A noivinha de Aristides e a homofobia na esquerda

Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Por Fabrício Rosa*

Sou policial rodoviário federal. E gay. E socialista.

Sempre me sinto constrangido quando o aparato policial é mobilizado de modo politicamente seletivo.

A prisão da mulher que xingou Bolsonaro, realizada pela PRF, em Resende-RJ, nesse final de 2021, causou-me constrangimento (e também à maior parte dos policiais progressistas do país).

Não porque a detenção teria sido ilegal. Mas por sua seletividade.

Na ocasião, a protestante foi conduzida às barras da Justiça por ter injuriado o presidente, o que nos levou a perguntar: quantos carros transitavam desfilando uma Dilma Rousseff de pernas arreganhadas, pronta para ser penetrada, há pouquíssimo tempo?

Alguém teria sido preso naquela ocasião? Quantas vezes Jean Wyllys foi chamado de pedófilo e Lula de alcoólatra? Se viu algum flagrante? Ou estariam essas pessoas descobertas da capa de proteção jurídica que a todos deveria alcançar?

A atuação seletiva é constrangedora.

Como também tem sido constrangedor assistir à festança de uma esquerda que dança sorridente em um baile homofóbico por ela produzido.

A festa a que me refiro se chama Noivinha de Aristides e está sendo frequentada por muita gente.

Já vi anarquistas, comunistas, socialistas, sociais democratas – inclusive LGBTQIA+, vestidos de gala, estupefatos e convencidos de que vale tudo para “se vingar” de Bolsonaro.

Parece que estão a comemorar a chegada de um salvador frente a uma possível ausência de argumentos contra o governante dessa valsa bufa que se transformou o Brasil.

Então, eis que desce dos céus, para a todos redimir, uma urdidura redentora!

Ocorre que, quando vista de pertinho, a alegação salvadora nada mais é que a requentada e velha homofobia.

“Ah, mas o caso da ‘Noivinha’ não é um apontamento homofóbico”.

É sim.

Comecemos pela “Noivinha”.

Aciona-se uma palavra no diminutivo e no feminino, representativa de um corpo meigo, desprovido de falo e, para alguns, carente de poder, na intenção de colocar a feminilidade em uma condição subalterna, desprestigiada, envergonhada, acuada, submissa ao macho.

A isso chamamos machismo, não?

Logo em seguida vem o tal “Aristides”.

Mobiliza-se um instrutor de judô, que também é militar, para fazer a potencial punição pública mais profunda e potente. Chamamos isso falocentrismo, né?

Todo esse enredo argumentativo é construído para evidenciar que o “digníssimo presidente” poderia ter tido um relacionamento homoafetivo na época em que foi aluno-militar e para, logo em seguida, equiparar essa suposta relação a algo vergonhoso que – quando publicamente exposta, causaria sofrimento e humilhação.

Companheiro, menos!

Sabemos que utilizar argumentos que coloquem na mesma altura o fato de alguém “ser gay”, ou “ter tido um relacionamento homoafetivo”, ao sinônimo do “risível” é ser homofóbico. Ainda que se trate de uma “homofobia recreativa”.

Você sabe, há bastante tempo, que a homossexualidade não é uma condição que desqualifica ninguém. É apenas uma dentre as múltiplas possibilidades da sexualidade/existência humana.

Por isso, lançar mão de um “veado” ou “baitola” [acreditando estar desqualificando alguém] é ser homofóbico.

E outra. Não quero generalizar. Mas, tenho percebido que aqueles que foram colocados no lugar do risível são os mesmos que são lançados no mercado da violência.

E ela – a violência, nem sempre se apresenta no formato de um tapa. Ela pode vir como um riso, uma piada, uma gargalhada.

Uma história pessoal: eu demorei muitos anos (décadas) para exercer o “direito humano” de apresentar a pessoa que eu amava para minha família. Muitos outros LGBTQIA+ ainda não realizaram esse direito.

E o fator impeditivo para que esse direito se realize nem sempre se apresenta no formato de “sopapo”, “soco” ou “porrada”.

Ele vem embalado no riso cínico ou amargo [posterior a um silêncio constrangedor] ou na ferocidade de uma gargalhada.

Estou querendo dizer que o riso pode sim ferir. Muito. Mas de forma bem mais dolorida ele fere as milhões de vítimas da LGBTfobia do que a Bolsonaro.

“Ah, mas queremos denunciar a incoerência”.

De quem? A nossa [da esquerda] ou a dele?

Se Bolsonaro teve um relacionamento com outro homem essa é uma questão dele. Se esse fato se deu no público ou no privado, essa situação jamais deveria ser acionada para causar sofrimento ao ser equiparada à vergonha.

“Ah, mas Bolsonaro ‘sentiu’”.

Putz. A ideia é se lambuzar na lama da vingança comemorada de acordo com a dose de sofrimento imposto ao outro?

“Ah, mas qualquer coisa que venha a irritá-lo vale a pena”.

Pode até valer a pena se a ideia for roubar o lugar dele. Agora vamos passar a ser os homofóbicos da história em substituição a ele, é isso?

“Ah, mas a intenção não é ofender”.

Mas está ofendendo. Então não deveria ser repensada essa estratégia?

“Ah, mas existem gays que também fazem essa brincadeira!”

Verdade. Mas sabemos que reproduzir preconceitos estruturais não é privilégios de alguns e que todes deveriam se comprometer em combatê-los.

“Ah, deixa de ser politicamente correto”.

Então vamos voltar a achar graça quando diziam que alguns “quando não fazem na entrada, fazem na saída”.

E vamos nos lambuzar nas lágrimas dos que eram tidos por “aleijados” ou “ceguinhos”.

Eita, minha gente.

Não é essa política que quero fazer.

Atormentar Bolsonaro não pode ser justificativa para acionar gatilhos doloridos ou para reforçar estereótipos no país que mais mata LGBTQIA+.

Vamos combater o bom combate! E combater o bom combate significa não replicar as opressões estruturais e não chafurdar no lamaçal que pertence a eles.

Tenhamos certeza: eles sempre serão melhores que nós dançando nessa sujeira.

*Fabrício Rosa é policial rodoviário federal. Compõe a direção da RENOSP-LGBTI e dos Policiais Antifascismo.

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