Dona Rosinha lança seu primeiro livro no 5º Flitabira e emociona o público com memória viva, humor e ancestralidade

Em destaque, Fabiano Piúba, Conceição Evaristo, Dona Rosinha e Luana Tolentino

Fotos: Carlos Cruz

Obra nasceu após visita da escritora Conceição Evaristo ao Quilombo Morro de Santo Antônio e celebra a escrevivência como ato de liberdade

Na noite dessa quinta-feira (30), o teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade foi tomado por uma emoção rara: o lançamento do livro Memórias do Meu Quilombo, de Dona Rosinha, líder comunitária do quilombo Morro de Santo Antônio.

Foi um dos momentos mais comoventes, até aqui, do 5.º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira). O festival teve início na quarta-feira (29), com uma programação que ocupa a cidade de Drummond com literatura, arte e reflexão – e segue até domingo (2).

A mesa de prosa com Dona Rosinha contou com a presença da escritora Conceição Evaristo, do gestor cultural Fabiano Piúba e da educadora Luana Tolentino, que mediou o encontro com reverência e afeto.

Uma visita que virou livro

Conceição Evaristo classificou o poder da escrita como ato de resistência: “Para nós que viemos das classes populares, escrever é uma audácia”.

A ideia do livro nasceu de um gesto simples e poderoso: Conceição Evaristo visitava o Quilombo do Morro de Santo Antônio, em novembro de 2023, quando Dona Rosinha lhe mostrou um caderninho com histórias escritas à mão.

“Ela estava com o caderno, falando da vida. Quando li, vi que ali havia um eu coletivo. A história dela é a história do povo, é a nossa história”, contou Conceição. Tocada pela força da escrita, a autora se ofereceu ali mesmo para escrever o prefácio. “Era como se eu estivesse prefaciando um texto meu.”

Conceição também refletiu sobre o poder da escrita como ato de resistência: “Para nós que viemos das classes populares, escrever é uma audácia. Nós tomamos a vida a pé e a corpo, e tomamos também a escrita assim: a pé e a corpo.”

A partir daquele encontro, com o apoio de Vinícius Sousa, filho de Dona Rosinha, e da editora Palas, o livro tomou forma. “Foi uma ponte de afetos e bibliodiversidade”, disse Fabiano Piúba, que articulou a publicação junto à editora. “Que bom termos no Brasil uma editora como a Palas, que acolhe vozes como a de Dona Rosinha.”

Dona Rosinha e Conceição Evaristo: memória, afeto e escrevivência em diálogo

A voz que atravessa

Dona Rosinha participou da mesa com sua calma habitual, com a humildade de quem ainda está se acostumando com a ideia de ser escritora.

“Tudo que eu não senti antes, estou sentindo agora. É uma honra, uma coisa que eu jamais imaginei acontecer na minha vida”, disse. Com bom humor, contou que escreve desde jovem, em cadernos guardados com carinho. “Quando eu estava triste, eu escrevia. Quando estava feliz, eu escrevia. Tudo era motivo para escrever.”

Ela revelou que, depois de publicado, leu o livro várias vezes. “Eu ficava olhando e pensando: como que a nossa história virou um livro? Para mim, é pequeno, mas é grande. Vai ficar aí, eterno.”

Em um dos momentos mais tocantes da noite, Dona Rosinha leu uma carta escrita em letras miúdas — uma das muitas que escreveu para seu filho Vinícius ler quando crescesse.

Leu em voz alta, transformando sua leitura solitária em leitura solidária. “Sou o que nós somos”, disse, evocando a filosofia africana do Ubuntu e emocionando o público.

Uma novela de formação e liberdade

Público atento e encantado acompanha o lançamento de Memórias do Meu Quilombo: uma noite de escuta, afeto e amizade

Memórias do Meu Quilombo é uma espécie de novela com 16 histórias entrelaçadas, que podem ser lidas de forma linear ou como contos autônomos.

As vidas narradas por Dona Rosinha se entrelaçam com as de Dona Tita, Maria Bernadina, Maria Luísa, Tio Joaquim, Tia Josefina, Tio Caetano, Dona Azulte, Maria do Quartinho, seu pai e sua mãe, de quem guarda poucas lembranças – seu esposo e, sobretudo, seu filho Vinícius. O amor maternal por ele transborda por entre as páginas.

São essas pessoas que habitam a escrevivência de Dona Rosinha e passam a conviver com o leitor, como se o coração de todos também voltasse para o lugar: o quilombo, o Quilombo Morro de Santo Antônio, reportado neste livro pelas memórias e pelo sentimento das palavras. “Sua literatura é um ato de liberdade”, disse Luana Tolentino, citando Paulo Freire.

Felicidade também é memória

“Tudo que eu não senti antes, estou sentindo agora”, disse Dona Rosinha, falando da felicidade que virou livro

Ao final da mesa, Dona Rosinha foi convidada a compartilhar uma memória de felicidade. Ela falou dos velórios e casamentos no quilombo, marcados pela união comunitária.

“A dor era grande, mas ficava mais leve com todo mundo junto. Hoje tudo é rápido, não dá tempo nem de sentir a perda di ente querido. Eu tenho saudade disso”, disse. Também relembrou os casamentos com reza, garrafão, igreja sem luz e lamparinas. “Era bonito demais.”

O que diríamos às meninas Rosinha e Conceição?

Família de Dona Rosinha: Vinícius, a nora, a neta Ana Luísa e familiares celebram o lançamento com orgulho e emoção

Na última pergunta da noite, Luana Tolentino quis saber o que as duas diriam às suas versões meninas.

Conceição respondeu: “Talvez o que nos salvou foi a curiosidade. A infância, apesar da carência, preparou nossa sensibilidade para continuar na vida.”

Dona Rosinha lembrou de Raimunda, figura materna que dizia que ela veria os filhos casando e correria com os netos. “Ela não viu, mas tudo aconteceu como ela disse. Hoje, com Ana Luísa (sua neta), eu corro, brinco, vivo. E agradeço a Deus por tudo.”

Ao final, Luana Tolentino se despediu com carinho. “Parabéns, Dona Rosinha. Que orgulho poder estar nessa mesa com a senhora. Que orgulho da Ana Luísa. Que orgulho de todas nós.”

Uma fila que não acabava

Fila de autógrafos: leitores aguardam para receber de Dona Rosinha a assinatura que eterniza a memória do quilombo em livro

Após encerrado o lançamento e homenagem, Dona Rosinha se dirigiu à livraria instalada na avenida Daniel de Grisolia, em frente ao Centro Cultural, para os autógrafos.

Foi a fila mais longa de todas que se formou no festival até agora. Moradores do quilombo Morro de Santo Antônio, gente da cidade, visitantes de Itabira e de tantos outros lugares aguardavam com o livro nas mãos e comovidos, muitos com lágrimas nos olhos.

Cada assinatura era também um afeto, um reconhecimento, um gesto de carinho. A escrevivência de Dona Rosinha já não era só dela — era de todos que ali estavam e de outros muitos que terão a oportunidade de ler as Memórias do Meu Quilombo, de Dona Rosinha.

Drummond, 123 anos: o poeta-maior é celebrado hoje em sua cidade natal

Nesta sexta-feira (31), Itabira e o Flitabira celebram os 123 anos de nascimento de Carlos Drummond de Andrade — o poeta que fez da sua cidade natal um território universal da palavra.

Drummond é du mond, como ele próprio brincou. E Itabira também é do mundo, pelo minério de ferro que ajudou a derrotar o nazifascismo e impulsionou a reconstrução de países no pós-guerra, mas sobretudo pela poesia que brotou de suas montanhas e atravessou fronteiras.

A programação especial desta noite festiva inclui a mesa Drummond, o neto e o jornalista, com Pedro Drummond, neto do poeta, e o jornalista Edmilson Caminha, além de outras atividades que homenageiam a obra, o pensamento e o legado do autor de A Rosa do Povo.

O festival segue até domingo (2), com encontros literários, lançamentos, oficinas, saraus e shows.

Drummond vive. E Dona Rosinha também. Em Itabira, a palavra tem raízes profundas. E continua florescendo.

Serviço

5.º Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira

Data: De 29 de outubro a 2 de novembro, quarta-feira a domingo

Local: Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e avenida lateral.

Entrada gratuita

Toda a programação é transmitida online pelo Youtube @flitabira

Acesse a programação completa em www.flitabira.com.br

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