Cervejas por status e não por qualidade: a onda dos dublês de rico
Saudações, cervejeiros!
Por incrível que pareça, quase que em um quarto do século XXI, ainda temos quem beba cerveja para demonstrar status! E o pior, fazem isso da pior maneira possível, e, provavelmente, com os fins mais escusos também (no sentido moral).
Partindo dessa premissa um tanto quanto inarredável: “cervejas por status e não por qualidade”, é plausível que o texto de hoje acabe soando um pouco mais sociológico do que cervejeiro, em um sentido mais estrito do termo.
Contudo, tentarei pincelar alguma coisa de como o fenômeno retratado também se mimetiza dentro do universo das cervejas artesanais. Pois, assim como a vida imita a arte, infelizmente, os círculos cervejeiros artesanais também costumam imitar alguns (maus) costumes do mainstream e dos bebedores das cervejas de massa em geral.
Dublando o rico: com uma garrafinha verde na mão
Existe um mito urbano de que as cervejas em garrafas verdinhas são melhores. Tal estapafúrdia “teoria” já serviu, mais antigamente, para fundamentar o entendimento de que a Stella Artois é uma grande cerveja, requintada e de muita classe.
É como se ao segurar a garrafinha verde da Stella, seu detentor acabasse por possuir poderes mágicos e inenarráveis de sobrelevo de status social.
Certamente, não serei arrogante ou displicente em derrogar toda aura social que envolve o ato de consumir uma cerveja. A partir dele que o status (ou a forma de imitar um status social acima) acaba se revelando ao mundo exterior.
De igual sorte, a garrafinha verde da Heineken também é algo inerente aos dublês de rico. Ela serve para uma fácil identificação de uma pessoa portadora de um alto status social. Alguém da mais alta estirpe bebe sempre cervejas diferenciadas.
Ademais, ela é a linguagem usual e cotidiana que leva aos bebedores a reconhecer que a garrafinha verde é um indicativo simbólico de sucesso.
Não é. Nunca foi. Nunca será.
Mas daí a contrapor anos e anos de um constructo social tão arraigado, soa como uma tarefa inglória, uma missão impossível.
Reproduzindo linguagens: o status e a cerveja
Beber socialmente é uma das justificativas mais usadas pelas pessoas para ratificarem o porquê elas bebem. Bebem porque os outros (amigos, familiares, colegas) convidam. Bebem porque todos no mesmo ambiente estão bebendo e assim por diante.
Eu bebo porque gosto mesmo. Não preciso de convite.
Inobstante, a premissa do beber socialmente é aquilo que justifica o título do texto: beber por status. Só bebe por status quem bebe socialmente. Quem bebe antissocialmente, como o que vos fala, pouco se importa se as simbologias das bebidas estão adequadas às ocasiões.
Quem bebe socialmente se preocupa mais com a forma com a qual as bebidas são consumidas do que com as bebidas propriamente ditas.
É a reprodução da linguagem do consumo por status que justifica porque esse tipo de pessoa bebe. Quanto mais cara (ou, aparentemente cara) for a cerveja, mais status estará agregado ao seu consumo.
Decerto, a velha equação da qualidade sobre a quantidade acaba sendo invertida mais uma vez nessa conjuntura social. Quanto mais se tem a mostrar que se bebe, mais status estará agregado ao ato. Portanto, mais bebidas na mesa, mais garrafas verdinhas e quanto mais alto o som, mais status estará sendo demonstrado publicamente.
Status sobre a qualidade: porque ela não Importa ao dublê
A superficialidade latente do bebedor por status, vulgo dublê de rico, sobrepuja qualquer parâmetro qualitativo.
Do que adianta beber algo realmente bom se “ninguém” conhece. Aliás, provavelmente, nem ele mesmo conhece. Tampouco ele está interessado em conhecer. Já que o conhecimento gera um tipo de status muito diferente daquele pretendido pelo dublê. Ele tende a gerar o capital de conhecimento, algo raro e bem mais difícil de ser notado, mas é papo para outro texto.
Beber algo de qualidade, por mais que tenda a ser mais caro, não carrega a mesma simbologia linguística reproduzida por quem almeja ter o impacto mais imediato de uma garrafinha verdinha na mão ou de várias delas mergulhadas no gelo de um baldinho na balada.
Afinal, quem vai atrás de qualidade se o importante é ter um retorno imediato sobre aquilo que se está bebendo? Seu status social (ou sua emulação, melhor dizendo) dependem unicamente da imediatidade.
E, infelizmente, qualidade não se traduz em imediatidade. Nem para ser produzida, muito menos para ser apreciada.
A qualidade das cervejas artesanais e sua “falta de status”
Se já é difícil imaginar um cenário qualitativo propriamente dito, mais ainda é imaginar a situação em que alguém, pouco instruído no universo cervejeiro, deixe de atribuir mais status a uma garrafinha verde que a uma artesanal.
Para quem já consome cervejas artesanais com regularidade, e sabe o devido valor delas e da cultura cervejeira como um todo, soa quase que absurdo o caminho inverso. Isto é, achar que beber uma garrafa de Heineken ou de Stella Artois significa status, de qualquer forma que seja.
Pelo contrário, as pessoas sequer conhecem cervejas artesanais, e no final das contas, estão pouco interessadas em conhecer. Acham caro, acham “ruim”, acham tudo, menos bom ou aprazível. É como se “faltasse status às artesanais”, em detrimento das garrafas verdinhas.
Esse é o maior desafio da cultura cervejeira, trazer as artesanais como objeto de consumo viável e desejável. Pois, para a maioria esmagadora das pessoas que bebem cerveja, as artesanais são desinteressantes e não geram o status que elas intencionam alcançar (muitas vezes sem sequer poderem… o famoso: devendo e luxando – com cerveja ruim).
Saideira
Existem coisas que nós sabemos que jamais mudarão. Dentre todas elas, uma delas, eu suponho que seja a questão de se beber cervejas por (um falso) status.
São décadas de publicidade imersiva, tentando criar um falso status social de superioridade de classe em virtude do consumo de algumas cervejas. A publicidade é massiva e persuasiva, um quadro difícil de ser revertido.
Assim, desenha-se o contexto dos dublês de rico, os quais, tentando aparentar um status social que não possuem, recorrem a um meio relativamente barato para tanto: ostentar com uma garrafa verdinha na mão.
Talvez essa estratégia tenha seus préstimos, e alguns parceiros amorosos (pouco instruídos) sejam atraídos por alguém com uma garrafinha verde na mão… nada de novo, continuamos na missão da difusão da cerveja artesanal de qualidade, mostrando seus inúmeros estilos a quem se dispuser a conhecer.
Recomendação Musical
A recomendação musical de hoje é nostálgica para quem era adolescente nos idos dos anos 2000!
Deixo como registro indicativo a música Faith/Fame Remix, da banda de nu-metal Limp Bizkit. Uma regravação com toques autorais da música Faith do George Michael.
Afinal não tem como fugir da fama… ainda que você seja um dublê de rico e esteja bebendo uma garrafa verdinha só por status.
Saúde!
*Lauro Ericksen é um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) – o “deus mercado” -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta. Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!). Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno). A verdade doa a quem doer… E aí, doeu?