A Estrela Solitária

Foto: Prefeitura de Magé-Rio
Pesquisa: Cristina Silveira

[Segundo a FIFA, 1,5 bilhão de pessoas de todo o globo terrestre irão assistir a última partida dos jogos da Copa do Mundo em Qatar, de 2022. Mas, poucas pessoas desta multidão sabem que os restos mortais da Estrela Solitária sumiram, dado que foi enterrado em cova comum. MCS]

Casa que Garrincha ganhou da América Fabril, em Pau Grande, após o bicampeonato mundial, em 1962. (Foto Tauan Ambrosio/Goal.com

De Pau Grande a Pau Come

Por Henrique Pongetti

Como todos os brasileiros sabem, (e a Enciclopédia Britânica talvez registre na versão verde e amarela dirigida por Antonio Callado), Garrincha nasceu num lugarejo da Raiz da Serra de Petrópolis chamado Pau Grande.

Não tem nada de mais, parece um bivaque, sugere provisoriedade como tudo quanto brota no percurso, entre uma cidade-jardim plantada no alto da montanha e uma fabulosa cidade deitada à beira do mar.

A gente não sabe mesmo porque os poucos moradores permanecem ali optativamente, porque não se decidem, e, ou vão colher hortênsias na beira do Piabanha, ou catar tatuís nas areias do Leblon.

São lugares como aqueles por onde passa o trenzinho – (vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, com vontade de chegar) – no poema de Ascenso Ferreira.

E onde uma morena de cabelo cacheado também nos acena um adeus gratuito que mais parece um chamado de quem se desespera na solidão.

Ou sinal de “me leva consigo” de quem, ao apito da máquina resfolegante na cremalheira, sonha todas as tentações e maravilhamentos das verdadeiras cidades de se viver.

Por incrível que pareça, o abastado Garrincha mora lá, embora profissionalmente tenha por sede o Botafogo, a poucos metros do túnel de cuja penumbra os olhos saem para o clarão azul do céu do Leme.

Nada dessa Copacabana vizinha e repleta de perdições o enfeitiça. Mal termina o jogo e o liberam da concentração, corre para o seu obscuro e feioso refúgio onde o espera sua querida negrinha com uma réstia de mestiços feitos com um amor e uma candura raciais de derreter e melar coração autóctone de Gilberto Freyre.

Já correu mundo, conheceu os lugares mais famosos pelo acotovelamento dos turistas e dos fotógrafos de cartões postais, mas seu banzo geográfico emite ondas mentais e sentimentais para Pau Grande, capital do SEU Brasil.

Permanece geograficamente impoluto, etnicamente imarcescível, e se todo os marcadores dos quais deve desmarcar-se são para ele joãos, todas as cidades decantadas pelos “globe trotters” são joanas, esquecidas logo depois de vistas.

Nenhum carrapicho cosmopolita ousa grudar-se à sua roupa ou à sua alma. Carrega no seu linguajar pau-grandês quanto mais o envolvem em algaravias de salão de espera de aeroporto internacional.

No mapa da minha vida vivida, Pau Grande figura em revelo, e quero dedicar esta reminiscência ao Mané Garrincha, seu mais ilustre cidadão.

Todos os clubes de futebol de Petrópolis temiam descer a serra para jogar com o esquadrão pau-grandês, cujo lema belicoso era GANHAS, MAS NÃO LEVAS.

Pau Grande era apelido, o nome do lugarejo era mesmo Pau Come. Havia um bambual rodeando o campo de batalha: mal o visitante entrava em vantagem no marcador, começava a ver a torcida local escolhendo nas touceiras os bambus mais grossos. Se a vantagem crescia, ouvia-se o barulho sinistro da derrubada, o roçar da folhagem no solo, o coro bilioso do apaixonado mutirum.

Naquele domingo, quando o clube do qual eu era secretário embarcou, já com o meu pé no estribo do trem, meu anjo da guarda virou-se para mim e disse:

“Pongetti, se você quer ir, vá, mas se for, volta com a cabeça quebrada. Hoje eles vão caprichar na malhação porque não ganham de ninguém há muito tempo e estão com brio regional ferido, os bambus já estão cortados e dispostos em feixes pelos pontos mais estratégicos do campo. Adianto-lhe mais: o juiz da peleja é o Ernesto da Silva, petropolitano, que não vai levar uma surra especial, tamanho maior, porque saltará um muro batendo sem querer o recorde respectivo de altura do Estado do Rio. Você tem uma namorada nova e bonita: siga o meu conselho, vá à vesperal de cinema com a garota, e se esqueça do jogo.”

Mané Garrincha, o incomparável. Foto: Portal O Dia, Rio

Mané – só vendo como o pessoal voltou da sua terra. Até o Tenente Faceiro, que era um touro de forte, entrou bem e tinha no rosto as marcas roxas do sururu. O Ernesto da Silva salvou-se de uma facada saltando o muro: tudo direitinho como o meu anjo guardião disse.

Garrincha batendo bola com Elza Soares

Mas não leve a mal esta rememoração. Eu sei que não é mais assim, que sua presença em Pau Grande mudou muitas coisas, que Pau Grande se considera hoje a capital mundial do futebol.

E que quando você voltar da Copa do Mundo ninguém trocará aquele monumento pelo da passagem de De Gaulle de baixo do Arco do Triunfo depois de enxotados os alemães – (isso para falar de um dos momentos invejáveis da História da Humanidade). [R. Manchete, 30/6/1962. BN-Rio]

 

 

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