Lenin Novaes*
“Um dia/Um ser de luz nasceu/Numa cidade do interior/E o menino Deus lhe abençoou/De manto branco ao se batizar/Se transformou num sabiá/Dona dos versos de um trovador/E a rainha do seu lugar/Sua voz então/Ao se espalhar/Corria chão/Cruzava o mar/Levada pelo ar/Onde chegava espantava a dor/Com a força do seu cantar/Mas aconteceu um dia/Foi que o menino Deus chamou/E ela se foi pra cantar/Para além do luar/Onde moram as estrelas/E a gente fica a lembrar/Vendo o céu clarear/Na esperança de vê-la, sabiá/Sabiá que falta faz sua alegria/Sem você meu canto agora é só melancolia/Canta, meu sabiá/Voa, meu sabiá/Adeus, meu sabiá/Até um dia”.
Letra e melodia de “Um ser de luz” – tributo definitivo a Clara Nunes, dona da voz de uma das intérpretes que emoldurou o samba – se compuseram num processo de dor, angústia, consternação. João Nogueira conseguiu convencer o marido dela, Paulo César Pinheiro, seu amigo, compadre e o mais constante parceiro, a fazer o samba em homenagem à cantora que mais havia gravado composições da dupla. Argumentou que na mídia se falava de música a ser lançada em homenagem a Clara, e isso era tarefa dos dois. Aí o samba saiu, a partir de um cantarolar de Mauro Duarte, também parceiro da música.
No dia 2 de abril de 1983, a morte da cantora, no auge da carreira e recordista em vendas de discos, causou grande comoção no país. Quase às vésperas de completar 41 anos – ela nasceu 12 de agosto de 1942, em Cedro, à época, distrito do Município de Paraopeba, interior de Minais Gerais – Clara Nunes se submeteu a cirurgia de varizes. Teve reação alérgica ao anestésico, sofrendo parada cardíaca e, após 28 dias em coma, foi declarada morta em razão de choque anafilático.
Na subchefia de reportagem da TV Globo, à época, fizemos cobertura diária do caso da cantora com especial dedicação. Antes, cerca de quatro anos a entrevistara para a coluna musical que eu editava no jornal O Fluminense, com sede em Niterói e circulação na larga maioria dos municípios do antigo estado do Rio. Bem, o divulgador da Odeon, Francisco Rodrigues, me passava informações diariamente, e foi ele quem me avisou da morte de Clara Nunes. O velório, na Portela, em Madureira – atualmente Clara Nunes dá nome à rua onde se localiza a sede da escola – foi acompanhado por uma multidão, que seguiu o cortejo fúnebre até o cemitério São João Batista, em Botafogo.
No samba: voz e ritmo em sintonia
Clara Nunes, caçula de sete filhos de Manuel Ferreira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes, ficou órfã menina e foi criada por irmãos, ouvindo Elizeth Cardoso, Ângela Maria e Carmem Costa. Trabalhou como tecelã e, à noite, fez o curso normal. Atuou no coral da igreja, já em Belo Horizonte, e conheceu o violonista Jadir Ambrósio, que a levou a cantar em programas de rádio. Tinha 16 anos e era conhecida como Clara Francisca. Ela venceu a etapa mineira do concurso A Voz de Ouro ABC, cantando “Serenata do adeus”, de Vinicius de Moraes e que fora gravada por Elizeth Cardoso. Na final do concurso, em São Paulo, ficou em terceiro lugar, ao cantar Só adeus, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia.
Já com o nome de Clara Nunes cantou na Rádio Inconfidência de Belo Horizonte e, por três anos seguidos, foi considerada a melhor cantora de Minas Gerais. Cantou em clubes e boates e se apresentou em programas de televisão. Em 1963 comandou o programa Clara Nunes Apresenta, na TV Itacolomi, onde se apresentaram inúmeros artistas, entre os quais Altemar Dutra e Ângela Maria. Dois anos depois se mudou para o Rio de Janeiro, cantando boleros em programas de televisão.
O primeiro disco, A voz adorável de Clara Nunes, lançado em 1966, tem o repertório repleto de boleros e sambas-canções. Lançou dois compactos duplos em 1967 e 1968, ano que gravou o segundo disco, Você passa e eu acho graça, título tirado da música de Ataulfo Alves e Carlos Imperial, que lhe proporcionou sucesso. No repertório, Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque de Holanda. No ano seguinte lançou A beleza que canta e venceu o Festival da Canção Jovem de Três Rios, com Pra que obedecer, de Paulinho da Viola e Luis Sérgio Bilheri.
A sintonia da voz com o ritmo do samba aconteceu a partir do disco Clara, Clarice, Clara, em 1972. No repertório Sempre Mangueira, Seca do nordeste, Alvorada no morro, Tempo à bessa, Morena do mar/Puxada da rede do xeréu, Ilu Ayê (Terra da vida), Opção, Anjo moreno, Tributo aos orixás, O último pau de arara/Vendedor de caranguejo e Clarice, esta de Caetano Veloso e Capinam. Destaque para Seca do nordeste, samba-enredo da Tupi de Brás de Pina, considerado um dos melhores de todos os tempos.
Em 1973, o disco Clara Nunes foi puxado por Tristeza pé no chão, de Armando Fernandes, que, em edição anterior, em campacto simples, vendera mais de 100 mil cópias. Naquele ano participou do show O poeta, a moça e o violão, com Vinicius de Moraes e Toquinho, no Teatro Castro Alves, em Salvador, Bahia; e fez shows em Lisboa, Portugal, entre outros países da Europa, como na Suécia, onde gravou especial junto com a Orquestra de Sinfônica de Estocolmo para a TV local.
Clara Nunes bateu recorde de vendagem de disco com Alvorecer, tendo no repertório Contos de areia, de Romildo Bastos e Toninho Nascimento; Menino Deus, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro; Meu sapato já furou, de Mauro Duarte e Elton Medeiros; Alvorecer, de Ivone Lara e Délcio Carvalho; e Esse meu cantar, de João Nogueira. No mesmo ano de 1974 atuou com Paulo Gracindo no show Brasileiro, profissão esperança, em homenagem à vida da cantora Dolores Duran e do compositor e jornalista Antonio Maria, que ficou em cartaz no antigo Canecão até 1975 e tem registro em excelente disco.
No ano de 1975 se casou com Paulo César Pinheiro e lançou Claridade, obtendo outro recorde de vendas. No repertório. O mar serenou, Sofrimento de quem ama, A deusa dos orixás, Juízo final, Tudo é ilusão, Valsa de realejo, Bafo de boca, Ninguém tem que achar ruim, Último bloco, Às vezes faz bem chorar, Vai amor e Que seja bem feliz. De 1976, o Canto das três raças, também título que abre o repertório, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, contem Lama, de Mauro Duarte; Alvoroço no sertão, Tenha paciência, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito; Ai, quem me dera, Risos e lágrimas, de Nelson Cavaquinho, Rubens Brandão e José Ribeiro; Basta um dia, de Chico Buarque de Holanda; Fuzuê, de Romildo e Toninho; Meu sofrer, Retrato falado, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro; e Embala eu.
Eis o Canto das três raças:
“Ninguém ouviu/Um soluçar de dor/No canto do Brasil/Um lamento triste/Sempre ecoou/Desde que o índio guerreiro/Foi pro cativeiro/E de lá cantou/Negro entoou/Um canto de revolta pelos ares/No Quilombo dos Palmares/Onde se refugiou/Fora a luta dos Inconfidentes/Pela quebra das correntes/Nada adiantou/E de guerra em paz/De paz em guerra/Todo o povo dessa terra/Quando pode cantar/Canta de dor/E ecoa noite e dia/É ensurdecedor/Ai, mas que agonia/O canto do trabalhador/Esse canto que devia/Ser um canto de alegria/Soa apenas/Como um soluçar de dor”.
A nossa Rainha Quelé, Clementina de Jesus, tem participação especial em Partido Clementina de Jesus, de Candeia, no disco As forças da natureza, de 1977, contendo, além da faixa-título, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, Senhora das candeias, Perdão, Homenagem à velha guarda, Rancho da primavera, Coisa da antiga, de Nei Lopes e Wilson Moreira; Sagarana, A flor da pele, primeira música de Clara Nunes, em parceria com Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro; Coração leviano, de Paulinho da Viola; Palhaço e Fado tropical, de Chico Buarque de Holanda. Creio que seja o disco com melhor conteúdo na discografia da cantora.
Em 1978 colocou nas lojas Guerreira, no qual se destacam a música que dá título ao disco, “Mente”, “Candongueiro” e “Jogo de Angola”. Ano seguinte, no Esperança, sobressaem “Banho de manjericão”, “Obsessão”, “Na linha do mar”, “Minha gente do morro”, “Ê favela”, “Jardim da solidão”, “Feira de mangaio” e “Oricuri (Segredos do sertanejo)”. Brasil mestiço é de 1980, com destaque para “Morena de Angola”, de Chico Buarque de Holanda, em homenagem à cantora; “Regresso” e “Nação”; e Clara, lançado em 1981, onde se destaca “Portela na avenida”, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro:
“Portela/Eu nunca vi coisa mais bela/Quando ela pisa a passarela/E vai entrando na avenida/Parece/A maravilha de aquarela que surgiu/O manto azul da padroeira do Brasil/Nossa senhora aparecida/E vai se arrastando/E o povo na rua cantando/É feito uma reza, um ritual/É a procissão do samba abençoando/A festa do divino carnaval/Portela/É a deusa do samba, o passado revela/E tem a velha guarda como sentinela/E é por isso que eu ouço essa voz que me chama/Portela/Sobre a tua bandeira, esse divino manto/Tua águia altaneira é o espírito santo/No templo do samba/As pastoras e os pastores/Vêm chegando da cidade, da favela/Para defender as tuas cores/Como fiéis na santa missa da capela/Salve o samba, salve a santa, salve ela/Salve o manto azul e branco da Portela/Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”.
Clara Nunes lançou o último disco, Nação, em 1982. Serrinha – homenagem à escola Império Serrano e ao Morro da Serrinha, reduto de jongo – de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, se sobressai no repertório.
Homenagens
Em 1988, após a morte da cantora, a irmã mais velha dela, Maria Gonçalves, reuniu todos os objetos da artista e criou um acervo anexado à creche que tem o nome de Clara Nunes em Caetanópolis, em Minas Gerais. Já a Odeon explorou os maiores sucessos no disco Clara Nunes, o canto da guerreira. No disco Doce recordação, de 1986, produzido por Ktsunori Tanaka e lançado no Japão, a Velha Guarda da Portela canta Flor do interior, uma das músicas que homenageia a cantora. Aluizio Machado, consagrado compositor da Império Serrano, é autor de Clara, também em homenagem a Clara Nunes.
Depois, a Odeon lançou Série 2 em 1, compilação em CD de dois LPs: Brasil Mestiço e Nação, e a gravadora norte-americana World Pacific lançou Best of Clara Nunes no mercado dos Estados Unidos. Em 1993, a Som Livre lançou Clara Nunes – 10 anos – em lembrança ao décimo aniversário de morte da cantora. Em 1995, a Odeon lançou Clara Nunes com Vida, produzido por Paulo César Pinheiro e José Milton, no qual foram acrescidas as vozes de outros artistas: Emílio Santiago, Martinho da Vila, Chico Buarque, Nana Caymmi, Roberto Ribeiro, João Bosco, Elba Ramalho, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Alcione, Marisa Gata Mansa, Paulinho da Viola, Ângela Maria e João Nogueira, fazendo duetos com Clara Nunes, e O Talento de Clara Nunes, outra coletânea.
Em 1996, a Odeon reeditou a obra completa de Clara Nunes, que inclui 16 discos com as capas reproduzidas do original, remasterizados no Estúdio Abbey Road, em Londres, considerado o melhor do mundo. Três anos após a morte da cantora, Alcione gravou Claridade, disco com os maiores sucessos da carreira da amiga. Em 2001, foi apresentado no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, o musical Clara Nunes Brasil Mestiço, e no ano seguinte foi lançado o livro Velhas Histórias, Memórias Futuras, de Eduardo Granja Coutinho, no qual o autor faz várias referências à cantora.
Nas comemorações aos seus 60 anos, que ocorreriam em 2003, a gravadora DeckDisc lançou Um Ser de Luz – Saudação à Clara Nunes, produzido por Paulão Sete Cordas e que contou com a participação de diversos artistas interpretando parte de seu repertório: Mônica Salmaso, Alvorecer; Élton Medeiros, Lama; Rita Ribeiro, Morena de Angola; Mar’tnália, Ijexá; Fafá de Belém, Sem Compromisso; Renato Braz, Menino Deus e Nação; Falamansa, Feira de Mangaio; Monarco e Velha Guarda da Portela, Peixe com Coco; Cristina Buarque, Derramando Lágrimas; Dona Ivone Lara, Juízo Final; Nilze Carvalho, A Deusa dos Orixás; Teresa Cristina, As Forças da Natureza; Pedro Miranda, Candongueiro; Alfredo Del Penho, Coisa da antiga; Wilson Moreira, O Mar Serenou; Helen Calaça, Basta um Dia, e ainda participações de Seu Jorge, Walter Alfaiate e Elza Soares, entre outros.
A Odeon lançou Clara Nunes canta Tom e Chico, coletânea na qual compilou algumas gravações de discos anteriores da cantora, entre elas Apesar de Você, Umas e Outras, Desencontro, Morena de Angola e Novo Amor, todas de Chico Buarque; Insensatez e A Felicidade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, além de Sabiá, da dupla Tom Jobim e Chico Buarque de Holanda.
O jornalista Vagner Fernandes, em 2007, lançou Clara Nunes – Guerreira da Utopia, biografia da cantora, que reúne entrevistas com vários artistas, entre os quais Chico Buarque, Paulinho da Viola, Alcione, Hermínio Bello de Carvalho, Hélio Delmiro, Milton Nascimento, Monarco e Paulo César Pinheiro, além de familiares e amigos.
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o concurso nacional Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. Atualmente é assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3 Comentários
Gostei do seu artigo, super interessante o teu enfoque. adorei o teu site de forma {geral|global) irei retornar aqui mais vezes, eu tenho um blog sobre esse mesmo tema, visite ele mais tarde abraços.
Lenin , seu texto é um prazer de leitura e Clara está na memória dos brasileiros sempre lembrada ! Parabéns
O Brasil perdeu grandes personagens ,Clara Nunes Márcio greick,e muitos amei este artigo,me deixou com muita saudade