A Máquina do Mundo e o poeta que nunca se esqueceu de sua cidade mineral
Carlos Cruz
Foi preciso que um outro anjo torto, um professor de literatura, músico e poeta paulista, viesse a Itabira para que passasse a ser melhor compreendida a essência da poética drummondiana e a sua relação atávica com a cidade onde o poeta nasceu, a Itabira do Mato Dentro, hoje apenas Itabira – e como dói ter perdido o seu mato dentro para ceder lugar às áreas de pastagens e florestas homogêneas de pinus e eucalipto.
Em sua palestra-show na 17ª Semana Drummondiana, nessa segunda-feira (29), no teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (FCCDA), José Miguel Wisnik demonstrou como é farta a presença de Itabira na obra do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902/87).
Wisnik veio a Itabira para lançar o livro Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração (Companhia das Letras), no qual ele narra como foi esse entrelaçado relacionamento de compromisso e poesia (leia aqui o primeiro capítulo do livro).
Para o show o escritor, compositor e cantor contou com a participação primorosa do também compositor, cantor e professor Kristoff Silva, que por mais de cinco anos lecionou na Escola Livre de Música de Itabira. “Kristoff é esse extraordinário músico e professor. Viva o professor brasileiro”, homenageou Wisnik.
Segundo ele, o livro nasceu de sua vinda a Itabira, em 2014. Wisnik visitou a casa de Drummond, procurou pela igreja matriz do Rosário que desapareceu.
E ficou sabendo que a fazenda onde Drummond passava a infância virou barragem de rejeito. “Eu me preparei muito para voltar aqui pela segunda vez para ter essa conversa com vocês”, confessou o escritor no início da palestra.
Com poesia e demonstração de grande apreço ao poeta – e também à Itabira, cuja história Wisnik passou a conhecer como poucos –, o novo biógrafo de Drummond procurou desmitificar a ideia, ainda recorrente e deliberadamente construída, de que o poeta abandonou Itabira à própria sorte, esnobando-a ao recusar um convite de vir visitá-la para receber uma homenagem no início da década de 1960.
Voo sobre o Cauê
A penúltima vez que Drummond pisou os pés em sua aldeia natal foi em 1948, quando aterrissou em um “teco-teco” no antigo campo de aviação para visitar a mãe enferma, Julieta Augusta Drummond, que falecera naquele ano. Já a última vinda à cidade natal foi em 1954 para assistir à exumação dos ossos de sua mãe e à sua inumação junto aos ossos do pai, Francisco de Paula Andrade, em Belo Horizonte.
Com a palestra, e como é fartamente demonstrado no livro Maquinação do Mundo, fica claro que essa lorota de Drummond não gostar de Itabira é, na verdade, um antigo fake news, para usar uma designação atual. E que foi inventada para denegrir o poeta – e para esvaziar a sua luta por um retorno mais justo da mineração para Itabira.
Conforme recordou o escritor José Miguel Wisnik, Drummond se opôs ao modelo extrativista e exportador de minério, ainda em vigor, implantado em 1942 com o acordo de Washington, firmado entre os Estados Unidos, a Inglaterra e o Brasil.
O objetivo desse acordo foi assegurar o fornecimento de matéria-prima, a hematita incrustada em mais de 1 bilhão de toneladas no pico Cauê, para suprir a indústria bélica com aço suficiente para construir tanques e demais armas de guerra. “Itabira teve papel imprescindível no esforço de guerra dos aliados para derrotar o nazifascismo que grassava por toda a Europa.”
Apreço à cidadezinha
Para Wisnik, Drummond é o poeta entre tantos poetas brasileiros e do mundo que mais esteve ligado, por meio de sua obra, à sua cidade natal, ao mesmo tempo que se conectava com o mundo. “Quem lê Drummond sabe que o ferro está em toda parte em Itabira, no chão que se pisa, no ferro que entranha nas almas”, foi o que ele constatou primeiramente com a leitura de sua obra.
Mas ao visitar Itabira pela primeira vez, o escritor biógrafo de Drummond descobre, segundo as suas palavras, que “não tinha a dimensão da escala da devastação produzida pela extração do minério nessa cidadezinha qualquer do mato dentro, alinhada entre montanhas de ferro onde nasceu e viveu por algum tempo esse poeta que nunca deixou a sua terra natal.”
Segundo ele, a visita lhe permitiu ter a dimensão histórica de Itabira no cenário brasileiro, que ainda tem ressonância mundial. “Tive a sensação de que Drummond viveu, em toda a sua obra, como um contraponto de uma história que aconteceu em Itabira.”
Dimensão mundial
Antes do livro Maquinação do Mundo, poucos estudiosos da literatura tinham essa dimensão da história de Itabira e a sua relação com Drummond. Pois agora, a dimensão desse impacto está contada e decifrada por José Miguel Wisnik.
“Em 1910 o mundo caiu de boca em Itabira”, afirmou o escritor, referindo-se ao célebre congresso de geólogos e mineradores, realizado em Estocolmo, capital da Suécia, quando foi anunciado ao mundo a existência de uma fabulosa riqueza de mais de um bilhão de toneladas da mais pura hematita num certo pico Cauê, em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil.
“Empresas americanas, e inglesas para aqui vieram comprar terras a preços baixíssimos. Quem lê Boitempo fica sabendo de vários episódios dessa chegada. Compraram as terras a preço de banana, os donos não sabiam o valor dessas terras onde continha essa quantidade enorme de minério”, conta Wisnik.
Só os ingleses sabiam muito bem o que estava contido no pico Cauê. “Eles sabiam de sua importância no contexto da segunda revolução industrial movida a trem de ferro, transatlântico, automóveis, portanto, ferro, ferro, ferro.”
Acordo de Washington
Com a criação da Companhia Vale do Rio Doce, em 1942, Itabira deixa de ser a cidadezinha qualquer para se transformar na maior produtora mundial de minério de ferro, insumo básico para a fabricação do aço.
Drummond e José Hindemburgo Gonçalves, tributarista itabirano, com quem o poeta trocava informações, sabiam de sua importância – e lutaram em vão para que o minério não fosse exportado em estado bruto, mas como “o futuro aço do Brasil”, fabricado em uma grande usina siderúrgica.
Com a criação da Vale, como parte do esforço de guerra para exportar o minério, Itabira ganha dimensão mundial. “Para se ver como a história de Itabira está atada à do mundo. Itabira foi peça fundamental na discussão do acordo de Washington do ponto de vista diplomático e econômico.”
Foi com esse acordo que se criou a base extrativa exportadora em Itabira sem compromisso com a siderurgia. “São duas realidades que acabam se encontrando, Itabira e o mundo”, contou Wisnik, ajudando a acabar com o complexo vira-lata que vive parte dos itabiranos.
Como bem lembrou o escritor foi nessa conjuntura que Drummond escreveu o poema Confidência do Itabirano. “Quando Drummond dizia que as prendas de Itabira ele oferece ao Brasil, assim com uma escultura do mestre Alfredo Duval, o couro de anta no sofá na sala, um animal quase totêmico do vale do Rio Doce e essa pedra de ferro, futuro aço do Brasil, ele se referia a essa luta.”
Máquina do mundo
Para o escritor biógrafo, a máquina do mundo que inspirou o poema homônimo seria uma visão poética do pico Cauê sendo dinamitado. “Naquele voo sobre o Cauê, Drummond vislumbra o que ia acontecer com a sua cidade de origem, o significado da perda de história, de que aquele pico fazia parte de sua vida”, disse ele, para em seguida emendar com o verso drummondiano: “Cada um de nós tem um pedaço no pico do Cauê.”
O poema A máquina do mundo foi publicado no Jornal do Brasil um mês depois da penúltima visita de Drummond a Itabira, em 1948. “Ele percebeu que o destino da cidade está investido naquela paisagem, naquele colosso. Mas o destino acaba com o pico sendo dilapidado, virando esse minério britado e carregado por esse trem-monstro que leva tudo isso até desaparecer.”
Para José Miguel Wisnik, a máquina do mundo não é a Companhia Vale do Rio Doce. É o próprio sentimento do mundo, daquilo que nele ocorria com o horror da guerra e do desenvolvimento desenfreado.
“O poema nasce desse impacto de antever o que aconteceria na cidade e o temor de que tudo isso arrasasse com a cidade, deixando muito pouco em troca. Que destruísse o espírito do lugar, sem ter a compensação correspondente.”
Defesa da terra natal
Segundo Wisnik, Drummond escreveu nos anos de 1950 mais de duas dezenas de artigos no jornal Correio da Manhã, e também no Jornal do Brasil, reivindicando da Vale os direitos de Itabira.
Foi em decorrência dessa luta, concluiu o escritor biógrafo, que as más-línguas diretamente influenciadas pela Vale passaram a propagar que Drummond saiu de Itabira para nunca mais voltar por não gostar da cidade.
Diziam ainda que o poeta ficava falando mal pela imprensa de uma empresa que gera empregos, e que é de grande importância para a cidade.
“Quando diziam (os gerentes da Vale) que 70% dos empregos na cidade vinham da Vale, Drummond respondia que 100% do ferro exportados pela mineradora saiam de Itabira”
Pois está justamente nessa argumentação a definição e a mensuração da dívida histórica da Vale com Itabira. Como se sabe, a então estatal, por beneplácito de Getúlio Vargas, ao ser criada, ficou isenta de pagar impostos à União, aos Estados e ao município de Itabira.
Após muitos anos de luta, da qual Drummond e José Hindemburgo Gonçalves participaram ativamente, foi só em 1966 que foi instituído o Imposto Único sobre Minerais (IUM), cujo rateio de apenas 20% para os municípios foi duramente criticado por Drummond na crônica Só isso?, publicada na Jornal do Brasil pouco antes de sua promulgação (leia mais aqui).
Foi com o royalty do minério, que veio com a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem), e também com um rateio mais justo do ICMS, que Itabira passou a receber por algo próximo de uma justiça tributária reivindicada por Drummond, o que só ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Antes, Itabira ficava a ver os navios que levam o seu minério para além-mar a preço de banana, naquele tempo, ficando no município as perdas incomparáveis. Mas como escreveu o poeta baiano Waly Dias Salomão (1943/2003), citado por José Miguel Wisnik, ficou para a cidadezinha e para o mundo “a poesia de Carlos Drummond de Andrade, que é o pico de Itabira que a mineradora não corrói.”
Após a magistral palestra, Wisnik e Kristoff Silva cantaram o poema Anoitecer, de Carlos Drummond de Andrade, e outras muitas belas canções. E todos os presentes saíram leves e felizes por conhecerem um pouco mais a bonita história de Drummond e a sua relação com Itabira. E com o desejo de seguir de mãos dadas, sem se dispersar.
Anoitecer
É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.
É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.
É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz — morte — mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.
Hora de delicadeza,
agasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.
(Carlos Drummond de Andrade, em a Rosa do Povo, 1945)
A Máquina do Mundo
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas”.
(Carlos Drummond de Andrade)
Vocês itabiranos tiveram a graça de aliviarem-se do desastroso resultado das eleições com poesia e musica. Itabira merece o poeta Drummond e o Wisnik . Agora é Resistir e com poesia.