O Cometa é enquadrado na Lei de Segurança Nacional por denunciar ex-ministro que embolsou esmeraldas em Itabira
Foto: Reprodução/ Jornal do Brasil
Carlos Cruz*
Inspirado nos jornais alternativos O Pasquim, Movimento e Opinião, O Cometa fez da Cidadezinha Qualquer a sua cena primária para tratar da política municipal, nacional e do mundo. Ousado e intrépido, como a ele se referia o poeta, o jornal foi editado por jovens itabiranos sem medo de retaliações da agonizante ditadura militar, o que acabou ocorrendo, com o meu enquadramento na famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN), em 1981.
A tentativa de retaliar exemplarmente o jornal ocorreu após a publicação de reportagem, de minha autoria, que denunciou o então ministro das Minas e Energia César Cals de Oliveira (1926/91) embolsar esmeraldas em Itabira, em troca da concessão de uma mina das verdes pedras em Oliveira Castro. No local, antes havia garimpeiros, que teriam a primazia na concessão, conforme rege a legislação.
Após a repercussão nacional da reportagem de O Cometa, a pedido do ministro, que deu uma de “curiango” surrupiando as verdes pedras, a Polícia Federal abriu inquérito já com a determinação de enquadrar o jornal na LSN.
E quis indiciar também o colunista social Benjamim Frufru de Oliveira, que noticiou o “mimo” (um colar de esmeraldas) oferecido à esposa do ministro, Marieta Cals, por ocasião da visita ministerial a Itabira, em 23 e 24 de julho de 1981:
“Ouro de Canjica. Soube-se que a senhora Cals recebeu um magnífico colar de esmeraldas (avaliado em aproximadamente 2 milhões de cruzeiros), gentileza dos proprietários do garimpo de Oliveira Castro em recente visita do ministro César – o Cals – por essas redondezas. Quanto ao jantar oferecido pela ‘municipalidade’ ao Olherudim foi também digno dos deuses, não faltando o escocês tão necessário. Distinção e bom gosto fazem de Itabira a cidade mais gentil.” (Benjamim Frufru de Oliveira)
Após frustradas tentativas, a Polícia Federal desistiu de intimar o colunista Benjamim Frufru, que se embrenhou com O Onça em uma grota pelas bandas da cachoeira dos Milagres, em Itambé do Mato Dentro, hoje se sabe, e por lá ficou, nunca mais voltando a Itabira.
Sobrou para este repórter e para os jornalistas Hélio Fernandes, Hélio Fernandes Filho e Paulo César Branco, do jornal Tribuna de Imprensa, do Rio, que repercutiu a denúncia de O Cometa – todos indiciados pela LSN, de triste lembrança.
Solidariedade
Com o enquadramento do jornal na LSN, Drummond se solidarizou com este repórter municipal. E pediu apoio, prontamente obtido, ao jornalista Barbosa Lima Sobrinho, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
“Agradecendo a publicação dessas linhas, aproveito o ensejo para manifestar a minha repulsa ao enquadramento do diretor do Cometa, Carlos Eustáquio de Alvarenga Cruz, na Lei de Segurança Nacional, por suposto delito de imprensa. Levei o caso ao conhecimento da Associação Brasileira de Imprensa, de cujo conselho de administração sou membro”, escreveu o poeta em carta enviada ao jornal em 10 de junho de 1982.
Na edição seguinte (Cometa número 31), Barbosa Lima Sobrinho escreveu ao jornal:
“Ao jornalista Carlos Eustáquio de Alvarenga Cruz. Prezado confrade, Cumpro o dever de lhe comunicar que, inteirado do episódio pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que nos honra em pertencer ao Conselho Administrativo desta Casa, a Associação Brasileira de Imprensa acaba de se dirigir ao sr. Juiz auditor da 4ª Auditoria Militar, sediada em Juiz de Fora, dando as razões pelas quais não chego nem a entender a invocação da Lei de Segurança Nacional, num caso irrelevante e que nunca poderia ser considerado como atentado contra a ordem pública. (…) A ABI tem todo empenho em assisti-lo neste transe de sua vida jornalística (…)”, escreveu ao Cometa o presidente da ABI, em agosto de 1982.
Julgamento em Juiz de fora absolve os quatro jornalistas da LSN
Depois de um longo e tenebroso inquérito e instaurado o processo, o nosso julgamento ocorreu em 27 de julho de 1983, quando os “juízes” da aeronáutica da IV Auditoria Militar, sediada em Juiz de Fora (um major, um capitão e um tenente), por unanimidade decidiram absolver os jornalistas acusados de ameaçar a segurança do ministro corrupto que locupletou em Itabira.
No dia do julgamento, a sessão sofreu atraso de uma hora, pois os juízes auditores tiveram que decidir, preliminarmente, se eu poderia sentar no banco dos réus sem que estivesse trajado, solenemente, com paletó e gravata.
O professor Arp Procópio, então chefe da sucursal do Cometa no Rio, logo se prontificou a me emprestar o seu terno, mas não foi preciso. Deliberam que eu poderia ser julgado à paisana. “Não pense que eu vim até aqui para me solidarizar com você. Vim para ver essa palhaçada que é a auditoria militar”, ele foi logo tratando de esclarecer.
A nossa absolvição foi notícia nacional, chamada de capa da revista Veja, que abriu reportagem sobre o julgamento e a visita de César Cals ao general-presidente Figueiredo, que se recuperava de uma cirurgia cardíaca, em Cleveland, nos Estados Unidos. Foi quando ele, acintosamente, posou para foto ao lado de uma reluzente limusine:
“Ao regressar nesta segunda-feira (dos Estados Unidos), o ministro César Cals aterrizará em más notícias vindas de Juiz de Fora, Minas Gerais. A 27 de julho passado, a auditoria da 4ª Circunscrição Jurídico-Militar, baseada naquela cidade, absolveu por unanimidade quatro jornalistas que Cals pretendia enquadrar na Lei de Segurança Nacional, sob a alegação de terem praticado ‘matéria ofensiva à dignidade do ministro. Além de não ver crime na conduta dos jornalistas, a sentença expedida pelo Conselho da Auditoria, integrada por um major, um capitão e um tenente, pondera que, ‘havendo outros indícios de recebimento de vantagem indevida, ainda que para outrem, deverá ser aberto outro processo’, dessa vez contra Cals.”
O processo com o pedido da auditoria militar para que o ministro fosse investigado chegou a ser encaminhado à Procuradoria-Geral de Justiça. Como ocorria na ditadura– e ainda ocorre – o engavetador-geral da República no governo Figueiredo deu sumiço na denúncia contra o ministro e ficou por isso mesmo. Impune.
Dom Mário Gurgel
A prova de que o ministro havia mesmo embolsado as esmeraldas em Itabira foi obtida com a ajuda do ex-bispo dom Mário Gurgel (1921/2006).
Ocorreu que, após a repercussão nacional do caso, para tentar minimizar a improbidade o ministro doou as esmeraldas a um hospital do interior do Ceará.
Isso ele declarou à imprensa, sem citar o nome da cidade e nem do hospital. Cals alegou que havia recebido apenas um “mimo”, que as esmeraldas não tinham valor econômico.
O certo é que as verdes pedras de Itabira foram parar em um hospital da Cruz Vermelha da cidade de Sobral, no Ceará. Por uma feliz coincidência para os jornalistas, a provedora desse hospital era irmã do bispo itabirano.
Dom Mário me ligou, pedindo para eu ir até a residência episcopal, que tinha uma boa notícia para me dar. Rindo muito da coincidência, ele me contou que com a venda das esmeraldas de Oliveira Castro o hospital construiu uma nova ala pediátrica, moderna e bem-equipada.
Ouvida por meio de uma carta precatória, a direção do hospital confirmou o recebimento das esmeraldas, inclusive informando o valor obtido com a venda, bem próximo do que foi divulgado pela reportagem de O Cometa.
A sentença final que absolveu os jornalistas foi considerada pela imprensa nacional como tendo sido de “singular relevância do ponto de vista jurídico” – um marco na consagração da liberdade de imprensa, após 19 anos de censura prévia imposta pela ditadura militar:
“Pode a imprensa dar aos fatos a interpretação, verídica ou não, que lhe aprouver. Cabe aos leitores aceitar aquela interpretação ou tirar as suas próprias conclusões. Não há crime em tal conduta.”
E assim o jornal O Cometa prosseguiu em sua longa trajetória, influenciando na agenda pública da cidade, procurando traduzir e interpretar a cena primária, com reportagens e o humor que a própria realidade propiciava aos chargistas e cartunistas.
É o caso de Genin, presente desde a primeira edição do jornal, lançado em novembro de 1979, autor da genial capa com a cobertura do julgamento em Juiz de Fora.
Nela estão os jornalistas no banco dos réus e o Cals aparece assombrado com o colar de esmeraldas em volta do pescoço. Genial, como foi O Cometa.
*Carlos Cruz é um dos fundadores, ex-diretor e repórter do jornal O Cometa Itabirano. Atualmente edita este site Vila de Utopia.
Essa é pros cegos morais que insistem em dizer que não havia corrupção nos desgovernos militares.
Mas como muitos sequer acreditam que a terra seja redonda, não sei se vai adiantar.
Caro Carlos, muito boa lembrança. Foram momentos duros. Mas esse tempo já passou, agora a situação piorou e, muito. Sorte de Itabira que a Vila de Utopia circule pela cidade, fala da prefeitura e da câmara sem pisar na ética, sem recalques, sem mentiras e vilipêndios dos culpados de maus feitos, está limpo e com credibilidade crescente. Também gosto muito da segunda fase do jornal editado pelo jornalista Marcelo Procópio e Ângelo Campos que compraram e pagaram as partes dos outros Mininos do jornal. Marcelo modernizou as páginas provincianas com mulheres jornalistas e gente jovem e velha de universidades. Capas fantásticas foram editadas nesta segunda fase. Uma edição de 2013, Claro Enigma, é ainda uma capa valiosa para o momento em que vivemos. Agora, em tempos brutais de feiquinius o Cometa vive em outro corpo mas não é a mesma coisa e inda bem, pois nada dura para sempre e assim é que se renova as ideias, com sangue novo.