A verdade sobre a mentira
Por Milton Rezende
Tenho dito mentiras
sem tomar consciência
de sua contextura falsa.
Não tenho desmentido o que digo
pois tenho a concepção de que minto
sobretudo para mim mesmo.
Sendo assim as minhas mentiras
não podem acarretar
na perda de qualquer afeição.
E já que é precisamente sobre a falsidade
que se alicerça o convívio entre os homens,
as palavras de mentira ou verdade que eu disser
nada significam de permanente num relacionamento.
Mas não posso deixar de convir
que assim fazendo, a cada dia
eu amanheço mais distante de mim.
Aguaceiro
A chuva cessou de chover
e já agora eu posso
tirar as mãos dos bolsos
e atravessar a rua.
Mas já não tenho mãos
e nem tampouco posso
atravessar esta rua, pois
a água levou-me as pernas.
E a rua, embora chovida, está seca.
Eu fui a chuva que choveu e ninguém viu.
Identificação
Identifico-me com a noite
e com o que ela traz
de específico a si mesma,
e assim fazendo, aceito
o convívio de seres opacos
e da nova ordem e estado de coisas
que o escuro inaugura.
Identifico-me com o avesso
sou aliás o próprio avesso de mim,
e assim sendo, conheço
as esquinas sombrias
nas quais se disfarça
a inexorável nulidade.
Volto de manhã para casa,
e num balanço isento da noite
nenhum acréscimo se me acrescentou
de forma permanente.
Voltei eu mesmo sozinho e íntegro,
apesar das concessões necessárias
ao convívio comum entre os homens.
Nada ganhei e também nada de mim
se perdeu, exceto esta vida
que amanhece mais velha.
Ilustração: Reprodução/Amino