Direitos da Natureza: uma nova perspectiva jurídica para o equilíbrio ecológico
Chapada Diamantina, Lençóis, Bahia
Foto: Carlos Cruz
Por Reinaldo Dias*
Introdução
A emergência de crises ambientais globais, exacerbadas por décadas de exploração desenfreada dos recursos naturais, catalisou um movimento jurídico inovador: o reconhecimento dos Direitos da Natureza (RoN).
EcoDebate – Essa abordagem procura estabelecer uma relação jurídica equilibrada e respeitosa entre a humanidade e o meio ambiente, reconhecendo entidades naturais como sujeitos de direitos.
Este artigo, embasado em obras recentes, explora a eficácia e os desafios dessa abordagem, bem como seu potencial para transformar o paradigma legal contemporâneo em uma ferramenta mais efetiva de conservação ambiental.
Os Direitos da Natureza reconhecem que ecossistemas e formas de vida têm direitos, como os seres humanos. Essa visão busca um equilíbrio entre o bem-estar humano e planetário, promovendo a interconexão de toda a vida na Terra.
Em vez de tratar a natureza como propriedade, essa abordagem lhe atribui o direito de existir, regenerar e manter seus ciclos vitais. As pessoas têm a responsabilidade de proteger esses direitos, agindo legalmente em defesa dos ecossistemas.
Culturas indígenas, que veem a natureza como parte integrante da vida, tradicionalmente respeitam essa visão. A abordagem tradicional dos sistemas jurídicos de tratar a natureza como propriedade permitiu a exploração e degradação ambiental.
Em contraste, países como o Equador e algumas comunidades nos EUA estão inovando ao incorporar os Direitos da Natureza em suas leis, desafiando a noção de natureza como propriedade e promovendo sua proteção como entidade com direitos (GARN, 2023).
A Ascensão dos Direitos da Natureza
A iniciativa de reconhecer os direitos inerentes à natureza, destacada por Tracy & Breen (2023), que mencionam países como Panamá, Equador e Bolívia que lideraram essa mudança, reconhecendo oficialmente os Direitos da Natureza em suas legislações nacionais, reflete um movimento crescente que busca estender proteções legais a ecossistemas, animais e plantas, comparáveis às garantias legais humanas.
Esse movimento, segundo ELF (2023), ganhou impulso significativo com a adoção pioneira desses direitos na constituição do Equador em 2008, seguida por iniciativas semelhantes em vários países.
A globalização desse movimento é evidenciada pela criação de legislações que reconhecem os direitos dos ecossistemas hídricos e outros elementos da natureza em diferentes partes do mundo, como observado no relatório da ONU (2023) que menciona vários exemplos de ecossistemas aquáticos que estão sendo governados ou foram protegidos através de modelos legais baseados nos Direitos da Natureza.
Como exemplo, temos a Reserva Marinha de Galápagos (Equador), Reserva Ecológica Manglares Cayapas Mataje (Equador), Rio Whanganui (Nova Zelândia), Atrato River (Colômbia), Magpie River (Canadá), Mar Menor (Espanha), entre outros.
Nesse relatório a ONU destaca que se busca dimensionar o impacto globalmente e para que se possa conseguir a sua implementação efetiva, para alcançar uma transformação permanente na governança dos ecossistemas aquáticos em benefício da Natureza e das comunidades.
Pesquisa realizada por Putzner et al (2022) identificarem e analisaram 409 iniciativas em 39 países de Direitos da Natureza e chegaram à conclusão de que esta é uma tendência substancial, global e duradoura para uma relação humana não antropocêntrica com a Natureza.
Implementação dos Direitos da Natureza no Brasil
A implementação do conceito de Direitos da Natureza no Brasil, embora represente um avanço significativo na legislação ambiental, enfrenta desafios notáveis que evidenciam as complexidades inerentes à sua aplicação prática. Exemplos em Rondônia e Mato Grosso ilustram tanto o potencial transformador quanto os obstáculos significativos encontrados.
Em Rondônia, a legislação pioneira reconhecendo o rio Laje como um ente vivo e sujeito de direitos marca um avanço histórico, refletindo um crescente movimento global pela proteção dos ecossistemas e a promoção da biodiversidade (Oliveira, 2023).
Contudo, a implementação efetiva desses direitos enfrenta o desafio de integrar a nova legislação às práticas existentes de gestão de terras, uso de recursos e desenvolvimento infraestrutural, muitas vezes dominadas por interesses econômicos fortes e arraigados.
Em Mato Grosso, a situação em Cáceres destaca a tensão entre os avanços legislativos em favor dos Direitos da Natureza e as forças contrárias que operam no contexto político e econômico local. A aprovação inicial de uma emenda que reconhecia a natureza como portadora de direitos representou um momento de celebração para os defensores do ambiente.
No entanto, a subsequente revogação dessa decisão sob pressão dos setores agropecuários ilustra claramente as dificuldades enfrentadas na manutenção de compromissos ambientais diante de interesses econômicos poderosos (Esquer, 2023; Fonseca, 2023).
A experiência de Cáceres é particularmente reveladora, demonstrando como a adoção de leis ambientais progressistas pode ser rapidamente minada por pressões políticas e econômicas.
A revogação da emenda, justificada por alegações de inconstitucionalidade e impulsionada pela oposição dos ruralistas, sublinha o desafio de equilibrar direitos ambientais com as demandas do desenvolvimento econômico e as realidades políticas locais (Fonseca, 2023).
Esses casos evidenciam que, apesar do reconhecimento jurídico dos Direitos da Natureza oferecer uma nova e promissora direção para a conservação ambiental, sua implementação efetiva requer uma abordagem que considere cuidadosamente as complexas dinâmicas sociais, econômicas e políticas envolvidas.
Repercussão Internacional
O direito internacional historicamente enxerga o mundo natural como um elemento passivo, valorizando-o principalmente por seu potencial de ser apropriado e possuído. A “natureza” só ganhou relevância nas fundações do direito internacional quando foi vista como um recurso disponível para apropriação, transformando-se em propriedade e integrando-se ao comércio.
Contudo, nos últimos quinze anos, uma mudança significativa ocorreu com a incorporação dos direitos da natureza ou da personalidade jurídica de entidades naturais em várias constituições nacionais, legislações locais e decisões judiciais ao redor do mundo.
Exemplos significativos incluem as Constituições do Equador, Bolívia e Panamá, decisões judiciais na Colômbia, Bangladesh e Índia, e legislações em Uganda, Nova Zelândia e Espanha (Gilbert et al, 2023).
A Nova Zelândia reconheceu o rio Whanganui como uma entidade viva, com direitos próprios, uma decisão que reforça a importância de proteger os ecossistemas aquáticos como fundamentais para a biodiversidade e para o bem-estar humano (ELF, 2023).
Na Índia, a atribuição de direitos ao rio Ganges representa um esforço para combater a poluição e preservar a importância cultural e espiritual do rio para milhões de pessoas (Tracy & Breen, 2023).
Essa evolução reflete uma reação à crescente degradação ambiental e seus impactos na sociedade, destacando uma urgente e crescente demanda por novas abordagens eficazes para a proteção ambiental (Gilbert et al, 2023)
Desafios e Perspectivas Futuras
A implementação efetiva dos Direitos da Natureza enfrenta obstáculos significativos. Gilbert et al. (2023) destacam a lacuna existente no direito internacional, que ainda não reconhece plenamente os Direitos da Natureza, tratando-os como uma inovação jurídica essencial para a preservação ambiental no longo prazo.
A necessidade de uma legislação internacional mais verde é urgente, para ampliar e sustentar as mudanças positivas já observadas em níveis nacional e local.
A ONU (2024) reconhece o início de uma evolução em direção ao reconhecimento dos direitos inerentes da Natureza, mas enfatiza a necessidade de ampliar e aprofundar essa abordagem para garantir um impacto global mais substancial.
Cormac Cullinan, destacado advogado ambiental da África do Sul e influente na criação da Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra durante a Conferência Mundial dos Povos na Bolívia em 2010, defende a adoção de uma perspectiva similar a do Equador, que incorporou os direitos da Natureza em sua Constituição, para enfrentar a crise ecológica global.
Ele argumenta que uma “jurisprudência da Terra” poderia revolucionar as bases dos sistemas jurídicos, econômicos e políticos atuais, mudando o foco da dominação humana e exploração da Terra para um modelo de coexistência harmoniosa e respeitosa com todos os seres, incluindo os não humanos.
Cullinan reconhece os desafios na implementação dessa mudança, mas acredita que ela poderia abordar as causas raízes das crises ecológicas e sociais atuais. Essa abordagem não só contribuiria para a proteção de rios, oceanos e aquíferos contra a mineração destrutiva, como também ajudaria a preservar ecossistemas aquáticos críticos de exploração por interesses privados (Robbins, 2022).
Impacto nos Direitos Humanos e na Justiça Social
A adoção dos Direitos da Natureza também tem implicações profundas para os direitos humanos e a justiça social. Ao reconhecer a natureza como um sujeito de direitos, abre-se caminho para uma justiça ambiental mais inclusiva, que considera as necessidades das comunidades indígenas e locais, frequentemente as mais afetadas pelas crises ambientais.
Esse enfoque se alinha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, promovendo uma abordagem holística que integra a proteção ambiental, os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável (ONU, 2023; ONU, 2024).
Conclusão
A trajetória dos Direitos da Natureza, desde sua concepção até sua implementação em diversas jurisdições globais, reflete um esforço coletivo para redefinir a relação da humanidade com o meio ambiente.
Essa abordagem jurídica inovadora não apenas oferece um caminho promissor para a conservação ambiental, mas também reforça a interconexão entre justiça social, direitos humanos e sustentabilidade.
À medida que mais países e comunidades reconhecem e implementam os Direitos da Natureza, abre-se um novo capítulo na luta global pela justiça ambiental e pela preservação da biodiversidade para as gerações futuras. Oliveira, V. (2023)
Referências
Environmental Law Foundation – ELF (2023) The rights of nature: a new era of environmental protection. https://elflaw.org/news/natures-voice-the-rise-of-the-rights-of-nature-in-the-legal-system/
Esquer, M. (2023) Cidade de Mato Grosso aprova projeto que reconhece direitos da natureza. O Eco. https://oeco.org.br/noticias/cidade-de-mato-grosso-aprova-projeto-que-reconhece-direitos-da-natureza/
Fonseca, C. (2023) Sob pressão de ruralistas, vereadores de Cáceres (MT) desistem de ‘direitos da natureza’ dados à cidade. Folha de São Paulo, 21 ago 2023. https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/08/sob-pressao-de-ruralistas-vereadores-de-caceres-mt-desistem-de-direitos-da-natureza-dados-a-cidade.shtml
Gilbert, J., Macpherson, E., Jones, E., Dehm, J. (2023). The Rights of Nature as a Legal Response to the Global Environmental Crisis? A Critical Review of International Law’s ‘Greening’ Agenda. In: Dam-de Jong, D., Amtenbrink, F. (eds) Netherlands Yearbook of International Law 2021. Netherlands Yearbook of International Law, vol 52. T.M.C. Asser Press, The Hague. https://doi.org/10.1007/978-94-6265-587-4_3
Global Alliance for the Rights of Nature – GARN (2023) What are the Rights of Nature? https://www.garn.org/rights-of-nature/
Oliveira, V. (2023) Direitos da Natureza: movimento ganha força no Brasil e no mundo diante da crise ambiental global. Um Só Planeta. https://umsoplaneta.globo.com/biodiversidade/noticia/2023/06/28/direitos-da-natureza-movimento-ganha-forca-no-brasil-e-no-mundo-diante-da-crise-ambiental-global.ghtml
ONU (2023). Rights of Nature: A Catalyst for the implementation of the Sustainable Development Agenda on Water. Department of Economic and Social Affairs: Sustainable Development. https://sdgs.un.org/partnerships/rights-nature-catalyst-implementation-sustainable-development-agenda-water
ONU (2024) Rights of Nature Law and Policy. Harmony with Nature. http://www.harmonywithnatureun.org/rightsOfNaturePolicies/
Putzer, A., Tineke Lambooy, Ronald Jeurissen & Eunsu Kim (2022) Putting the rights of nature on the map. A quantitative analysis of rights of nature initiatives across the world, Journal of Maps, 18:1, 89-96, DOI: 10.1080/17445647.2022.2079432
Robbins, S. (2022) ‘Rights of Nature’: A fundamental challenge to the world as we know it.Daily Maverick. https://www.dailymaverick.co.za/article/2022-01-06-rights-of-nature-a-fundamental-challenge-to-the-world-as-we-know-it/
Tracy, B & Breen, K.(2023) Legislation that provides nature the same rights as humans gains traction in some countries. CBS News. https://www.cbsnews.com/amp/news/legislation-giving-nature-the-same-rights-as-humans-gains-ground-in-some-countries/
*Reinaldo Dias é doutor em Ciências Sociais -Unicamp, pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK/Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil
http://lattes.cnpq.br/5937396816014363
reinaldias@gmail.com