Com a derrubada do decreto do IOF, Congresso enfrenta Lula e escancara a luta de classes no parlamento brasileiro
Lula em Salvador (BA), em 2 de julho de 2025, onde participou das celebrações pelos 202 anos da Independência do Brasil
Foto: Ricardo Stuckert/PR
Valdecir Diniz Oliveira*
A crise entre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Congresso Nacional não é apenas uma disputa por decretos, emendas ou cargos.
É a manifestação explícita de uma luta de classes travada dentro das instituições, onde os interesses da elite econômica colidem com os projetos de inclusão social e justiça tributária.
A derrubada do decreto que aumentava o IOF, imposto que incide sobre operações financeiras, foi um marco simbólico.
Isso, não apenas por ser o primeiro decreto presidencial derrubado em mais de três décadas, mas por revelar a verdadeira natureza da maioria parlamentar: um Congresso capturado por interesses privados em defesa direta de seus próprios lucros.
A votação relâmpago, articulada por líderes do centrão e da direita, ignorou acordos prévios com o governo e atropelou o debate público. O resultado foi uma vitória da elite financeira, que se recusou a contribuir minimamente com o orçamento público, mesmo diante de um país com desigualdades abissais.
Articulações poderosas
Entretanto, a ideia de que o Congresso está “capturado por interesses privados” é verdadeira, mas incompleta.
A derrubada do decreto do IOF não foi obra exclusiva de parlamentares empresários, embora a maioria tenha vínculos diretos com o setor privado.
O que se viu foi uma articulação poderosa entre frentes parlamentares temáticas, que representam setores estratégicos da elite brasileira.
Destaque para a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Com mais de 300 membros, é a maior bancada do Congresso. Representa grandes produtores rurais, latifundiários e exportadores, e atua contra políticas ambientais, regulação fundiária e tributação do agronegócio.
A Bancada da Mineração, embora menor em número, exerce forte influência em pautas de licenciamento ambiental e exploração de recursos naturais. Atua para flexibilizar regras em benefício das grandes mineradoras, mantendo as isenções ficais para exportação de produtos primários.
A Bancada da Bala também tem papel nessa disputa. Com cerca de 290 parlamentares, defende o armamento civil, o endurecimento penal e o fortalecimento das forças de segurança. Tem vínculos com setores militares e a indústria bélica.
Outra forte frente parlamentar reacionária e conservadora é Bancada Evangélica. Com mais de 230 membros, promove pautas morais e conservadoras, mas também se alinha a interesses econômicos em votações estratégicas, como na derrubada do decreto do IOF.
Essas frentes se sobrepõem e se articulam com eficácia impressionante. Muitos parlamentares pertencem a mais de uma delas, o que potencializa sua capacidade de bloqueio institucional.
A queda do decreto do IOF foi resultado de uma coalizão informal entre esses grupos, que se uniram para proteger interesses econômicos e ideológicos comuns, a exemplo da manutenção de privilégios fiscais, controle sobre o orçamento via emendas parlamentares e resistência a reformas progressistas.
Portanto, o Congresso brasileiro tem funcionado como um campo de batalha onde setores organizados da elite conservadora e econômica defendem seus territórios com força.
E qualquer tentativa de redistribuição, seja via tributação progressiva, regulação ambiental ou fortalecimento de políticas públicas, será enfrentada com uma resistência coordenada e contundente como se viu ao derrubar o decreto do IOF.
A disputa é ideológica
A argumentação de que o decreto afetaria negativamente os mais pobres, e não apenas os mais ricos, não se sustenta.
Isso porque, o aumento do IOF proposto pelo governo impactaria operações financeiras de maior valor, atingindo principalmente a elite econômica e grandes empresas.
O veto ao decreto, portanto, não foi uma ação técnica, mas sim uma reação política e ideológica de um Congresso majoritariamente alinhado com os interesses do capital.
Essa resistência revela um conflito distributivo profundo: quem deve pagar a conta do Estado brasileiro?
Atualmente, são os mais pobres que arcam, proporcionalmente, com os maiores encargos tributários.
O governo Lula tenta reverter essa lógica e exigir dos que mais lucram uma contribuição justa – e encontra, no Congresso, uma muralha construída pelas frentes temáticas reacionárias e conservadoras.
Combustível eleitoral
Em meio ao impasse institucional, Lula pode transformar esse conflito em vantagem política. Ao se posicionar como defensor da justiça social e enfrentar abertamente os interesses do “andar de cima”, o presidente reforça sua imagem de líder popular e coerente com seu histórico.
A narrativa do governo – “quem tem mais, paga mais” – começa a ganhar força como eixo da campanha de 2026, especialmente entre os eleitores de baixa renda e militantes ativistas progressistas.
A oposição acusa o Executivo de fomentar uma guerra de classes e de utilizar as redes sociais como instrumento de pressão sobre o Congresso. E, de certo modo, não está errada.
O governo de fato assumiu a disputa política como estratégia, mas é preciso lembrar que a luta de classes não foi inventada por Lula.
Ao se posicionar abertamente contra os privilégios da elite econômica e ao mobilizar a sociedade em defesa da justiça tributária, o presidente transforma o embate em narrativa política legítima.
Longe de enfraquecê-lo, esse confronto pode consolidar Lula como o único líder político disposto a enfrentar os interesses estruturados do poder econômico e resistir à pressão institucional do Congresso.
Em tempos de descrença e apatia, essa postura pode ser vista não como radicalismo, mas como coragem – e como um divisor de águas para a campanha de 2026.
O que está em jogo
Mais do que um decreto, está em disputa o projeto de país. De um lado, um governo que busca ampliar a arrecadação para financiar políticas públicas e combater desigualdades.
Do outro, um Congresso dominado por frentes parlamentares que atuam como bastiões do conservadorismo econômico, pressionando por recursos, cargos e isenções que perpetuam privilégios.
Nessa guerra, ou melhor, nessa luta de classes institucionalizada, Lula parece decidido a vestir o uniforme simbólico do proletariado e dos despossuídos dos meios de produção.
Não apenas para governar, mas para disputar corações, mentes e votos em nome de um projeto de país mais justo.
Seu enfrentamento com o Congresso revela um esforço contínuo para transformar, ainda que lentamente e sob intensa resistência das forças reacionárias, o capitalismo brasileiro, modernizando, retirando-o do jugo dos “coronéis” modernos, dos “capitães” da indústria e do agronegócio monoexportadora, que forçam a continuidade das isenções tributárias para o grande capital.
Seu enfrentamento com o Congresso revela um esforço contínuo para transformar, ainda que lentamente e sob intensa resistência das forças reacionárias, o capitalismo brasileiro, modernizando-o e tentando libertá-lo do jugo dos “coronéis” modernos, dos “capitães” da indústria e do agronegócio monoexportador.
Esses setores, profundamente enraizados nas estruturas de poder, pressionam pela continuidade das isenções tributárias que favorecem o grande capital, perpetuando um modelo econômico concentrador, excludente e resistente a qualquer tentativa de redistribuição de renda.
Ou seja, não se trata de Lula promover uma revolução socialista ou comunista, mas de reformar o capitalismo por dentro, tensionando seus limites, para que o fruto do trabalho realmente compense e não se converta, como ocorre historicamente, em simples aumento da mais-valia.
É a tentativa de reequilibrar a balança entre capital e trabalho, garantindo que o esforço produtivo da maioria não continue sendo apropriado quase exclusivamente pelo lucro dos poucos ricos.
*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador