Didina Guerra
Cornélio Penna*

MUITOS anos, há muitos anos, eu passei por uma rua de Itabira do Mato Dentro, e ao meu lado caminhava uma pessoa que já não vive mais…
Passamos bem devagar, sem ruído, diante de uma casa baixa e sinuosa, porque ali morava alguém que não devíamos despertar, e que a essa hora devia estar dormindo o seu único sono do dia, cansada de lutar.
A rua subia de repente, toda eriçada de pedras agudas, como o dorso de um antigo animal, e a casa sobre ela se debruçava, parecendo ter parado a sua queda naquele momento, para não nos esmagar, amparada não se sabe por que forças ocultas.
Todas as janelas estavam fechadas e a pequena porta baixa pintada de vermelho côr de sangue, que servia para receber os seus raros e medrosos visitantes, — quase todos levando apenas um auxilio, nem sempre bem recebido, — também cerrada, cortava qualquer comunicação com o mundo mau e escarninho, representado naquele momento por nós, que passávamos pela rua triste e sozinha de Itabira do Mato Dentro.
O próprio som de nossos passos se fazia surdo, abafando os seus ecos, rastejante, com receio de perturbar aquele repouso… Repouso laboriosamente conquistado no combate cruel contra todos os pensamentos desencontrados que a tinham, com certeza, perseguido até aquela hora adiantada do dia, e acompanhado por todos os recantos da casa, com suas figuras mortas, com suas vozes mortas, com seus remorsos mortos também.
Desde o dia em que entrou em seu espírito uma suspeita sutil, a de que não era necessária a ninguém, e que não saberia responder a nenhum dos chamados cujos cochichos zumbiam incessantemente em seus ouvidos, ela sentiu-se inteiramente só, e todos que a cercavam mudaram de aparência e de significação, e passaram a olhá-la com olhos espantados, não compreendendo mais suas palavras e interpretando de modo diverso e estranho os seus atos.
Saíra para a cidade em procura de alguém que a compreendesse, de uns olhos que a olhassem sem espanto, de mãos que viessem ao encontro de seu corpo sem estranheza e sem hesitação; mas o medo a cercava de barreiras invisíveis, e ninguém respondeu aos seus apelos, todos se afastaram com fria incompreensão, ou mesmo com cautela, não reconhecendo em suas pobres tentativas toda a caridade enorme que a sufocava…
Estava agora só em sua casa já tão velha, e nela se fechara para fugir de si mesma, protegida pela série sem fim de longos silêncios que cada vez mais a separavam das criaturas humanas. Sentia que era observada, mas com indiferença, com a facilidade, a prudência e a bonomia dos que não sabem amar.
Porque ela sabia amar, mas era prisioneira de sua miséria solitária, inconsistente e vaga, sem remédio, porque não tinha provas, não tinha argumentos, não tinha sequer defesa de sua alma encadeada. Quando uma palavra, um fato real, acontecimentos se concatenavam para explicar a sua desesperada tristeza, que todos julgavam simples afetação, ela guardava nos lábios presos a frase que deveria ser sua justificativa.
— Como justificar, como explicar, se ela própria não acreditava em si mesma?
Sua vida deveria ser apenas uma sucessão de horas, passadas ao lado de pessoas estrangeiras, que se aperceberiam de sua presença quando afrouxasse a sua vigilância sobre si mesma e o trabalho encarniçado pela manutenção das aparências de tudo que a cercava. Então ouviria uma observação enfadada, que seria recompensa maior de dias e dias de martírio…
— Parece que você tem alguma coisa…
E olharia para si espantada, subitamente presa da humilhante confissão de que ela se dera uma importância que não tinha, que não merecia. Os anos correriam, e o seu prozo, o tempo que lhe fora dado de vida, se esgotaria sem piedade, e a morte havia de vir, sem que ela se sentisse viver.
Um dia abrir-se-ia diante de seus passos o escuro abismo em que deveria precipitar-se sozinha, conservando ainda intacto o seu coração imenso, apenas amesquinhado pelas dúvidas e pelo emprisionamento…
E resolveu fechar-se realmente em si mesma, refugiar-se no extremo limite de sua personalidade, levar até à loucura a sua solidão agora voluntária, gozando em silêncio, vagarosamente, a dor de existir. Mas o animal velava no fundo de seu corpo, amor toando revoltas que explodiam de súbito, numa angústia tão terrível que parecia a aurora da morte.
E eram horas de febre, de fogo surdo, que a devorava, fazendo com que ardesse por toda a parte, pronta a gritar e a bater em quem dela zombasse, e os meninos vinham atirar lhe pedras e dizer lhe palavras injuriosas, e ela respondia a todos e a tudo com espantosa violência.
Depois… com a boca amarga, o corpo endolorido, ela voltava para sua casa, tão calada, tão sozinha, cheirando a suor e a pó, de novo a sensação de não ser daquele país onde nascera, de não ser aquela que todos conheciam, mas uma outra, filha dos grandes espaços, de homens indomáveis e de mulheres de alma secreta, a envolvia em sua penumbra.
Aquela casa não era sua casa, aqueles tristes móveis não tinham a marca de suas mãos, e seu próprio espírito era um outro… agora preso e abafado por tudo aquilo que a cercava. Sentia formar-se em seu rosto, fora de sua vontade, a máscara da angústia, e suas mãos, como se tivessem vida independente, crispavam-se em garra; mas ela sabia que só indiferença e desprezo existiam em seu coração, e aquela figura espectral que se sentava em sua cadeira era apenas uma representação de seu ser e as lágrimas impetuosas e amargas que lhe corriam dós olhos eram águas de um rio noturno que ela não sabia de onde vinham nem para onde iam.
Arrancava então de si os vestidos manchados pela lama da cidade, banhava-se com minúcia, e reatava a série longa, interminável, dos dias escuros, prisioneira de novo de um sonho confuso, mortalmente fatigada.
E naquela casa entravam apenas os sons muito claros da arruinada Igreja do Rosário, que fugiam para o fundo do vale como pássaros rápidos, ou o murmúrio de um ou outro passante, muito poucos naquela travessa em ladeira.
Dias imóveis, dias imóveis.
Uma luta que se resolvera, em silêncio, sem desabafo, e o sangue voltava a girar em suas veias, espesso a preguiçoso, não mais aquecido pela chama da demência, e seus membros lassos se recusavam a mover-se, pois o seu corpo perdera o sentido à vida…
Ajoelhava-se muitas vezes diante do grande Cristo de pau-santo de seu oratório, já comido peio tempo, e pensava em seus problemas, ferozmente, silenciosamente, e o conhecimento de seu infinito abandono a penetrava toda, e então acariciava ela mesma as suas próprias mãos, e a mentira de sua atitude só sé tornava sensível à sua alma exausta muito mais tarde, quando percebia, aos poucos, que se esquecera da imagem que a fitava através dos cabelos em desordem.
“E estava sozinha sempre, sempre sozinha”.
Chegáramos ao alto da ladeira, e um pequeno largo se abria à nossa frente, cortado de sombras e de faixas de luz cor de âmbar, do sol da tarde, e de certo não voltaria a passar por aquela pequena rua abandonada, pois no dia seguinte sairia de Itabira do Mato Dentro, sem esperança de encontrar nunca mais a cidade-tesouro, deixando para trás e para sempre a sua secreta beleza, e então a pessoa que caminhava ao meu lado, e que já não vive, parou, e olhando-me bem nos olhos, disse com simplicidade:
— Em que está você pensando? Desde que falei em Didina Guerra que disse a você ser aquela a sua casa, você calou-se e não ouviu mais o que eu disse.
Nada respondi, porque Didina Guerra surgira em minha alma, e nela achará um lugar imperecedouro, onde vive sempre, à espera de todos os meus momentos de tristeza e de abandono, para me dizer a mensagem de sua solidão, e muitas vezes vejo o seu rosto pálido, escondido pelo pobre xale negro, como um anjo crie asas negras e trêmulas…