Aquele sujeito perturba antes do mais…

O Grito, de Edvard Munch (1863-1944)

Declaração em juízo

Carlos Drummond de Andrade

Peço desculpas de ser

o sobrevivente.

Não por longo tempo, é claro.

Tranquilizem-se.

Mas devo confessar, reconhecer

que sou sobrevivente.

Se é triste/cômico

ficar sentado na plateia

quando o espetáculo acabou

e fecha-se o teatro,

mais triste/grotesco é permanecer no palco,

ator único, sem papel,

quando o público já virou as costas

e somente baratas

circulam no farelo.

Reparem: não tenho culpa.

Não fiz nada para ser

sobrevivente.

Não roguei aos altos poderes

que me conservassem tanto tempo.

Não matei nenhum dos companheiros.

Se não saí violentamente,

se me deixei ficar ficar ficar,

foi sem segunda intenção.

Largaram-me aqui, eis tudo,

e lá se foram todos, um a um,

sem prevenir, sem me acenar,

sem dizer adeus, todos se foram.

(Houve os que requintaram no silêncio.)

Não me queixo. Nem os censuro.

Decerto não houve propósito

de me deixar entregue a mim mesmo,

perplexo,

desentranhado.

Não cuidaram que um sobraria.

Foi isso. Tornei, tornaram-me

sobre-vivente.

Se se admiram de eu estar vivo,

esclareço: estou sobrevivo.

Viver, propriamente, não vivi

senão em projeto. Adiamento.

Calendário do ano próximo.

Jamais percebi estar vivendo

quando em volta viviam quantos! quanto.

Alguma vez os invejei. Outras, sentia

pena de tanta vida que se exauria no viver

enquanto o não viver, o sobreviver

duravam, perdurando.

E me punha a um canto, à espera,

contraditória e simplesmente,

de chegar a hora de também

viver.

Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,

testes, ilustrações. A verdadeira vida

sorria longe, indecifrável.

Desisti. Recolhi-me

cada vez mais, concha, à concha. Agora

sou sobrevivente.

Sobrevivente incomoda

mais que fantasma. Sei: a mim mesmo

incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.

Por mais que me esconda, projeto-me,

devolvo-me, provoco-me.

Não adianta ameaçar-me. Volto sempre,

todas as manhãs me volto, viravolto

com exatidão de carteiro que distribui más notícias.

O dia todo é dia

de verificar o meu fenômeno.

Estou onde não estão

minhas raízes, meu caminho:

onde sobrei,

insistente, reiterado, aflitivo

sobrevivente da vida que ainda

não vivi, juro por Deus e o Diabo, não vivi.

Tudo confessado, que pena

me será aplicada, ou perdão?

Desconfio nada pode ser feito

a meu favor ou contra.

Nem há técnica de fazer, desfazer

o infeito infazível.

Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.

Cumpre reconhecer-me esta qualidade

que finalmente o é. Sou o único, entendem?

de um grupo muito antigo

de que não há memória nas calçadas

e nos vídeos.

Único a permanecer, a dormir,

a jantar, a urinar,

a tropeçar, até mesmo a sorrir

em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,

como neste momento estou sorrindo

de ser — delícia? — sobrevivente.

É esperar apenas, está bem?

que passe o tempo de sobrevivência

e tudo se resolve sem escândalo

ante a justiça indiferente.

Acabo de notar, e sem surpresa:

não me ouvem no sentido de entender,

nem importam que um sobrevivente

venha contar seu caso, defender-se

ou acusar-se, é tudo a mesma

nenhuma coisa, e branca.

(Pesquisa e divulgação: Cristina Silveira)

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