Distante como um vizinho

João Sabali*

Quem se lembra do primeiro outono da primeira quarentena sabe: aquilo foi uma licença poética. Me refiro aos pores do sol daquele primeiro outono, naturalmente.

Foi quando eu vi aquela cena que a minha ficha caiu. A família da frente rezando à mesa antes de comer. E se abraçando depois de jantar. Primeiro, um abraço coletivo, com os quatro.

Depois, cada um se abraçando um por vez. Primeiro, o tipo de abraço que só se vê em vestiários segundos antes de uma final de campeonato. Depois, o tipo de abraço que só vê em réveillons. Eu nunca tinha sequer visto essas pessoas. Pelo menos não antes do início da primeira quarentena.

  1. a) eles só começaram a jantar junto agora
  2. b) eles só começaram a criar a liturgia em torno do jantar agora
  3. c) eu só reparei agora

Não importa. Seja lá qual for a alternativa correta, só aconteceu por causa dela, a mãe de todas as hipóteses, dúvidas e certezas: a quarentena.

A mãe deve ter uns 40, o pai uns 45 e os dois filhos uns 15. A mãe tem cabelo preto, é alta e usa óculos. O pai é grisalho, barba sempre feita. Tem cara de radialista e pique de investidor. A mãe tem cara e pique de diretora de colégio particular. Dos filhos, nada se vê além de duas silhuetas adolescentes – eles sempre se sentam de costas pra mim. A família mora no último andar do prédio que dá de frente pra minha varanda. Eu também moro no último andar, então a gente mora bem perto. O clima parece bom, os filhos é que põem a mesa. Daqui da minha sala consigo fazer conclusões desse tipo.

Depois de um tempo reparei que os pais também liam trechos da Bíblia antes de jantar. Os filhos devem achar essa parte uma merda, mas não demonstram. Escutam com respeito os pais, que se esforçam pra falar da Bíblia não pela ótica do sermão, mas sim pela ótica daquilo que a bíblia pode ensinar de prático pra uma vida melhor, a filosofia por trás de Cristo, aquela coisa toda. Os pais se revezam, cada dia um lê um trecho e o pai sempre senta na ponta. Aí eles rezam, comem, abraço-vestiário, abraço-réveillon e se separam. A luz se apaga. E onde antes eu conseguia ver a família e seus ritos, agora só vejo o pálido reflexo da tv do meu vizinho de baixo. Foi quando eu fui fumar na varanda e vi essa cena é que a minha ficha caiu.

E lá vamo nóís. Entrar na merda do instagram de novo.

Eu tava jogado no sofá branco encardido de casa. Grudado com fita crepe em cima da minha cabeça, um papel redondo e preto, com uma frase num branco gasto: A origem de todos os problemas da humanidade está na inabilidade do homem em ficar sentado, sozinho e calado em uma sala. Bem, aqui estou mais um dia. Em uma sala. Sozinho. Em silêncio. E mais que sentado: largado. Mas Pascal, autor da frase, que morreu há 358 anos, não tinha como prever o instagram e seus astutos atrativos. O stories, por exemplo. O stories, acima de tudo e dentro de todos.

Print de gatinho resgatado, uma criança pousando ao lado da foto da sua tia quando criança escrito em caixa-baixa-azul elegantemente descentralizada “será que puxou a tia?”. Propaganda de cerveja otimista, print do print do print da frase laranja:

genuine deep connections are sacred

um vídeo de dentro do carro filmando uma estrada lilás no pôr do sol de uma rodovia no interior de São Paulo, influencer de máscara recebendo e agradecendo delivery, propaganda da Casa do Restaurador. Já é de noite e agora o meu rosto vai se iluminando em cores que se transformam na velocidade do meu dedo. De repente meu rosto fica roxo. E permanece nesse brilho roxo porque eu vi um stories que me fez brecar a correnteza da pororoca de telas sem freio. A frase azul clara fonte neon em cima do fundo roxo dégradé tá me dizendo: E de ré, o bus do progresso é conversível.

Fecha aspas. A inabilidade em ficar sozinho e fechar o bico e os olhos nos colocou dentro desse ônibus ultra confortável, que recua recua e recua diante do menor sinal de futuro. Isso se mañana realmente é uma palavra adorável que provavelmente significava paraíso, como Sal Paradise – e toda a Humanidade – queriam que fosse.

O instagram é uma desgraça, mas é também a rede social mais popular do mundo. Esse texto que eu li na terça-feira dizia que o instagram é também a rede social mais poética de todas.

Cada post é uma moldura. Se você estiver disposto, o instagram vai te jogar na cara que a vida, no final das contas, é sim deslumbrante. Linda de doer. E o instagram joga na cara que essa beleza tá nas miudezas do dia a dia. O bebê, o almoço, a folha da árvore iluminada pelo sol.

Todos os clichês do instagram. Se você estiver disposto, vai ver que, por trás da vaidade e da insegurança, o que sobra do instagram é de uma beleza opressora.

Até a vaidade e a insegurança podem ser lindas. Tudo é livro. Até a vaidade e a insegurança podem ser lidas. Tudo é lindo. Selfie is beautiful. Cada post é uma moldura. A vida é arte.

Instagram é o museu. Que merda que fase, duvidoso igual à crase.

Mas nos dias nublados era embaçado hein. Se o primeiro outono da primeira quarentena trouxe pores do sol espetaculares, ele também o trouxe o frio. Friaca memo. Dá vontade de dormir o dia inteiro, bixo. E com o céu é assim: se tá nublado não tem pôr do sol porra nenhuma. Vocês que se virem. Hoje não tem pintura abstrata gigante no horizonte. Lidem com o fato do dia estar acabando sem aquela compensaçãozinha estética que vocês adoram. O dia tá acabando. Você tá acabando. O mundo tá acabando. La vida és dura. Pronto. Já é de noite, parecia dizer Deus naqueles fins de tarde nublados do primeiro outono da primeira quarentena. Já é de noite e você nem chorou. Taí. Mais um título pruma música que eu nunca vou escrever,

Cê vai gostar dessa.

Meu amigo João me mandou pelo whatsapp o link de um vídeo do youtube de um professor de nome Renan Inquérito. O Renan estava em uma faculdade de Coimbra declarando o resumo da última aula do Boaventura em forma de poema. A tantas ele falava: teu algoritmo te conhece mais que teu banheiro.

Então.

Depois de assistir o vídeo, levantei e fui fumar um cigarro na varanda do meu apto. Era o primeiro outono da primeira quarentena. Ventava. Um tempo atrás, toda vez que eu ia tomar uma cerveja com alguém, em dado momento da noite eu perguntava: como você explicaria pra alguém o que é o vento? Eu reservava aquele segundo entre o primeiro baseado e a quinta cerveja – aquele milésimo de segundo em que suas ondas cerebrais estão no limiar do ápice – pra fazer a pergunta. A reação era sempre uma risada merecidamente incrédula. Aqui na varanda do último andar venta muito. Mas como você desenharia o vento? Mas e se não pudesse desenhar uma árvore ou um montinho de feno rodopiando em uma rua laranja e vermelha do velho oeste? Não vale. Tem que ser só o vento.

Um fenômeno invisível da natureza. Quão esdrúxulo é o vento? [nota pra edição escocesa: traduzir essa pergunta como: how badass is that? Vocês disseram que eu tinha direito a uma exigência, aí está].

Uma palavra que é uma ideia. Que só existe quando faz balançar a árvore e seus galhos tristes.

Se o vento não encosta, ele não existe. Mesmo que ele esteja lá. Invisível até que se prove o contrário. Na época cheguei a pensar em fazer um insta só com esses desenhos do vento, mas ninguém nunca desenhou.

A gente não dá valor suficiente pro vento. Nem pro pôr do sol. Se isso aqui que eu to vendo acontecer atrás de Pirituba… se isso acontecesse a cada 50 anos eu estaria de sunga, embriagado, com meus melhores amigos em algum lugar longe da capital. Estaria ligando pros meus pais. Estaria distribuindo abraços-vestiário e abraços-réveillon. Isso se esse fenômeno que acontece uma vez em toda sua vida não calhasse de acontecer bem no meio de uma pandemia.

Mas tirar fotos eu posso.

Do pôr do sol, tiro algumas. Anoitece. Continuo fotografando com o celular, vou pro sofá, me estico. Posto uma das que eu tirei. Posto a foto do ritual da família.

Boto meu cérebro pra passear pelas histórias dos outros. Até que aparece um stories patrocinado. É azul a luz que emana da tela e ilumina algumas reentrâncias do meu rosto, deixando as demais reentrâncias na mais profunda escuridão.

Finco o dedo na tela. Aquela merda chamou minha atenção. Não dizia o nome da empresa, só a frase: Sua quarentena. Do seu jeito. Letra prateada, fundo azul. No centro, a silhueta de dois adolescentes do mesmo tamanho. Arrastei aqui pra ver mais. Me deslizaram prum site que parecia dirigido pelo Kubrick.

Na home, a silhueta simétrica e perfeita do stories reaparece no logo que diz ALDISS. Na seção QUEM SOMOS, o texto os definia como pandemic customizers. Um dos serviços tinha o nome de seeding. Embaixo das letras s e e d i n g em azul marinho negrito, vinha o texto em itálico marinho. Não é porque a pandemia atinge a todos, que todos são atingidos da mesma maneira. A solidão gera ansiedade. A solidão matou mais que o vírus. E, num tom de vaga ameaça: Teve mais morte por suicídio do que por morte por infecção. Família on demand.

Do seu jeito. Na hora que você quiser. Baterias e religiões inclusas. 0% Orgânico! 100% Corona-free. Highly-abraçável.

 “Já é de noite e você nem chorou”

 Já é de noite

e você nem chorou.

Viu?

Já tá escuro

e você até sorriu.

Eu

Já vou tarde

Meu trem já partiu

Ou

Isso é um convite pra ficar?

É tão mais fácil quando tem o pôr do sol

E você pode me contar dos seus problemas

e

se quiser

Me incluir nos seus programas

A todo instante

Todo dia

Tanto faz

Só que acontece

Que não amanhece mais.

<refrão>

Já é de noite

e você nem chorou.

Viu?

Já tá escuro

e você até sorriu. 2x

Eu

Já vou tarde

Meu trem já partiu

Ou

Isso é um convite pra ficar?

*João Sabali é jornalista e escritor de São Paulo (SP).

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4 Comentários

  1. Mistura da resenha poética de frases,
    com a luz bebida no por do Sol do
    autor…apesar dos ventos.
    Você vive imensos momentos com
    a caneta…continue se feliz te faz.
    Do amigo que te admira.(Ricardo)

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