemplos desta ordem, podem reivindicar o privilégio de acionar uma experiência educacional de natureza abrangente e diversificada. O espírito que anima a verdadeira cultura inspira-se em valores como estes: a abertura generosa e cativante, que soube distinguir no estrangeiro de passagem uma das grandes figuras da ciência do seu tempo; o interesse pela informação linguística e literária, tão vivo em meio aparentemente inclinado apenas a atividades materiais de rude expressão; o pensamento cívico não paroquial, mas amplo, e abrangendo a realidade do mundo e das concepções políticas que pode, modelar a sociedade livre e pacífica. Em suma, o sentido humanístico, em suas formas tocantes e puras de afirmação social. Estes são alguns títulos de Itabira à consagradora investidura de Cidade Educativa.
[In: Cidade Educativa, uma edição conjunta de O Passarela e Folha de Itabira, abril de 1975 – 200 anos de Itabira]