Aquele sujeito perturba antes do mais… Notícias sobre Carlos Drummond de Andrade

Presépio do Pipiripau no Museu de História Natural de Bh, MG

Foto: Alexandre Guzanshe/DA Press
Pesquisa: Cristina Silveira

Afonso Arinos (sobrinho)

Aquele sujeito perturba antes do mais. Os seus olhos pequenos, inquietos, movem-se, fundos, atrás dos óculos. Não fixam, não se fixam. Depois um modo esquisito de falar, rápido, baixo, enviesado, como quem fala sozinho. Na rua esgueira-se, escorrega de lado entre os homens, os automóveis, e as ideias. Quase sempre parece estar caçoando.

Na redação de um vago jornal pudibundo, órgão oficioso, que as eventualidades políticas fazem oscilar barometricamente, como diferenças na pressão atmosférica, aquele sujeito inquieto escrevia continuamente, com rapidez e atenção a notícias indiferentes.

O redator chefe parecia interessar-se profundamente por todas as coisas sem importância, naquele jornal de tiragem limitada como as edições de luxo, composto em caixa, com um revisor super-realista e com o assoalho ameaçando desabamento iminente, na sala da direção.

Sem contar o cantinho, perto do tanque, entre mangueiras, para onde se descia a necessidade, na frescura da noite, porque as acomodações dessa natureza eram consideradas supérfluas, como os linotipos.

Afonso Arinos (sobrinho) (1905-1990)

Mas já nas notas sociais ele era livre. Fazia as perfídias: publicava os poemas. Os seus e os alheios, mas os que ele escolhia os bons. Sendo que os seus não assinava, por pudor ou por orgulho: não sei.

Depois, junto com João Alphonsus, ou sem ele, quando lhe impunha o castigo de ficar, saia, tomava a media, ia ao cinema, que assistia calado, interessado. Era intimo e distante. Não fugia às convivências, mas não facilitava proximidades. Vivia como que numa defesa contra todos. Não tinha nenhuma literatura. Só me lembro de tê-lo ouvido recitar uma vez. Mas dentro de casa, a portas fechadas, entre dois amigos. E o fez naturalmente sem que nenhum pedisse. Foi ao armário e tirou o caderno, como um outro iria buscar café.

Nunca compareceu ao sindicato literário-anedótico que se reunia na casa do promotor, nem acompanhou as serenatas erradias, com garrafas de porto e chuffeurs que tocavam violão, pela estrada de Sabará ou Vila Nova.

Mas sempre se considerou um grande poeta, o maior poeta de Minas Gerais. Ainda aqui o frio julgamento daquele sujeito se objetivava de uma forma independente e desinteressada. Considerando a sua poesia desligada dele, autônoma, imperativa, não lhe ficava mal externar sobre ela um juízo lúcido e consciente.

De fato, aquele sujeito, Carlos Drummond de Andrade, é um grande poeta, o maior poeta de Minas Gerais. E quem disser o contrário não sabe o que está dizendo, ou não leu Alguma Poesia.  Pena é que ele não tenha reunido ai alguns outros poemas que mereciam sair.

Pedro Nava em 1976, na varanda da casa onde morou CDA no bairro Floresta, em BH. Foto: Jorge Contijo/EM/D.APRESS – 17/12/76)

Tendo, sobretudo, ideia de uma espécie de manifesto e de um Presépio de Pipiripau que me parecem da melhor substância. Em todo caso, mesmo sem muitos dos poemas guardados na gaveta, naquela casinha de varanda, defronte da igreja enorme, toda em andaimes, que nunca se acaba, mesmo sem muitos poemas bons que deviam sair,.

Alguma Poesia ainda pode ser considerado uma antologia. Nos seus cinquenta e quatro poemas há versos de que se pode não gostar, não há um só poema que desagrade.

Assim mesmo o que chamo não gostar, vae no sentido de não concordar. Isto é, há versos que não me despertaram emoção poética, por eles mesmos, mas que podem ser os preferidos de muita gente boa.

Carlos Drummond de Andrade é poeta. É mesmo a única coisa que se sabe ao certo a espeito dele, homem fechado, meio frio, com horror a abraços, pancadinhas, pilherias e outras vias de comunicação.

E essa pura obstinação na poesia nos faz pensar todos nós que não tivemos força para nos desinteressar do resto, e que, meio sem querer e meio de proposito, nos fomos deixando levar pela vida múltipla.

O Poeta Come Amendoim, poesia dedicada a CDA

O fato é que ele, na sua geração, marcou, desde o princípio, como um mestre. Os mais avançados, mais conhecidos, os que já doutrinavam nos serões cariocas, propondo gravemente uma série de preconceitos para a conquista da liberdade estética, os que dançavam em S. Paulo as danças selvagens de índios e pretos, pensando ter encontrado assim a chave do mistério brasileiro, todos os que conversavam contra a Academia, os que arrasavam Bilac e Casemiro, com a aprovação paternal do senhor ministro Graça Aranha, conheciam de nome esse desconhecido.

Depois da bandeira, organizada pelos paulistas, a Ouro Preto e Belo Horizonte (e, como a de Fernão Paes, fracassada, pois que os bandeirantes só trouxeram turmalinas, em vez de esmeraldas) o nome de Carlos Drummond (como era conhecido naquele tempo), tornou-se, além de conhecido, respeitado. Mário de Andrade dedicou-lhe o primeiro poema do Clan do Jaboti e Prudente Neto confidenciava, entre portas cerradas, que “o poema da pedra era a melhor coisa do mundo.”

Depois Carlos, João Alphonsus, Pedro Nava e Emílio Moura pensaram em publicar, juntos, um livro de versos. O título era modesto, Antologia dos Quatro Poetas Mineiros. Não saiu. Os autores dão várias razões para o insucesso, inclusive falta de vergonha, e de dinheiro.

Desconfio, porém, que a razão séria é terem sido furados pelos meninos de Cataguazes que escreveram também um livro cumulativo, provando que os poetas de Minas eram mais que quatro. Agora Carlos Drummond de Andrade deixou o Diário de Minas e burocratizou-se. Mas continuou a operar na sombra, a reagir.

E, de repente, larga o seu livro, o seu admirável livro, como um cachorro bravo, como uma vingança contra os homens de fraque, que salvam a pátria entre a sombra das magnólias. Seu livro é um grito de liberdade, é uma viagem expandida, uma evasão.

Mas a nossa polícia de costumes intelectuais que o tenha de olho. Aquele poeta, Carlos Drummond de Andrade, é um agitador irônico e vitorioso. Os guardas-civis das letras que ponham o apito na boca, porque o crime dele é manifesto: não pode ou não quis esconder o seu talento.

Presépio do Pipiripau no Museu de História Natural de Bh, MG (Foto: Alexandre Guzanshe/DA Press)

O poeta come amendoim 

À Carlos Drummond de Andrade

(1924)

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados…

Foi o Sol que por todo o sítio imenso do Brasil

Andou marcando de moreno os brasileiros.

Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer…

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos…

Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.

Os Caramurus conspiram na sombra das mangueiras ovais.

Só o murmurejo dos cre’m-deus-padres irmanava os homens de meu país…

Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,

Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu…

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.

A gente inda não sabia se governar…

Progredir, progredimos um tiquinho

Que o progresso também é uma fatalidade…

Será o que Nosso Senhor quiser!…

Estou com desejos de desastres…

Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas

Se encostando na canjerana dos batentes…

Tenho desejos de violas e solidões sem sentido

Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil…

Mastigado na gostosura quente do amendoim…

Falado numa língua curumim

De palavras incertas num remeleixo melado melancólico…

Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons…

Molham meus beiços que dão beijos alastrados

E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas…

Brasil amado não porque seja minha pátria,

2

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der…

Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,

O gosto dos meus descansos,

O balanço das minhas cantigas amores e danças.

Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,

Porque é o meu sentimento pachorrento,

Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

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