De livros e sonhos

Imagem: místico alcachofra, ultra detalhado, hiperrealismo (Fernando Bressan)

“Livro vai, livro vem, não é que me ofereceram um em forma de buquê de alcachofras, e nele encontro, entrelaçadas, cores, sons e sabores de Minas e do mundo?” – CDA

Carlos Drummond de Andrade

Apaixonei-me por uma cama. Há casos mais graves; exemplo: a paixão por uma cadeira de senador ou deputado. Os que se apaixonaram por uma cadeira biónica veem hoje extinto o objeto de seu culto e, o que é mais lamentável, contribuíram com o seu voto para essa extinção.

Votaram contra si mesmos, esquecendo-se, porém de renunciar os mandatos. É natural o esquecimento. Estar sentado é tão bom que a gente perde a noção do vertical. E os móveis políticos, mesmo inautênticos, são tão confortáveis!

Meu caso é diferente. Amo, sim, uma cama, ou, se preferem a exatidão terminológica do século XVII, um leito de bilros, pois no entendimento antigo cama é a colchoaria, e leito a armação de madeira, ferro ou outro material, que recebe a acolchoaria. Meu amor não vai para colchões, colchas e demais apetrechos de dormir, repousar ou amar; consagra-se a um leito de bilros baiano, uma graça, de estilo luso-brasileiro, pertencente a colecionador do Rio.

O Movel no Brasil: Origens, evolucao e características – Tilde Conti

Minha paixão medida contenta-se com a gravura estampada no sério e belo livro de Tilde Conti, O Móvel no Brasil – Origens, Evolução e Características, que outro colecionador, editor Cândido Guinle de Paula Machado, acaba de publicar.

Peço a Tilde que o descreva: espaldar com barras entalhadas em volutas vazadas entre molduras lisas, ao centro, emblema em cruz; na barra inferior, pequeno vaso de flores entalhado. Galeria torneada em torcidos, bolachas, bolas e discos, alternados por bilros e dividida por barra emoldurada. Colunas de torneados mistos, com predominância ao torcido.

É apenas um leito, mas é todo um leito cheio de passado. Marca a transição entre o puro móvel original português e o brasileiro, que revela certo hibridismo, certa tendência nossa a combinar estilos, em busca de soluções novas.

Deixem-me gostar desta peça ao mesmo tempo complicada e delicada, que parece jogar com estalactites e estalagmites convergentes. E assim me distraio e afundo no tempo, a tal ponto que chego a sentar-me em bancos indígenas em forma de pássaros, no Alto Xingu, e saboreio os bizarros nomes do léxico da marcenaria, como espreguiceiro, tremidos, bofetinho, cachaço, capelo, alparavaz, balmázio, escaparete, bilharda… Tudo nas páginas de Tilde que sabe das coisas e compôs obra para ficar.

O Movel no Brasil: Origens, evolucao e características

Um momento, e passo a Lua. Ou a O Reinado da Lua, excelente pesquisa de Silvia Rodrigues Coimbra, Flávia Martins e Maria Letícia Duarte junto aos escultores do Nordeste. Um deles, Nhó Caboclo, tem esta frase a la Guimarães Rosa:  “Disso você não entende não, isso é coisa do reinado da Lua”.

A lua reina sobre os artistas que nasceram artistas, não precisaram academiar. A Lua os inspira e fataliza para a criação. Um deles se chama Louco, outro Maluco Filho, um terceiro é Doidão.

Mas todos operam sob a luz que vem da Lua ou que brota do interior deles mesmos, e é Nhó Caboclo quem declara: “Eu não tenho o poder de possuir o dom, sou perverso, mas tenho corgo, que é a pessoa fechar os olhos e, o que vier no sentido, fazer”. E faz com engenho e força, emergindo das raízes mais fundas do homem não letrado que estuda as leis e graças da natureza.

Este álbum da Salamandra mostra uma das riquezas do Brasil, que se desenvolve a margem de incentivos fiscais e programas prioritários de governo: a criação espontânea, passando de pai a filho e explodindo imprevistamente no meio cultural menos propício.

Como não amar de amor enlevado esses homens suspostamente rústicos, que tem tamanha capacidade de interpretar a vida, exercendo a imaginação e as mãos? Rústicos somos muitas vezes nós, os sofisticados habitantes das capitais, que não sabemos manejar a ferramenta dos dedos e só nos distinguimos na abstração. Os do reino da Lua, estes, sim, merecem respeito e alegre homenagem.

Alcachofra (2020) – Fernando Bressan

Livro vai, livro vem, não é que me ofereceram um em forma de buquê de alcachofras, e nele encontro, entrelaçadas, cores, sons e sabores de Minas e do mundo?

Alcachofra, do árabe alkharshof, segundo Mestre Nascentes, é “planta que produz uma cabeça a modo de pinha”, na definição de Mestre Morais; e no dizer de Mestre Aurélio, “planta hortense da família das compostas (Cynara scolymus), de que são comestíveis o receptáculo da inflorescência e a base das brácteas, riquíssimas em vitamina B”.

Mas quem diz a ultima palavra é mestre é Mestre Pio Corrêa, o incomparável e saudoso botânico: “De belíssimo efeito quando as suas inúmeras flores desabrocham sobre o capítulo comestível.”

Dar a um livro de crônicas o título de Um Buquê de Alcachofras, como fez pessoa amada deste cronista, é, pois, destilar a essência poética do vegetal útil, e com isso abrir caminho para quadros de humour, nostalgia e sonho. A alcachofra ganhou categoria literária. Não me considero suspeito para gostar deste livro de Maria Julieta Drummond de Andrade. Só que gosto duas vezes, e da segunda vez por motivo de coração. Explicado?

[Jornal do Brasil (RJ), 18/11/1980. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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4 Comentários

  1. Continua me impressionando a sagacidade investigativa de Cristina Silveira. Reitero incansavelmente a necessidade de publicarmos um obra com tantos achados sobre o mundo drummondiano. Parabéns à Vila de Utopia pelas publicações de outubro ! Parabéns à respeitável Cristina Silveira, que só nos faz enriquecer culturalmente com suas pesquisas!

  2. Gracinhameuamor, eu fico embevecida com as manifestações positivas de você sobre as publicações aqui na Vila. Agora, eu respeitável é um erro, dado que sou completamente zonza. Mas eu tenho você para sempre no meu coração vadio.

  3. Merecidas as palavras de Graça Lima para o trabalho de Cristina Silveira.O tempo fez de Cristina uma excelente pesquisadora de textos dispersos e de difícil acesso. Sorte nossa e dela ,
    é ter se tornado carioca e poder mergulhar na Biblioteca Nacional. Bom pra ela. Ótimo pra nós.

  4. QueridaCacá, só há uma verdade: a BN é o meu lugar no mundo e se fosse possível a Biblioteca Nacional do México também seria. Obrigada pela sua valiosa presença. Inté

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