Diário de uma garota
Diário de uma Garota, em uma das janelas da Biblioteca Nacional – Rio
Foto: MCS
Maria Julieta Drummond de Andrade
Prefácio
Ganhei este caderno de papai, na tarde do dia 5 de dezembro de 1941. Quando o recebi, ele já estava na página 49, o que indica que já fora usado em misteres diversos e desconhecidos – para mim, é lógico. Pretendo fazer dele uma espécie de diário, narrando os principais acontecimentos destas férias, para mais tarde recordar coisas já esquecidas.
Naturalmente não será um diário espiritual, isto é, contendo todos os meus pensamentos mais íntimos (o que, penso, só daria bobagens e tolices), mas um diário que eu possa mostrar a todo mundo. Não me preocuparei em escrever com pompas, ajeitando frases, evitando palavras repetidas. Isto não é igual à famosa carta para Luís Jardim, que me custou uma hora de labuta e três dias de dor de cabeça (sem exagero!).
Também neste caderno-diário colarei e transcreverei tudo o que me agradar ou interessar: máximas, poses de artistas, garotas de Alceu, caricaturas e uma série de outras nadinhas que encontrar por aí, nesse mundo grande. Enfim, farei desse caderno, se Deus me ajudar, uma bagunça bem bagunçada, que, quando ficar pronto, deverá ser entregue à minha mãe. (MJ)
Vida simples
No verão de 1941/42, uma garota de 13 para 14 anos anotou cuidadosamente em seu diário de férias os pequenos (grandes) acontecimentos de sua vida. Vida simples, de menina da classe média, educada em colégio de freiras, numa década em que os costumes eram tão rígidos que a palavra sexo não se pronunciava diante dos moços e na qual, não havendo sequer televisão, as distrações, poucas e modestas, eram por isso mesmo muito apreciadas.
Dia após dia, de maneira natural e sem intenção literária, a garota ia comentando os livros, os filmes, os doces e sorvetes, os jogos e molecagens, as dificuldades familiares – tudo o que lhe chamava a atenção e constituía o seu cotidiano despretensioso, sem perceber que estava lavrando um testemunho de sua época, de seu estrato social, de sua adolescência.
Tantos anos depois, é possível que um documento assim interesse a alguns espíritos maduros – que, tendo vivido experiência semelhante, talvez se vejam espelhados nestas páginas – e aos mais jovens – que, não tendo noção de como eram seus companheiros de outros tempos, talvez vejam neste diário uma espécie de incunábulo curioso.
1º dia de férias – Domingo, 7
Acabei ontem os exames orais, fazendo as provas de Geografia e História da Civilização. Acordei meio resfriada, fui à missa, estudei piano e à tarde estreei meu vestido de fustão branco e azul, para ir à casa de Maria Helena, onde se realizou uma festa. Não dancei, porque, além de não saber, estava com moleza e espirrando muito. Conheci Nelza, uma garota amiga de Edina, morena e um pouco antipática. Às 8 da noite, Seu Ismael e Maria Helena me trouxeram de táxi.
14º dia de férias – Sábado, 20
De manhã saí com papai e mamãe, para fazermos as compras de Natal na cidade. Procuramos muito um relógio cuco de parede para mim, mas, como não o encontramos, compramos uma máquina fotográfica Brownie Special-Six 20.
Mamãe ganhou luvas de vidro (leia-se hoje náilon), sapatos e bolsa da mesma cor branca, dois cortes de seda (um rosa, outro areia) e um lindo colar vermelho. Compramos também o Almanaque Tico-Tico 1942 e um número de novembro da Life. Almoçamos na Colombo, onde comi uma deliciosa salada de batatas acompanhada de pão com manteiga.
Durante o dia, Hilda me deu um balangandã de pedras coloridas, bem bonitinho. À tarde, Zé Sousa veio buscar Margarida e Pepito. Estudei um pouco de piano antes do jantar e, na hora de dormir, saboreei uma fatia de abacaxi cristalizado, enquanto lia alguns exemplares de Fon-Fon, que papai trouxera. Esqueci-me de anotar que tirei um retrato do Zé Sousa com o filho e aquele bateu uma chapa minha com Pepito.
18º dia de férias – Quarta-feira, 24
De manhã fui à cidade com papai e mamãe. Compramos um maiô lindinho para mim; umas ligas de vidro para o Tonho; um par de meias para o Hermenegildo e um vidro de loção para Pedro Silva. Além disso, perdemos meia hora na Colombo, a fim de conseguirmos um bolo de frutas secas (que mais tarde verificou-se ser horrível) e fomos ao alfaiate, para papai provar o terno de linho branco e o de tropical creme, que mandou fazer.
Depois do almoço mamãe saiu de novo com Margarida, que queria comprar sapatos para Pepito. Meu pai seguiu para o trabalho e eu fiquei ajudando Cesária a descascar castanhas para pô-las em calda e servir com o peru.
Tonho apareceu e adiantou os preparativos da ceia. Chegou um cofre de presente, igual ao do ano passado, enviado por Mr. Norman Davis, da City. Continha este cofre: uma lata de caviar (que mamãe vai trocar), uma lata de caramelos, um vidro de cerejas em calda, três garrafas de vinho do Porto, uma de vinho tinto e outra de curaçau, que é um licor holandês.
À tarde, mamãe chegou tão carregada de embrulhos que perdeu em algum lugar as flores e a coroa de Natal que comprara no Mercado das Flores. Lá pelas 8 e pouco, no momento em que o gerente da padaria veio se desculpar por ter deixado queimar o papo do peru (o que, aliás, não prejudicou em nada o gosto da ave), a nossa gatinha malhada, aquela bichinha doce e engraçadinha, morreu de doença desconhecida. Pobre Pompom! Como chorei, quando Tonho abriu uma cova ao lado da dos outros filhinhos da Fulô!
Às 10 horas começaram a chegar os convidados. Margarida e Zé Sousa me trouxeram um álbum de recordações; Délia, uma caixa de bombons Lacta; Pérola, um bibelô, em forma de cãozinho vermelho. Esqueci-me de dizer que mamãe me deu um par de meias listradas e comprou para papai uma gravata e um calção de banho. Como eu desejava comungar no dia 25, quinze minutos antes da meia-noite fiz meu prato e comi de tudo o que havia e bebi à saúde dos convivas. Vovô telefonou de Belo Horizonte.
19º dia de férias – Quinta-feira, 25
Natal
Depois da meia noite, enquanto as pessoas ceavam e bebiam, eu ajudava a servir e ouvia os casos e anedotas que eram contados. Em seguida os homens ficaram na sala de jantar e as mulheres passaram para a sala de visitas, a fim de conversar.
A festa acabou muito tarde, lá pelas 3 da madrugada, tendo tudo decorrido em meio da maior alegria possível. Fui dormir e levantei-me para ir à missa do Colégio São Paulo, mas, como não havia missa lá, Cesária levou-me à igreja da Paz, onde me confessei e comunguei. Estreei meu vestido novo e pus os sapatos de camurça branca.
Quando voltei, encontrei outra cesta, inferior à primeira, com vinhos e bombons nacionais. Tendo me esquecido de armar o presépio na véspera, resolvi fazê-lo àquela hora, no quarto de hospedes. Ficou bem bonitinho!
Por ter bebido muito à noite, papai só se levantou de tarde e soubemos que Zé Sousa passou de cama o dia todo. Dona Jerusa Camões mandou-nos uma cesta de frutas, lindamente ornamentada. Às 6 horas, Cesária, de vestido novo, foi com o marido à festa, em casa duma prima desta. Papai telefonou para Dindinha, em Belo Horizonte.
28º dia de férias – Sábado, 3
Levantei-me relativamente cedo e comecei a recortar figurinhas até a hora do banho. Depois do almoço tentei limpar a pérgula e brinquei com Puck. Um casal de Sabará veio nos visitar (e atrapalhar), enquanto mamãe fazia os sanduíches e passava alguns shorts.
Às 5 horas, papai chegou para mudar de roupa. Daí nos dirigimos à Estação da Central do Brasil e, no caminho, passamos pela casa de retratos, a fim de apanhar as fotografias que tirei com minha máquina. Algumas saíram boas, outras meio tremidas; do Puck só consegui um retrato, assim mesmo pouco nítido.
Na estação encontramos, além de Pepito e seus pais, Délia e Leila. A viagem decorreu bem. O garotinho comportou-se como um gentleman, inventou histórias e comeu bastante. À noite tive muita sede, mas papai não quis saber de nada e, virando para o outro lado, resmungou e dormiu novamente.
29º dia de férias – Domingo, 4
Somente quando o sol já despontara, consegui dormir bem. Não quis tomar café, porque havia em nossa matula sanduíches de queijo, de presento e de patê, doces cristalizados, biscoitos e uvas. O trem atrasou uma hora e quarenta minutos; na estação encontramos Vovô, Lilico, Dr. Teo e o irmão Torquato, que foram cumprimentar papai.
No 117 da Rua Silva Jardim, a família estava boa. Bergeret, disposto, perguntou por todos, embora continue a falar por charadas, como sempre. Glorinha e Elsinha abraçaram-me com carinho: a primeira um pouco triste, porque terá de fazer em segunda época o exame de Matemática; a outra, alegre, porque passou com 85. Lilico, felizmente terminou as provas, sendo promovido para o segundo ano.
Viajei ontem com um vestido novo: blusa branca e saia estampada, reformada de uma antiga. Depois do almoço, meu pai e eu saímos para comprar frutas para Zizi e uma lata de doces para Dindinha.
Um amigo de papai, sujeito gordo e bêbado como não sei quê, deu-me de presente, na Confeitaria Trianon, uma caixa de passas. No limpíssimo apartamento da madrinha, jantamos fartamente, em companhia de Tia Florzinha, Juca, Prudente e Horácio. Maria Raimunda, empregada de Dindinha, contou-me que o noivo de Marina (aquele que estava preso) morreu anteontem.
Voltamos de bonde e não pudemos ir assistir a Sangue e Areia, no Cine Brasil, como pretendíamos, porque Dasdores, João e Ceção vieram nos visitar.
30º dia de férias – Segunda-feira, 5
De manhã cedo levei café com leite na cama para papai e fui à casa de Glorinha e à Igreja Nossa Senhora das Dores. Depois do almoço (durante o qual saboreei um delicioso arroz-doce), passamos no Hospital Santa Terezinha, para visitar Zizi.
O sanatório deixou-me péssima impressão: tuberculosos ouviam rádio, tuberculosos conversavam, tuberculosos brincavam, tuberculosos por toda a parte… Achei a mocinha com bom aspecto, alegre e (ô ilusão da mocidade!) esperançosa de uma cura próxima. De lá fomos depressa ver Dindinha, a fim de lavar as mãos com álcool.
Quando voltei, escrevi uma carta a mamãe e recebi a visita de Maricota e a irmã, que vieram buscar um embrulho de castanhas, enviado por Dona Pequetita para o filho, também tuberculoso.
Papai embarcou às 7 horas. Na estação havia banda de música, tocando para um general que também seguia para o Rio: foi um bota-fora muito festivo. À noite, Tonico, Lilico, Glorinha, Elsinha e eu jogamos uma engraçadíssima partida de monopólio.
52º dia de férias – Terça-feira, 27
Acabei hoje de cumprir a promessa que comecei no Rio. Depois da missa, escrevi para papai, mas tive de reabrir a carta, a fim de introduzir nela um bilhetinho para mamãe, agradecendo os presentes que recebi.
Nelson havia encomendado algumas revistas sobre noivas para Dorita, e, junto com os figurinos, chegaram para mim um lindo colar moderno, com pequenos objetos escolares preso num fio vermelho, e uma e uma ótima fotografia de meus pais: mamãe, muito bem, sorrindo brejeiramente para papai; este, sério e compenetrado, com ar de quem está com vontade de reprovar a brincadeira. Adorei o balangandã e o retrato!
Passei a tarde em casa de Glorinha e jantei com Ceção, que fazia anos. À noite, não sai do 117 e conversei até tarde com Vovó e os tios Nelson e Sócrates. Para surpresa minha ninguém discutiu ou brigou.
75º dia de férias – Quinta-feira, 19
Acordei cedo para fazer deveres de teoria e fui à aula. Amanhã, se Deus quiser, termino as lições, que são bem enjoadas. Depois do almoço brinquei com as meninas que, ressabiadas por terem quebrado um vidro da porta, estavam escondidas no quarto.
Comprei minha roupa de príncipe, de cetim vermelho, por 9$600. Bem barato! Por $800 arranjei um retrós da mesma cor e, à noite, levei tudo à casa de Neném, com Dona Lídia e as meninas. Ensaiamos, sob os olhares de Mercedes e, mais tarde, buscamos o vestido de Glorinha na costureira.
Quando eu já me aprontava para ir dormir em casa das amigas, o telefone tocou: eram mamãe e papai. Que alegria! Soube de várias novidades, entre outras, que dia 2 embarco de avião para o Rio.
88º dia de férias – Quarta-feira
Dia 4 de março
Faço hoje 14 anos. De madrugada acordei Elsinha e recebi um abraço de parabéns. Depois da missa, em que comunguei, conversei com mamãe e papai pelo telefone e soube que estava à minha espera, no Rio, um vestido novo, tipo saia e blusa. Fui me despedir de Tia Florzinha, mas não a encontrei. Passei em casa de Neném, para pagar-lhe (as fantasias custaram 10$000) e de Ceção. Levei Pepito para cortar o cabelo e estive com Maria José e as irmãs.
Quando me arrumava para ir à Avenida Amazonas, avisaram-me que o avião estava atrasado. Chorei muito, pois o tempo estava feio e eu receava adiar, ainda uma vez, minha partida. Às 2 e tanto, um empregado da Panair informou-nos que o aeroplano sairia dentro de poucos minutos.
Tomamos um táxi, Vovô, Vovó e eu, e, na agência, soubemos que já havia saído o ônibus para a Pampulha. Que aflição! Um automóvel nos levou ao campo de aviação, juntamente com um casal. Corria o veículo! Parecia fita de cinema! Consegui apanhar o avião, porém meio triste, porque Vovô esqueceu minha máquina de retratos e meus livros no balcão do escritório.
A moça a quem Vovó me recomendara enjoou bastante e, assim, cedi minha poltrona número 3 ao seu marido e me mudei para a 8, bem mais confortável, aliás. A certo ponto, uma tempestade desabou, obrigando o avião a subir e descer como uma flecha. Agarrei-me fortemente num senhor que estava sentado a meu lado e com o qual pude conversar depois.
Às 16 horas o avião aterrissou no Aeroporto Santos Dumond, onde encontrei mamãe, Margarida e excelentíssimo e mui digno Puck, grande e peludo, além de papai, que chegou alguns minutos atrasado.
Contei e soube – contei mais do que soube – novidades e até representei meu papel de Dona Linfa, para dar uma ideia do espetáculo. Em casa, Cesária abraçou-me. Matei as saudades do banho de chuveiro (na casa da Vovó só há banheira), fiz festinhas em Fulô (barriguda, barriguda) e fui dormir às 22 horas.
92º dia de férias – Domingo, 8
Fui à missa no Colégio São Paulo e, depois, à peixaria, com Cesária. Nossa gatinha Fulô teve esta noite cinco filhotes: um rajado e quatro negrinhos. Comecei a ler A Passageira, de que não estou gostando muito. Depois de um bom almocinho (suflê de camarão, carne de porco e creme de uvas) estudei piano e joguei baralho com papai.
À noite, fomos todos ao cinema Astória (que não é nada tão luxuoso, como haviam anunciado) ver Pérfida e comemorar o fim das férias. Formidável, a fita! Betty Davis está simplesmente notabilíssima! Antes do início do filme chupei balas de goma, um pouco enjoativas.
Agora vou dormir, porque amanhã o colégio recomeça e tenho que acordar muito cedo, a fim de não perder o ônibus. Lúcia me contou que nossa mestra de classe vai mesmo ser Mère Malena, que todos dizem ser muito boa e justa, apesar de severa.
Tomara! Entro para a classe Violeta Listada, que agora, com a reforma Capanema, é o último ano do ginásio. Espero ter muita sorte, se Deus me ajudar, e estou satisfeita de reencontrar minhas colegas e as freiras.
Adeus, meu diário querido. Gostei muito de você nesses 92 dias (que felizmente não foram 100) e sei que daqui a uns anos vou reler com alegria a narração destas minhas lindas férias, em que me diverti tanto, apesar dos probleminhas de sempre. Que pena ter acabado esse período tão feliz!
[Livro: Diário de uma garota, Maria Julieta Drummond de Andrade. RJ: José Olympio Editora, 1985]