“Da essencialidade da água” é título do novo livro de poesia de Milton Rezende
Fotos: Divulgação
Trata-se do primeiro original poético do escritor e poeta Milton Rezende nos últimos sete anos, desde a publicação de “Um Andarilho Dentro de Casa”, em 2017. Depois disso aconteceram mais quatro livros publicados, sendo que o primeiro deles foi o romance “Mais uma Xícara de Café – One More Cup of Coffee” (2017).
Na sequência veio uma compilação de textos e poemas derivados de sua fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, Heteronímia e Inventário Poético em Milton Rezende”(2015), de Maria José Rezende Campos e que foi publicado em 2019 sob o título de “A Casa Improvisada”.
Outro foi uma seleção de poemas e textos contemplados, viabilizados e publicados através da Lei Aldir Blanc “Anímica” (2022) e finalmente a sua “Antologia Poética – Literária I”, que foi publicada no Brasil, Portugal, Angola e Cabo Verde em 2022.
A morte é musa
Em todas as leituras do poeta sobre ela, há inquietação, mas também alento diante do imutável que a tal representa: o fim fragmentado em uma variedade de ocorridos, até chegar ao desfecho inegociável.
Apesar de ser o destino de todos, a morte como acompanhante de vida não é para todos. Observá-la – nas versões realística e metafórica – exige certa afinidade com um dos temas mais evitados pelo ser humano. Refletir e falar sobre a finitude de si raramente colabora com o aprofundamento no assunto. Melhor é fazer de conta que ela não chegará.
Evitá-la não faz parte desta obra.
Aqui, Milton Rezende navega feito barco solto nas águas da cadência desse fenecimento, recorrendo, mais uma vez – por serem temas presentes na sua literatura –, aos cemitérios e rituais de passagem, inspirações significativas para a sobrevivência da vitalidade e da clareza, itens essenciais para manutenção de seu acervo de observações existenciais.
E vai além, registrando em poesia algumas facetas da morte e a diversidade de fins que ela orquestra, o que resultou em alguns poemas baseados na experiência do autor, após uma cirurgia mal sucedida, que deixou sequelas “definitivas e permanentes”.
É nessa força de lidar com o que debilita que o poeta transcende o físico para abraçar a combinação de palavras guiada pela nostalgia: “… mas ainda dono das minhas pernas / agora atrofiadas pelas cirurgias malfeitas / que fizeram com o intuito de retirar-me de cena /e ironicamente, hoje, me permitiram um passeio / nostálgico para que eu lembrasse de estar acabado” (O inabalável homem de pedra, dentro de sua cela, observa).
Por meio dos poemas, Milton deixa claro sua temeridade ao se aprofundar, seja nas emoções, nas elocubrações ou nos fatos. Por meio de versos coordenados com o que pensa, sente e observa, aproxima-se da vulnerabilidade do ser humano e das prateleiras de remédios. Flerta com o inimaginável e a reverberação da realidade:
“por precaução levava meu kit básico / de sobrevivência: órteses, próteses, / cadeira de rodas e cadeira de banho / para alguma eventualidade de lavar / o corpo dos pedaços que se decompunham” (Chapado de Zolpidem 10 mg).
Em “Eutanásia II (pentobarbital)”, aborda a vida no descabimento de sua duração, quando as circunstâncias são desoladoras. Ainda assim, Milton versa sobre desejo e possibilidade: “queria morar na Suíça / onde o suicídio assistido é permitido / então eu iria me inscrever”.
Em alguns momentos, o poeta se entrega à fragilidade de quem tem de lidar com limitações físicas significativas, e de condições que interferem na capacidade de enxergar alívio no cotidiano: “Estar invisível / é ir-se apagando / aos olhos dos outros. / Ser uma memória / antiga que ninguém / se lembra mais” (Balada do homem invisível).
A essencialidade da água coloca a poesia de Milton na estrada da compreensão dos movimentos que a vida faz antes de a protagonista do fim assumir seu papel. Há sentimentos e fatos que se afogam em dúvidas e beleza nas entrelinhas. É vivendo que o poeta contempla a morte.
Aqui tem poesia, mas não amarras. A leitura dos poemas deste livro, provocará em muitos o desconforto gerado por questionamentos relacionados às prioridades; o reconhecimento de mazelas e de fragilidades; o escarnecer a perfeição. É no susto, no corte, na necessidade que o poeta tece a sua poesia. É assim que, na morte, a vida grita.
A arte é um fardo
O que o poeta tem a declamar após o coma? O moto perpétuo da realidade lhe roubando o devaneio e impondo, brutalmente, as sequelas? O poeta ainda conseguirá criar? Esmiuçará os traumas universais em versos engenhosos? Voltará a escrever?
É imerso nessa angústia, que o escritor e poeta Milton Rezende, tateando os aromas da dúvida, tenta recomeçar a tecer uma obra, ainda que o corpo vacile diante da monstruosa tarefa de continuar.
É preciso purificar a palavra, em um ato íntimo de desafio: o poeta está afiadíssimo, Içou a ironia pelo colarinho, domesticou a dor rediviva, a morbidez da inconsciência, até encontrar lovecraft, até se refugiar em heróis oníricos, fantasmagóricos e, ainda assim, reais.
A suspensão da existência, os olhos reavendo outras ficções até desembocarem novamente na trégua, reimaginarem as banalidades cercando a resistência que pulsa, essas águas que jamais foram as mesmas, nunca serão, o líquido ocupa tudo, com seu curso que invade, pilha, toma, ocupa.
O poeta tomará quantos remédios por dia? Quantos comprimidos empurrados corpo abaixo? O poeta regressará às burocracias de antes? Quanto tempo resta antes de se revoltar, novamente?
Porque trouxe os vestígios de outra cosmogênese, serenada pelo conforto de fármacos, de injeções, de terapias, uma lista de enfermidades e procedimentos tão absurda que trazem em si o embrião da poesia, o lirismo da incongruência, como enxergar de outra forma o que sempre foi caos? O médico lhe revelará a intimidade de uma paz sem serventia?
Milton Rezende aflora às margens de um mundo idílico, transmutado, inacessível e se insurge contra ele com sua realidade brutal, desesperançada, empunhando palavras aceradas, como se só lhe restasse isso a fazer: a arte é um fardo.
Poeta intrigante
Edson Braz da Silva
“Grande poeta, de obra densa, intrigante, que não permite a indiferença ou muxoxo quando é lida. Poeta definitivo, que diz o que quer dizer, sem reticências, sem rodeios, porém sem desperdiçar palavras, sem jogar ao ar blasfêmias estéreis, sem pirotecnia. Às vezes é seco como Drummond, tétrico como Edgar Alan Poe, mortal como Augusto dos Anjos, sensitivo como Fernando Pessoa, mas é sempre Milton Rezende.”
Balada do homem invisível
Milton Rezende
Tenho 57 anos
e estou ficando
invisível.
Estar invisível
é ir-se apagando
aos olhos dos outros.
Ser uma memória
antiga que ninguém
se lembra mais.
Viver num quarto
menor e anexo
ao quintal vazio.
As pessoas jovens
o sinaleiro verde
e sua janela fechada.
No meio da conversa
dizer algo singelo
que ninguém percebe.
Não ser convidado
para nada porque
o seu lugar não existe.
Tenho 57 anos
e estou ficando
invisível.
Talvez fosse cedo
mas tive um derrame
e deixei derramar
a caneca de café.
Anímica
Milton Rezende
quando eu tinha todos os movimentos
eu era sol entre nuvens
aves de arribação
qualquer coisa de menos sólida
por haver.
eu via cachoeiras em meus sonhos
remanso de rios
pedra grande de sentar menino
florestas a esculpir.
Sobre o autor
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Está em www.miltoncarlosrezende.com.br e www.estantedopoetaedoescritor.blogspot.com.br
Serviço
Da Essencialidade da Água
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Onde comprar: Editora Sinete
Preço: R$ 45,00